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24 de mar. de 2024

O Ruído do Tempo e da História.

Confusão é o sentimento de que Julian Barnes impregna o início de sua consagrada obra O Ruído do Tempo, em função de sua proposital fragmentação narrativa. Cabe ao leitor, no seu deleite, ir juntando as peças e informações para descobrir a formação inicial de um brilhante texto.

Confusa também é a sofrida história do músico russo Dmitri Dmitriyevich Shostakovich, compositor e pianista da era soviética que se tornou internacionalmente conhecido em 1926 após a estreia de sua Primeira Sinfonia, composta aos 19 anos, e foi considerado ao longo de sua vida como um grande compositor. Barnes fala da infância complicada do protagonista que o obrigou a ser o “homem da casa” logo cedo, aos 16 anos. Mas, com todo o seu talento, nesses tempos já era um talento precoce e brilhava nos palcos de Moscou. Mas apesar disso e mesmo após a consagração, sempre se sentiu um menino perdido.

Teve uma relação extremamente complexa e crítica com o regime comunista. Quando estava ainda no Conservatório, a Associação Russa de Músicos Proletários iniciava então uma campanha contra a hegemonia das elites nas artes, na qual Shostakovich estava incluído, pregando que “os trabalhadores tinham que ser treinados para se tornar compositores, e toda a música viria a ser instantaneamente compreensível e agradável às massas”. Além de utópico, isso contrariava frontalmente sua formação iniciada com a mãe ao piano desde os nove anos.

Além do azar de Stálin não ter gostado de sua sinfonia, teve que enfrentar o Estado que acabou assumindo também as tarefas das artes e os burocratas do Regime passaram a controlar a produtividade também dos músicos, não importando sua qualidade. Sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, consagrada até internacionalmente recebeu crítica positiva do Pravda por ser uma conquista internacional soviética, mas quando os humores políticos internos mudaram, o mesmo Pravda destruiu e ridicularizou a obra por se tratar de uma expressão depressiva da burguesia.

E, como delata Barnes, o controle das artes passou a assumir um nível de censura política e social de forma radical e absurda, por pessoas absolutamente ignorantes e brutais. Daí a patente queda das artes soviéticas, principalmente russas, enquanto durou o bolchevismo. Dali para frente na história, as manifestações artísticas em regimes social-comunistas basicamente deixaram de existir, em função do baixíssimo nível do que era produzido para manipular as massas ignorantes e rústicas. O que perdura até hoje nesses padrões de regimes quase sempre totalitários.

Mas, por diversos motivos, Shostakovich foi sobrevivendo, submetendo-se na maioria das vezes aos caprichos dos líderes comunistas e aos censores. Sua potente e grandiosa Quinta Sinfonia em Ré menor, opus 47, de 1937 – sua primeira obra dentro das novas regras governamentais – traz uma poderosíssima crítica imperceptível ao regime e o consagra internacionalmente. E assim, com muita inteligência, esperteza e competência foi conduzindo sua vida e obra sob permanente coação e intimidação. E é nas reflexões do protagonista onde Barnes desfila toda a ironia, questionamentos e paixões de Shostakovich com relação ao regime soviético, seus líderes e tiranos em geral.

Sua música expressa o colorido orquestral da escola russa e a diversidade de uma enorme produção em todos os gêneros. Apesar de criticado por sua forçada adesão política, era admirado por compositores da grandeza de Bela Bartok e respeitado por contemporâneos como Stravinsky e Prokofiev. Mas, a qualidade de sua obra se impôs e se mantém nos programas de todas as salas de concerto da atualidade.

E sua música, como praticamente a completude delas, sobreviveu ao totalitarismo. As obras de Shostakovich superaram o ruído do tempo e da história.

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Valdemir Martins

28.01.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Shostakovich pela FineArt America; 3. Cena da ópera Lady Macbeth; 4. Shostakovich compondo; 5. Capa da revista Time; 6. Recebendo a notícia da doença fatal; 7. Julian Barnes.

 

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