Pesquisar este blog

21 de ago. de 2020

Uma das mais belas personagens femininas da literatura universal *****


Se eu disser que Ana-não, protagonista e título do quase desconhecido – no Brasil - livro do espanhol Agustín Gómez-Arcos, é uma das mais belas personagens femininas da literatura de todos os tempos, muitos atinarão exagero de minha parte. Mas ela é única em sua beleza, traduzida pelo autor em amor, perseverança, amargura e grandiosidade em sua figura humana.

Porta da casa de Ana-não
Arcos, falecido precocemente aos 59 anos em 1998 em Paris, vítima de câncer, é considerado um anarquista literário altamente inovador pela crítica inglesa e francesa. Pouco sucesso obteve na terra natal por ser um crítico ferrenho e amargo do regime ditatorial franquista, conquistando, deste modo, muitos leitores pela Europa livre, principalmente na Inglaterra e França, onde residiu e trabalhou.

Pão, presente para o filho
Por lá, Ana-não foi um de seus maiores sucessos pelo fato de ser o menos polêmico de seus livros e por abordar uma protagonista extremamente humana. A obra concentra-se na dor e no luto de uma viúva que atravessa o território espanhol a pé, do sul ao norte, para encontrar o filho. Nesta impressionante aventura materna, ela vê a presença constante da morte que lhe passa recados dúbios sobre a certeza de concluir sua jornada e encontrar o ente querido.

Andaluzia - terra de Ana-não
Trata-se, sem dúvida, de um terno e agitado poema em forma de prosa. Uma narrativa diferenciada que se concentra na solidão aflitiva de uma mãe de família e no seu obcecado propósito de rever o filho querido e de levar-lhe algo que muito gosta. Narra sua lentidão numa triste jornada por uma Espanha estranha - moderna e diferente de tudo que ela se lembrava -, em seu caminho para ver o filho sobrevivente, preso para a vida.

Agustín Gómez-Arcos
Possivelmente por razões puramente comerciais, o único livro de Gómez-Arcos publicado por aqui foi Ana-não. Livros preciosos como Maria Republica, L'enfant pain e The Carnivorous Lamb, somente importados e em espanhol, francês e inglês. Assim, quem desejar ter o prazer de ler este grande autor em português só encontrará o livro em sebos físicos e no site Estante Virtual (procure pelo autor) ou eventualmente no Mercado Livre.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-me. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página (abaixo das fotos dos "Seguidores") e você receberá as novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins
18.08.2020

11 de ago. de 2020

Só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida. *****

Ler Atlas de Nuvens do inglês David Mitchell é como saborear um prato de deliciosos canapés variados, com seis sabores, um melhor que o outro. Este é o sentido figurado sobre o prazer de ler esta obra de vanguarda literária, de estrutura inovadora e surpreendente. Utilizando a frase de um personagem do início do livro eu diria que “só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida”, considerando-se aqui os seres inanimados como cada uma das seis criativas histórias que compõem a obra.

O ex-escravo Autua e Adam Ewing
Neste livro, considerado a obra-prima de Mitchell, ele judia do leitor. Atormenta-nos com uma certa falta de apoteoses, com os gritos calados. Ele joga com o excitamento e a seguida resignação ao mesmo tempo 
em que vai acumulando pontos de alusão para preparar-nos para algo maior. Arguto, é um grande jogador literário, bulindo com quebra-cabeças muito inteligentes.

Frobisher e o velho compositor
 Aliás, inteligência é o que não falta neste precioso enredo, retalhado por diário de viagem, romance epistolar, novela policial, thriller, drama e aventura distópicos, todos com diálogos inteligentes e arguciosos, dramáticos e irônicos, coloquiais e sofisticados. Todos enredados num contexto de esperança, não só pelo texto, como pela recorrência de referências dos textos coirmãos e uma tatuagem em forma de cometa nos protagonistas que pode até sugerir possíveis reencarnações.

A jornalista Luisa Rey e o segurança
Mitchell é tão competente que você acredita, ao passar de uma história para outra, que está lendo o texto de um novo autor, tamanha a mudança de estilo percebida na história seguinte. E para completar, os primeiros cinco textos têm aproximadamente o mesmo volume, enquanto a sexta narrativa é diferenciada. Trata-se de uma história ambientada num futuro pós-apocalíptico em que a civilização e a linguagem humanas se deterioraram assustadoramente e voltam aos períodos que ironicamente hoje denominaríamos de bárbaros, não fosse o excepcional e assustador desenvolvimento tecnológico em questão.

