Charles Darwin, o ícone da ciência evolutiva, cravou há mais
de dois séculos que “o paraíso não havia sido perdido”, uma vez que nunca
existira. Corroborando essa teoria, o contemporâneo e respeitadíssimo
historiador, crítico literário, professor e pesquisador da Universidade de
Harvard, Stephen Greenblatt, escreveu este desconcertante “Ascensão
e Queda de Adão e Eva”.
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O Pecado Original |
Vencedor dos Prêmios National Books Award (2011) e Pulitzer
(2012), ambos de “Não Ficção” e conhecido no meio cultural, científico,
acadêmico e teológico por seus inúmeros, polêmicos e preciosos livros,
Greenblatt tem o grande mérito da profunda pesquisa para desenvolver e
comprovar suas teses. Debruçando-se com afinco nas tábulas de argila da civilização
babilônica, elaboradas em média em 1800 antes da era cristã e descobertas
no século XIX em escavações de um templo de Nínive, capital do antigo império
assírio (hoje Irã), ele contesta enfaticamente o Gênesis das bíblias judaica e
cristã.
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A Criação |
E assim, leva de roldão as histórias do Paraíso ou Jardim do Éden com Adão e Eva a bordo; o Dilúvio, afogando Noé e os animais num mar de
provas científicas; e, para encurtar, as científica e naturalmente impossíveis
personagens com mais de 900 anos de vida.
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A Expulsão |
Voltando às tábulas de argila babilônicas, ele descobre que
um dilúvio, igual ao de Noé com barco salvador e tudo o mais, foi causado pelo
deus babilônio mais de dezoito séculos antes da era cristã e, portanto, em
documentos muito anteriores e bem mais antigos do que a data em que Moisés
teria recebido as tábulas da Torá no monte Sinai.
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As tábulas assírias |
Para o assiriologista britânico Georges Smith, o decifrador
das tábulas, ficou claro que a narrativa hebraica das origens não era única de
sua espécie. “O Gênesis era, evidentemente, uma resposta ao que os cativos
hebreus tinham escutado vezes sem conta – dos babilônios - enquanto sentavam e
choravam seu cativeiro junto aos rios Tibre e Eufrates. Comprovadamente os
hebreus estavam decididos a se distinguir, desde a aurora dos tempos, dos seus
ex-captores.” Assim, constituíram sua escritura religiosa hebraica à sombra das
místicas babilônicas juntadas à sua história, plagiada posteriormente pelos
cristãos como seu Velho Testamento.
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A região de Nínive |
Na sequência, Greenblatt contesta e desmonta, de maneira
enfática, empírica e severa, Santo Agostinho, o maior defensor dos Gêneses
bíblicos, apenas cruzando os textos de Confissões,
obra máxima do religioso, com sua biografia pregressa. Surpreendente observar
que um beato defensor do contrato de casamento apenas para procriação tenha
vivido treze anos em concubinato libidinoso com uma mulher da qual nem cita o
nome e com a qual teve um filho indesejado, exatamente como condenava.
Agostinho tornou-se um maniqueísta, sistema religioso cristão
persa que considerava Jesus como um avatar da luz em oposição ao senhor das
trevas e não como Filho de Deus. Os maniqueus não aceitavam as escrituras
hebraicas e escarneciam dos capítulos iniciais do Gênesis, os mesmos
ferrenhamente defendidos posteriormente pelo incongruente Agostinho.
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Santo Agostinho |
Em sua última crença, Agostinho radicaliza despejando em Eva
a culpa por todos os pecados da humanidade, originadas pelo “pecado capital”
perpetuado por Adão, vítima de sua parceira, e o transforma, em seus escritos e
pregações, no episódio central do drama da existência humana. Para ele, por ser
Deus justiçoso, o pecado original tem como extensão toda a perversidade humana
e todas as desgraças como crimes horrendos, os horrores da tirania e das
guerras, terremotos, incêndios, inundações, “não passam de punições distribuídas
por um Deus justo”. A isso, Greenblatt rebate com a pergunta: “Poderia alguém
afirmar que um doce bebê acometido de uma doença degenerativa esteja apenas
recebendo a punição que mereceu?”.
E o que dizer dos milhares de crianças que morrem de fome na
África e no Oriente Médio e que não são judias nem cristãs? Segundo Agostinho
“para Deus ninguém é livre do pecado (...), nem o recém-nascido” (Confissões
1.7).
