Em tempos de Inteligência
Artificial, em pleno século XXI, e num país de maioria de iletrados e
desinformados, parece ser impossível conhecer-se tanta miséria, privações e
sofrimento descabido e ilógico na Europa, muitas vezes chamada de o berço da
civilização e da cultura, principalmente nos séculos XIII e XIV. E é para esse
ambiente que nos transporta o excelente livro Cruz de Cinza, de Antoine Sénanque, pseudônimo de um neurologista e escritor francês
já premiado em seu país.
O título da obra refere-se
simbolicamente ao sacrifício de quem morreu nas fogueiras tenazes da
Inquisição. E assim o autor conduz-nos aos primórdios dos franciscanos e dos dominicanos
na Idade Média, veladamente inimigos quanto aos conceitos de suas
religiosidades. Enquanto os franciscanos viviam na pobreza absoluta
dedicando-se a auxiliar os necessitados (inclusive os animais), os dominicanos
sobre eles tripudiavam para demonstrar sua sabedoria e força de doutrinação
radical.

E é da severidade dos dominicanos que
dois frades despontam, um deles como protagonista juntamente com seu prior. E
numa primeira aparição da Inquisição
a obra já sofre sua primeira reviravolta e mudança de clima. A eles junta-se o
prior do convento, cujo protagonismo desponta a partir de suas narrativas para
um livro. E assim, Sénanque coloca-nos na esteira de um bom aprendizado sobre
os costumes monásticos da época e a medicina empírica medieval, trazendo-nos
boas passagens da história teológica resultantes de suas pesquisas.
Esta é uma leitura que nos proporciona
conhecimentos importantes da história oculta da igreja católica ao longo desses
séculos obscuros. Ao mesmo tempo que histórico, este romance também sabe ser
irônico, cético e escatológico, sempre que cabível. Aqui fica evidente que,
ironicamente, a ciência medieval era ditada pela igreja, claro, sem nenhuma
base científica.
A injustiça da ordem dominicana contra
a beguinaria* também é denunciada, pois era atroz, uma vez que suas componentes
só praticavam o bem e a ajuda aos pobres e doentes em nome de Deus, ao
contrário das ordens dos conventos que abrigavam noviças e freiras, em sua
maioria filhas excedentes ou bastardas de nobres, que não trabalhavam e nada
lhes faltava.
Por outro lado, a bestialidade humana
contra os judeus já grassava pelo incentivo da própria igreja católica, sob a
falsa alegação de terem assassinado Cristo. Na realidade, queriam reduzir o
número de bocas a alimentar diante da escassez de comida nos rigorosos invernos
europeus.
Nos diálogos e convivência dos
personagens, Sénanque promove uma intensa troca de reflexões sobre Deus e a
convivência e a união com Ele; e apresenta a complexa e abstrata teoria do
empobrecimento da alma para se aproximar do Criador. Mas a fome derruba suas
teses a partir do momento que o povo prefere um emprego ou um pedaço de pão e
não unir-se a Deus. Isto, por volta dos meados do livro, o qual sem dúvida,
recomendo aos que se interessam por esse tipo de debate.
A obra oferece-nos uma espécie de ode
ao sofrimento beirando a demência. É uma resumo da história de um grande e
respeitado mestre dominicano, bem como da clausura de um frade da ordem, e de um inquisidor fanático, que servem de fio
condutor do texto.
Assim, Sénanque escancara para os
leitores quanto o fanatismo, o poder e a preponderância religiosos cegaram as
massas ignorantes durante séculos. Assim como nos dias atuais movimentos de
radicalismo ideológico e de políticas identitárias influenciam grande número de
pessoas, a igreja católica predominava nos sentimentos e nos pensamentos das
pessoas nos tempos medievais, com o agravante das ameaças de tortura e morte, e
do conluio com os estadistas da época. A igreja então, como o poder econômico
hoje, dominava tudo: da medicina e o comércio às universidades, os exércitos e
os governantes.
A obra propõe uma profunda reflexão a
respeito das preponderâncias religiosas, em especial sobre as dezenas de
diversificações do Cristianismo. Aqui, tendo como destaque e liame a forte
atuação e intrigas políticas de suas
lideranças e ordens mendicantes (franciscana, dominicana, beneditina, etc.), a
igreja católica, principalmente, exercia uma força exageradamente ditatorial
sobre as massas crentes (e mesmo leigas)
que culminou, por cerca de dez séculos de escuridão, com a tirania da Inquisição do século XIII ao XVIII.
Ficam também como destaques, a
influência e os fatos
da grande peste negra, bem como as torturas e execuções
sádicas nas fogueiras, proporcionadas pela Inquisição,
um tribunal da Igreja Católica que perseguiu,
julgou e puniu pessoas acusadas de heresia, apostasia, blasfêmia, feitiçaria e
costumes desviantes, além de, como o Nazismo, os judeus e os ciganos.
E Sénanque deixa para
o fim uma deliciosa sequência de suspense.
Tentei descobrir o verdadeiro nome do
autor deste Cruz de Cinza e não
consegui. Deduzi, portanto, que assim como esta sua obra descreve a escrita de
um livro a quatro mãos, ela mesma, por similaridade, tenha a motivação incrustada
no próprio enredo, não sobrevivendo um autor. Mas, enfim, é uma bela obra
literária, de difícil pesquisa e laboriosa escrita. Resta-nos prestigiar este
esforço que transborda do livro para a realidade. Apenas lamento que não houve
mais publicações deste excelente nom de
plume em português.
Valdemir Martins
01.03.2025
· * Comunidades de beguinas – mulheres religiosas que
ao contrário das freiras não tinham uma ordem, nem votos e nem clausura. Eram
livres, constituídas em sua maioria por viúvas sérias e com paixão espiritual.
IIIIlustrações: 1. Capa do livro; 2. Os franciscanos; 3. Os dominicanos; 4. As fogueiras da Inquisição; 5. O pergaminho; 6. As beguinas; 7. A Peste Negra e a medicina medieval; 8. O reencontro debaixo da terra; 9. O autor Antoine Sénanque.