O atrapalhado editor Cavendish
A quinta história é uma distopia pressaga, de linguagem claudicante e inúmeros vocábulos inventados, a maioria de contrações de palavras normais, resultando na perfeita compreensão do texto. Já na sexta narrativa, a linguagem é inteiramente coloquial, informal e contracionada, porém bastante dinâmica e até divertida de se ler, num texto contado na primeira pessoa e com muitos diálogos. Enfim, recomendo que as seis histórias não devem ser percebidas individualmente, mas em sua totalidade, como parte de uma grande história.

A clone Sonmi-451
O livro, como um todo, torna-se uma charada filosófica onde Mitchell afirma sua crença na bondade e na solidariedade humanas prevalecendo sobre o egoísmo, o fanatismo cego, a maldade e a violência de pessoas ardilosas e traiçoeiras que agem sós ou liderando comunidades rotuladas de governamentais, grupais, empresariais ou religiosas.

Zachry e a misteriosa Meronym
David Mitchell
Enfim, Mitchell é sem dúvida um vanguardista literário. A estrutura deste Atlas de Nuvens bem atesta esta certeza, corroborada pela linguagem extremamente criativa, multifacetada, à vezes poética e incrivelmente originais, em enredos surpreendentes, cultos, com ricos aspectos de pesquisa, além de revolucionários na forma e conteúdo. Obrigatório a quem gosta de inovações e qualidade literária.

Como estes textos inanimados têm tanta vida!

Valdemir Martins
31.07.2020

Obs: as fotos referem-se a cenas do filme - com o título ridículo de "A Viagem" - de 2012 baseado no livro e com famosos no elenco.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!





23 de jul. de 2020

Com Deus e o diabo no meio do nada. *****


Capa com a ilha errada
Contive-me na infância e na juventude, mas agora, maduro, após ler uma síntese biográfica do escritor e jornalista britânico Daniel Defoe, rendi-me a Robinson Crusoé. Um livro exuberante do início do século XVIII (1719) e que, portanto, há mais de trezentos anos nos ensina lições de vida.

Na realidade é um livro dirigido a adultos, pois para eles foi escrito, e talvez maçante para jovens apesar de suas grandes aventuras. Porém, uma obra importante na formação desses mesmos jovens por suas inumeráveis reflexões para tomada de decisões e descrições de procedimentos básicos de sobrevivência e produção de artefatos artesanais, alimentos, vestuário, navegação e defensas.

Fazenda de cana na Bahia séc. XVIII
Escrito no formato quase epistolar, o livro apresenta-nos a história de um jovem inglês sonhador que queria ser marujo e passa por muitas dificuldades em navegações atlânticas, vira prisioneiro de muçulmanos, torna-se fazendeiro rico no Brasil – algo raramente citado nas sinopses e críticas à obra – e acaba como náufrago, reinventando sua subsistência. Grande parte do livro Defoe dedica às aventuras de Crusoé numa ilha onde luta pela sobrevivência por longo tempo.

Localização da ilha de Crusoé
O enredo é baseado numa história real do náufrago escocês Alexander Selkirk, perdido por quatro anos numa ilha do Pacífico Sul, em frente ao Chile, hoje denominada Ilha Robinson Crusoé. Este fato tem confundido alguns críticos e jornalística que se referem a essa ilha como a qual o personagem viveu, quando na verdade a história da obra de Defoe passa-se na Ilha de Tobago, no Caribe, na costa venezuelana.

Nau portuguesa do século XVIII
A obra é um primor de criatividade nas aventuras e situações inusitadas, mas peca nas inúmeras – e às vezes infindáveis em longos parágrafos – citações bíblicas e reflexões sobre religiosidade (Deus, pecado e a Providência), perfeitamente compreensíveis e aceitáveis pela própria formação do autor e pela forte predominância da igreja católica na cultura da época, período da feroz Inquisição Católica em Portugal e na Espanha. E passa a ser o liame da sobrevivência do solitário Crusoé num local inóspito e deserto. Assim, afirmo que Defoe conseguiu colocar Robinson Crusoé sozinho, de forma primorosa e brilhante, entre Deus e o diabo na terra do nada.