Responsável pela difamação de Eva como a origem de todos os
pecados (segundo Agostinho), a condição da mulher, ao longo da história, passou
a ser a de um ente inferior e sempre subjugado, até no Islamismo – como se
comprova em seus costumes – pois Adão e Eva também estão presentes no Alcorão.
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São Jerônimo |
Para (São) Jerônimo, no século IV, “não foi Adão que foi
enganado, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão”, conceito repetido
vezes sem conta ao longo dos séculos. Foi incutido em criancinhas, invocado
sempre que o equilíbrio de poder do marido se via ameaçado e lançado contra
mulheres inteligentes e articuladas que pareciam não conhecer o seu lugar.
Diante do obscurantismo da Idade Média, esse conceito
negativo sobre a mulher e sua origem em Eva tomou corpo e até o filósofo Tomás
de Aquino chegou ao extremo de afirmar: “para viverem juntos e fazer companhia
um ao outro, dois amigos juntos são melhores que um homem e uma mulher”. Tudo
com o lastro da forte e sanguinária Inquisição Católica, cujos troféus máximos
eram extirpar nas fogueiras a bruxaria praticada pelas mulheres e caçar os
judeus que causaram sofrimento a Maria.
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Dictionaire de Bayle |
O primeiro desmonte público – apesar de dissimulado – das
ditas fábulas do Paraíso foi lançado pelo filósofo protestante francês Pierre
Bayle, em sua obra Dictionaire
Historique et Critique lançada em 1697, no crepúsculo do século 17, na
sombra de sua proclamação de que “uma Igreja cristã que procurava obter
uniformidade mediante instrumentos de tortura e fogueira, violava a própria
essência do evangelho”. Os personagens Adão e Eva aparecem em inúmeros verbetes
e notas de rodapé sempre sob o olhar cético e destruidor de Bayle.
Seu Dictionaire – trinta
anos após a publicação do maior poema de louvor ao Gênesis (Paraíso Perdido, do inglês John Milton)
- jogava na lata de lixo lendas que pouco a pouco haviam sido adicionadas à
narrativa do Gênesis ao longo de mais de mil anos. A exemplo deste pensador
francês, Voltaire, mais adiante em 1764, publicava seu Dicionário Filosófico com diversos verbetes destrutivos sobre o
casal pecaminoso do Paraíso. E antes de finalizar esta brilhante obra,
o autor não deixa de demonstrar a incompatibilidade do darwinismo com a
crença em Deus, que com certeza é incompatível com a crença em Adão e Eva.
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O grupo de chimpanzés |
Saindo das lendas e ficções da religiosidade e das desconstruções filosóficas, Greenblat leva-nos ao epílogo desta obra analisando
as semelhanças humanas com os chimpanzés sob a luz da ciência e do
evolucionismo. Pondera uma eventual vida dos símios num paraíso e quais seriam
suas reações mediante a nudez, ao conhecimento e demais itens importantes nos
argumentos paraisionistas.
E após uma demorada e detalhada observação de um grupo
completo de chimpanzés (crianças, jovens, adultos e velhos) em seu habitat
natural, junto com outros cientistas, notaram que eles possibilitaram ver como
seria viver sem o conhecimento do bem e do mal, da mesma forma como vivem sem
sentir vergonha e sem saber que estão destinados a morrer. E conclui: “Eles
ainda estão no Paraíso.”. Mas isso acontece porque formamos nossa ideia do
Paraíso a partir de noções oriundas do nosso conhecimento do bem e do mal. “Nós
já caímos; eles, não.”.
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Stephen Greenblatt |
Assim, como o mito de Adão e Eva está no cerne da nossa
formação religiosa e cultural, deixando suas marcas através dos séculos, de
vários pontos de vista – psicológico, artístico, teológico -, a trágica fábula
determinou o modo como lidamos com o amor e a morte, a culpa e o desejo, e
moldou de forma definitiva nosso destino.
Ascensão e Queda de Adão e Eva, apesar de tratar de um assunto tão
sério, é uma obra eletrizante de fácil leitura e compreensão, passível de ser
contestada somente por outros cientistas e estudiosos isentos, mas jamais por
religiosos, por razões óbvias de defesa dos pilares das principais crenças
religiosas dominantes.
Valdemir Martins
25.06.2020
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