Silvícolas da época
Paraíso encontrado por Crusoé
Seu final é surpreendente, com o – agora empresário milionário – protagonista Crusoé e seu servo Sexta-feira vivenciando novas aventuras agora em plena Europa. Um final que também valoriza o lado bom das pessoas e compensa com honras a grande virtude da verdade e da honestidade.

É um livro importante para a história da formação do romance moderno por seu ineditismo ao apresentar de forma singular a estrutura colonialista, religiosa, geográfica e econômica da época. A história já inspirou quadrinhos, desenhos animados e vários filmes, inclusive do gênio Luis Buñuel, e proporcionou incontáveis produções literárias ao longo dos séculos.

Daniel Defoe
Mas, por seu conteúdo reflexivo e de ponderações bastante sérias sobre a vida, medos e sobrevivência, e apesar de conter muita aventura, não deveria ter jamais uma conotação ou versão infantil, bastante fora dos propósitos da obra. Infelizmente, para efeito de aumentar seus faturamentos, várias editoras desenvolveram inescrupulosamente versões infanto-juvenis dessa obra, distorcendo os elementos debatidos pela mesma e deturpando seus princípios literários. Portanto, havendo interesse em sua leitura, recomendo que procure uma boa tradução da versão original como a da série Clássicos da Penguin/Companhia (apesar de ter na capa um mapa errado da localização da história). Afinal,  Robinson Crusoé é um clássico da literatura muito além de uma aventura infantil.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

28 de jun. de 2020

A perda de um paraíso que nunca existiu. *****


Charles Darwin, o ícone da ciência evolutiva, cravou há mais de dois séculos que “o paraíso não havia sido perdido”, uma vez que nunca existira. Corroborando essa teoria, o contemporâneo e respeitadíssimo historiador, crítico literário, professor e pesquisador da Universidade de Harvard, Stephen Greenblatt, escreveu este desconcertante “Ascensão e Queda de Adão e Eva”.

O Pecado Original
Vencedor dos Prêmios National Books Award (2011) e Pulitzer (2012), ambos de “Não Ficção” e conhecido no meio cultural, científico, acadêmico e teológico por seus inúmeros, polêmicos e preciosos livros, Greenblatt tem o grande mérito da profunda pesquisa para desenvolver e comprovar suas teses. Debruçando-se com afinco nas tábulas de argila da civilização babilônica, elaboradas em média em 1800 antes da era cristã e descobertas no século XIX em escavações de um templo de Nínive, capital do antigo império assírio (hoje Irã), ele contesta enfaticamente o Gênesis das bíblias judaica e cristã.

A Criação
E assim, leva de roldão as histórias do Paraíso ou Jardim do Éden com Adão e Eva a bordo; o Dilúvio, afogando Noé e os animais num mar de provas científicas; e, para encurtar, as científica e naturalmente impossíveis personagens com mais de 900 anos de vida.

A Expulsão
Voltando às tábulas de argila babilônicas, ele descobre que um dilúvio, igual ao de Noé com barco salvador e tudo o mais, foi causado pelo deus babilônio mais de dezoito séculos antes da era cristã e, portanto, em documentos muito anteriores e bem mais antigos do que a data em que Moisés teria recebido as tábulas da Torá no monte Sinai.

As tábulas assírias
Para o assiriologista britânico Georges Smith, o decifrador das tábulas, ficou claro que a narrativa hebraica das origens não era única de sua espécie. “O Gênesis era, evidentemente, uma resposta ao que os cativos hebreus tinham escutado vezes sem conta – dos babilônios - enquanto sentavam e choravam seu cativeiro junto aos rios Tibre e Eufrates. Comprovadamente os hebreus estavam decididos a se distinguir, desde a aurora dos tempos, dos seus ex-captores.” Assim, constituíram sua escritura religiosa hebraica à sombra das místicas babilônicas juntadas à sua história, plagiada posteriormente pelos cristãos como seu Velho Testamento.

A região de Nínive
Na sequência, Greenblatt contesta e desmonta, de maneira enfática, empírica e severa, Santo Agostinho, o maior defensor dos Gêneses bíblicos, apenas cruzando os textos de Confissões, obra máxima do religioso, com sua biografia pregressa. Surpreendente observar que um beato defensor do contrato de casamento apenas para procriação tenha vivido treze anos em concubinato libidinoso com uma mulher da qual nem cita o nome e com a qual teve um filho indesejado, exatamente como condenava.

Agostinho tornou-se um maniqueísta, sistema religioso cristão persa que considerava Jesus como um avatar da luz em oposição ao senhor das trevas e não como Filho de Deus. Os maniqueus não aceitavam as escrituras hebraicas e escarneciam dos capítulos iniciais do Gênesis, os mesmos ferrenhamente defendidos posteriormente pelo incongruente Agostinho.

Santo Agostinho
Em sua última crença, Agostinho radicaliza despejando em Eva a culpa por todos os pecados da humanidade, originadas pelo “pecado capital” perpetuado por Adão, vítima de sua parceira, e o transforma, em seus escritos e pregações, no episódio central do drama da existência humana. Para ele, por ser Deus justiçoso, o pecado original tem como extensão toda a perversidade humana e todas as desgraças como crimes horrendos, os horrores da tirania e das guerras, terremotos, incêndios, inundações, “não passam de punições distribuídas por um Deus justo”. A isso, Greenblatt rebate com a pergunta: “Poderia alguém afirmar que um doce bebê acometido de uma doença degenerativa esteja apenas recebendo a punição que mereceu?”.

E o que dizer dos milhares de crianças que morrem de fome na África e no Oriente Médio e que não são judias nem cristãs? Segundo Agostinho “para Deus ninguém é livre do pecado (...), nem o recém-nascido” (Confissões 1.7).

Responsável pela difamação de Eva como a origem de todos os pecados (segundo Agostinho), a condição da mulher, ao longo da história, passou a ser a de um ente inferior e sempre subjugado, até no Islamismo – como se comprova em seus costumes – pois Adão e Eva também estão presentes no Alcorão.

São Jerônimo
Para (São) Jerônimo, no século IV, “não foi Adão que foi enganado, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão”, conceito repetido vezes sem conta ao longo dos séculos. Foi incutido em criancinhas, invocado sempre que o equilíbrio de poder do marido se via ameaçado e lançado contra mulheres inteligentes e articuladas que pareciam não conhecer o seu lugar.

Diante do obscurantismo da Idade Média, esse conceito negativo sobre a mulher e sua origem em Eva tomou corpo e até o filósofo Tomás de Aquino chegou ao extremo de afirmar: “para viverem juntos e fazer companhia um ao outro, dois amigos juntos são melhores que um homem e uma mulher”. Tudo com o lastro da forte e sanguinária Inquisição Católica, cujos troféus máximos eram extirpar nas fogueiras a bruxaria praticada pelas mulheres e caçar os judeus que causaram sofrimento a Maria.

Dictionaire de Bayle
O primeiro desmonte público – apesar de dissimulado – das ditas fábulas do Paraíso foi lançado pelo filósofo protestante francês Pierre Bayle, em sua obra Dictionaire Historique et Critique lançada em 1697, no crepúsculo do século 17, na sombra de sua proclamação de que “uma Igreja cristã que procurava obter uniformidade mediante instrumentos de tortura e fogueira, violava a própria essência do evangelho”. Os personagens Adão e Eva aparecem em inúmeros verbetes e notas de rodapé sempre sob o olhar cético e destruidor de Bayle.

Seu Dictionaire – trinta anos após a publicação do maior poema de louvor ao Gênesis (Paraíso Perdido, do inglês John Milton) - jogava na lata de lixo lendas que pouco a pouco haviam sido adicionadas à narrativa do Gênesis ao longo de mais de mil anos. A exemplo deste pensador francês, Voltaire, mais adiante em 1764, publicava seu Dicionário Filosófico com diversos verbetes destrutivos sobre o casal pecaminoso do Paraíso. E antes de finalizar esta brilhante obra, o autor não deixa de demonstrar a incompatibilidade do darwinismo com a crença em Deus, que com certeza é incompatível com a crença em Adão e Eva.

O grupo de chimpanzés
Saindo das lendas e ficções da religiosidade e das desconstruções filosóficas, Greenblat leva-nos ao epílogo desta obra analisando as semelhanças humanas com os chimpanzés sob a luz da ciência e do evolucionismo. Pondera uma eventual vida dos símios num paraíso e quais seriam suas reações mediante a nudez, ao conhecimento e demais itens importantes nos argumentos paraisionistas.

E após uma demorada e detalhada observação de um grupo completo de chimpanzés (crianças, jovens, adultos e velhos) em seu habitat natural, junto com outros cientistas, notaram que eles possibilitaram ver como seria viver sem o conhecimento do bem e do mal, da mesma forma como vivem sem sentir vergonha e sem saber que estão destinados a morrer. E conclui: “Eles ainda estão no Paraíso.”. Mas isso acontece porque formamos nossa ideia do Paraíso a partir de noções oriundas do nosso conhecimento do bem e do mal. “Nós já caímos; eles, não.”.

Stephen Greenblatt
Assim, como o mito de Adão e Eva está no cerne da nossa formação religiosa e cultural, deixando suas marcas através dos séculos, de vários pontos de vista – psicológico, artístico, teológico -, a trágica fábula determinou o modo como lidamos com o amor e a morte, a culpa e o desejo, e moldou de forma definitiva nosso destino.

Ascensão e Queda de Adão e Eva, apesar de tratar de um assunto tão sério, é uma obra eletrizante de fácil leitura e compreensão, passível de ser contestada somente por outros cientistas e estudiosos isentos, mas jamais por religiosos, por razões óbvias de defesa dos pilares das principais crenças religiosas dominantes.

Valdemir Martins
25.06.2020

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

23 de jun. de 2020

A assustadora e reveladora batalha de Londres ****


Londres em 1854
Em meados do século XIX, a cidade de Londres era a mais populosa do mundo, concentrando, só no distrito de Berwick, 108 habitantes por km², enquanto, por exemplo, Manhattan abriga hoje algo em torno de 25 habitantes por km². A quantidade de dejetos humanos concentrados no espaço metropolitano infligia a Londres uma fedentina sem par, uma vez que a maioria das fezes era apenas recolhida pelos chamados catadores, que as vendiam para fertilizar as hortas e pomares das redondezas. Não havia sistema de esgoto e os penicos cheios eram despejados pelas janelas.

Broad Street onde tudo começou
Este é apenas um dos assuntos de que trata o livro O Mapa Fantasma, de Steven Johnson, escritor de ciência norte americano que transformou um episódio da história da ciência numa narrativa eletrizante, demonstrando como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles. No mundo de hoje, com desinfetantes específicos, medicamentos adequados, sistemas de canalização e tratamento de esgoto e, enfim, com saneamento básico, não se tem a menor noção do que eram, há pouco mais de um século e meio, as condições de insalubridade até dos mais nobres em todo o mundo.

A bomba d'água maligna
Este livro, nesta época de pandemia do Coronavírus, torna-se uma leitura bastante interessante para demonstrar, de forma dramática e eficiente, como um vírus ou qualquer bactéria contamina com facilidade a população e a importância da prevenção e controle. Nele é demonstrado, por exemplo, a importância das bactérias e que, diferentemente dos vírus, sem elas não haveria vida neste planeta. Igualmente, Johnson explora o assunto e alerta para o risco de pandemia a partir da evolução e adaptação do vírus A1N5 (gripe aviária) no ser humano, o que provavelmente aconteceu com o aparecimento do Covid-19.

Mapa pioneiro de Snow no jornal
Dr. John Snow
Voltando a Londres, um dia em agosto de 1854, no populoso Soho, uma bebê de seis meses começa a vomitar e evacuar fezes líquidas e esverdeadas. Sua mãe, seguindo as normas de higiene da época, lavava suas fraldas e panos num balde e depois despejava seu conteúdo pestilento (com Cólera) numa fossa que desaguava no Tâmisa, rio que cruza a parte mais populosa da cidade e em cujas margens trabalhavam catadores de ossos, de fezes, de ostras, junta-trapos, lameiros, exploradores de esgotos, lixeiros, limpadores de fossa, cata-velas, cata-bagulhos entre outros. Mas o rio famoso também abastecia a cidade de água “potável” e o contágio pelo vírus do Cólera foi inevitável, provocando a maior epidemia de todos os tempos.

Esgoto pioneiro de Londres
A partir desse episódio, a narrativa nos leva à descoberta do tratamento inicial do Cólera e à obrigação do governo britânico de desenvolver um sistema de esgoto para a cidade, que hoje serve de modelo tanto para as metrópoles como para as pequenas cidades pelo mundo.
Stephen Johnson


E nessa balada, com ritmo, sarcasmo e inúmeras comparações com situações da atualidade, o autor nos proporciona diversas e agradáveis informações sobre nossa evolução social, científica e tecnológica, numa linguagem coloquial muito envolvente. Traz, inclusive, dados históricos muito interessantes, como, por exemplo, o fato de a Rainha Victoria ter exigido que o parto do seu quarto filho fosse indolor, usando as técnicas do Dr. John Snow – não o da série Game of Thrones –, mas o descobridor do clorofórmio como anestésico e das origens do Cólera.  Impossível não refletir sobre nosso passado, nosso tempo e nossa vida durante a agradável leitura desta obra.

Valdemir Martins
08.06.2020









6 de mai. de 2020

Como um bom vinho no primeiro gole *****


Como um bom vinho no primeiro gole, ler Um Cavalheiro em Moscou, do novelista norte-americano Amor Towles, pode enganosamente parecer-nos, em princípio, um pouco adstringente. Seu primeiro quinto desenrola-se vagaroso e a seguir começa a pegar o ponto, como se diria na culinária. Mas o vigoroso esplendor que se segue num crescente marca esta obra como uma das mais importantes da literatura deste começo do século XXI.


Towles escreve como um verdadeiro cavalheiro literário, com elegância, idéias e colocações refinadas, farta demonstração cultural, dramaticidade contida, fina ironia e riqueza de situações e personagens marcantes e inesquecíveis. Mas, para se ler este romance literário é importante que se tenha alguma noção da história do começo do século passado, em especial na Rússia; de gastronomia e enologia clássicas, etiqueta à mesa, moda, mobiliário, cinema, literatura e música da época.

Entrada e recepção do hotel
Hotel Metropol Moscow
O palco desta deslumbrante história é o lendário Hotel Metropol, uma joia de cinco andares da art-nouveau em Moscou, local onde desfilaram as maiores celebridades e personalidades do século 20. Situado próximo à Praça Vermelha, em frente ao glamouroso Teatro Bolshoi, foi construído por um industrial e mecenas na virada do século passado. Nele o leitor passa a conviver com o protagonista, o incomparável Conde Aleksandr Ilitch Rostov, condenado a lá viver em prisão domiciliar pelos burocratas do então regime revolucionário comunista.

Lobby do hotel
O flagrante abismo entre a cultura aristocrática russa czariana e os rudes e rudimentares atos e costumes bolcheviques é por ele explorado de forma a valorizar cada lado na sua forma superlativa. A fascinante Moscou em transição mostra que seus monumentos e cultos criados por gestores, artistas e agentes culturais refinados são tão valorosos que nem a brutalidade camponesa e inculta de seus novos dominantes consegue destruí-la.

Elevadores e escadaria
A suite da Mme. Salgueiro
Contracenam com o Conde, de modo fluente e dinâmico, duas intrigantes e inteligentíssimas meninas, escritores, diplomatas, músicos, jornalistas, os dedicados e fiéis funcionários do Metropol, atrizes e bailarinas, camaradas do novo regime e um gato zarolho.

Restaurante Piazza
Num rico colóquio entre o protagonista e um simples operário em cima de um telhado mereceria um quadro emoldurado por nobre material, se numa página coubesse.  Nele, sem duvida, consegue-se saborear um delicioso pão preto com mel e café fresco. Nada escapa à intensa criatividade de Towles, desde os nativos cães borzóis, às quarenta variedades de maçãs soviéticas e a delicadeza das flores dos Lilases das praças moscovitas. Por outro lado, não deixa de protestar, nas entrelinhas, contra o Prêmio Pulitzer de Jornalismo atribuído ao americano Walter Duranty (NY Times), que relatava “apenas rumores” de fome na URSS enquanto 32 milhões de pessoas morriam de inanição, massacradas pelas ações de coletivização do campo por Stálin, na Grande Fome de 1932/33, principalmente na Ucrânia.

Hall do Restaurante Boyarskiy
Towles atravessa o tempo revelando o isolamento e a estagnação cultural, tecnológica básica e de costumes da União Soviética, chegando a uma brilhante conversa de cama onde põe em cheque também a evolução humana uma vez que o povo soviético, quase na década de 1960, desconhece o aspirador de pó e a máquina de lavar roupas enquanto seu governo apenas reinventa o comum, produz armas modernas e uma usina atômica. Demonstra, ainda, que de nada serve uma vasta cultura pessoal se o individuo não acompanha o novo, seja nas artes, na ciência, na vida ou na política. Além de surpreendentemente nos ensinar o valor universal da companhia de uma criança: “...lembre-se que ao contrário dos adultos, as crianças querem ser felizes. Por isso, ainda têm a capacidade de tirar grande prazer das coisas mais simples.”

Como um autêntico romance moderno, Um Cavalheiro em Moscou tem uma construção dinâmica, nem parecendo um romance de formação, graças ao uso inteligente e agradável de flash backs muito bem encaixados que vão intermitentemente, sem alterar o ritmo da obra, apresentando a vida do protagonista. Diferentemente de livros tradicionais e até consagrados, Towles amarra-nos à sua narrativa sem floreios ou volteios, fazendo com que a leitura evolua prazerosamente, sem os aborrecimentos de descrições cansativas e detalhes desnecessários ou sensacionalistas.

Amor Towles
O bostoniano Towles torna-se, assim, uma agradável surpresa literária contemporânea. Este seu livro ficou mais de quarenta semanas como mais vendido nos EUA e foi consagrado o livro do ano (2016) pela crítica ianque. Recomendo sua leitura, com persistência na parte inicial como quem estivesse lendo a obra de um consagrado escritor russo. Logo a seguir, o leitor terá que acompanhar o dinâmico texto e frenética história de um protagonista russo escrito por um talentoso e promissor escritor americano.

Valdemir Martins
09.04.2020

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

6 de abr. de 2020

Primo Levi sempre nos limites da morte. ***


O escritor italiano Primo Levi inicia o que é considerado um dos mais importantes trabalhos memorialísticos do século XX às vésperas da sua morte. Só que, para seu gaudio – e de seus  milhões de leitores – no livro É Isto um Homem? (Se questo è um uomo) seu destino real é inúmeras vezes adiado, fazendo com que a obra desenrole-se permanentemente nos limites da morte.

Tive a oportunidade de ler trabalhos brilhantes sobre os holocaustos judeu e ucraniano, onde esses genocídios aniquilaram em onze anos, seis milhões de judeus por ordens de Hitler e, em apenas dois anos - no chamado Holodomor -, doze milhões de ucranianos famélicos por ordem de Stálin. Os judeus, arrancados de seus lares e jogados em guetos, campos de concentração e extermínio; os ucranianos, impiedosamente massacrados em seus próprios lares e quintais.

Stálin: tão cruel quanto Hitler
Obras como Treblinka (Jean-François Steiner), Mila 18 (Leon Uris), A lista de Schindler: A verdadeira história (Mietek Pemper), A Menina que Roubava Livros (Markus Zusak), As Mulheres do Nazismo (Wendy Lower), A Noite (Elie Wiesel), A Fome Vermelha (Anne Applebaum), muito bem descrevem esses tétricos episódios da história humana. Mas poucos deles são tão memoriais e sensíveis quanto o texto brilhante de Levi.

Auschwitz
Sua escrita é sentimental, apreende as nuances do bem e do mal demandadas pelas mentes cativas e as dominantes. Descobre e revela poesia em meio ao caos, à bestialidade e ao aniquilamento. Sua escrita, assim como ele, sobrevive, resfolega, brota em arranjos plenos de humanidade em meio à crueldade. Supera o simples e engaja-se liricamente no intrincado meandro de mentes egoístas, poderosas, frígidas e violentas.

Primo Levi
Ler "É Isto um Homem?" é ingressar no sentimento objetivo e claro do autor: “Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos.”

Uma obra para se aperfeiçoar a história e o conhecimento sobre o humano, onde nada é bíblico nem fábula. Esta é a história real que todo ser humano, apesar da evolução, tem que conhecer e admitir em sua idade adulta, já que é inconcebível conhecê-la na idade escolar. Afinal, é um aprendizado sobre a que extremos o homem pode chegar no tratamento a seu semelhante.

Valdemir Martins
17/02/2020.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!