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6 de fev. de 2021

O Terror: realmente, um livro para fortes. *****

Leitores ansiosos e impacientes não devem ler O Terror, primeiro livro do premiado escritor estadunidense de ficção científica e terror Dan Simmons lançado no Brasil. Trata-se de uma caudalosa obra de aventura histórica, baseada em fatos reais, entremeada de uma aterradora fantasia, especialidade de Simmons. 

E não há como escapar: para relatar a torturante e perigosa viagem histórica do capitão inglês Sir John Franklin, em 1845, à procura da cobiçada Passagem Noroeste, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico através do Círculo Polar Ártico, há a necessidade de detalhes. E eles são fundamentais para se entender o que deu certo e errado nesta famosa peripécia oficial da Real Marinha Britânica há quase dois séculos.

Entre o certo e o errado, acontece o pior: um ser tenebroso passa a fazer parte dos personagens e intromete-se no enredo, tornando tudo muitas vezes pior do que poderia ser. Isto, numa região inóspita, enregelante, extremamente mutante, onde nem a bússola funciona por estarem quase diretamente sobre o polo magnético, no extremo norte do Canadá. Assim, para o leitor não ficar tão desorientado quanto a tripulação, recomendo abrir o mapa da região na internet e ilustrar-se dos locais de agruras dessa gente. Vale a pena.

Para reconstituir essa história, Simmons enreda-nos numa atmosfera sufocante, congelante e muito, muito escura e obscura, numa época de tecnologia e medicina muito elementares e limitadas. A aflição é permanente. O leitor participa como ouvinte incrédulo das conversas, relatos e reuniões dos comandantes e oficiais das duas reforçadas embarcações Erebus e Terror, as mais fortes para enfrentar o gelo glacial e munidas com os equipamentos mais modernos da época.   

O trabalho de pesquisa histórica, geográfica e científica de Simmons é brilhante, reinventando de maneira original uma das mais sedutoras histórias da exploração marítima no século XIX. Conduz-nos à fascinante narrativa quase lendária do Sir John Franklin, num crescente de suspense, incredulidade e terror. Pela permanente condição de ambiente e situações inóspitas, essa incredulidade é permanente, principalmente para nós de um mundo de tecnologia que se renova a cada hora e por não conhecermos uma atmosfera extremamente gélida como a deste livro.

Simmons não escreve tão bem quanto Jules Verne, mas esta aventura nada deixa a desejar às do consagrado escritor francês, reforçadas pela persistente névoa de terror que envolve o texto. O autor é hábil ao estruturar o enredo, partindo de uma história real documentada em registros oficiais da Marinha Real Britânica e dos diversos diários dos oficiais da expedição. Retrospectivas e belos momentos de recordações, além da fantasia, descontraem e iluminam o que poderia ser um chato relato de viagem. É um incrível livro de aventuras que, superados os 5% mais pesados e iniciais do texto, quem gosta do gênero não consegue largar a leitura.

Porém, próximo à metade do livro, um capitão, em sua condição de abstinência, entra em delirium tremens, com uma sequência aborrecida de visões, desestimulando até a continuidade da leitura. Mas não se engane. A partir daí a obra recrudesce e entra num ritmo alucinante, descortinando efetivamente o terror e o desespero, dominando o leitor com narrativas sufocantes, escatológicas, enregelantes e, enfim, insuperáveis em sua constância de crueldade. Realmente, um livro para fortes.

Depois de muita escuridão ao longo do livro, Simmons brinda-nos com uma linda lenda esquimó, trazendo luz, então, a toda a escuridão que atravessamos na leitura. E um final deslumbrante como uma aurora boreal.

O livro gerou a antológica minissérie de televisão The Terror, do Ridley Scott, que estreou nos Estados Unidos e no Canadá em 2018. No Brasil, pode ser vista no streaming Amazon Prime. Mas, não recomendo a série por ser extremamente condensada, perdendo detalhes riquíssimos do livro e desvirtuando seu enredo. Seu final óbvio, diferente do livro, foi elaborado para pessoas extremamente racionais, sem a beleza que a sensibilidade dos leitores pode desfrutar com o ápice da obra escrita.

Valdemir Martins

03. FEV. 2021

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Local da tragédia; 3. O navio Terror encalhado; 4. Capitão irlandês Francis Crozier; 5. A esquimó Silna; 6. Barco salva-vidas com sobreviventes; 7. O autor  Dan Simmons.

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24 de jan. de 2021

O Tigre Branco desencanta a exótica pátria dos sáris coloridos *****

Há cerca de uma década falava-se – e escrevia-se – muito sobre os países emergentes na mídia. E dentre eles, o de maior destaque era a Índia, imenso e tradicional país do ocidente asiático. Assim como no Brasil ou na Rússia, ou mesmo no México, a miséria, a ignorância e a corrupção estão impregnadas na sua história.

Mas que importância tem isso face ao desenvolvimento econômico e tecnológico de um país emergente como a Índia? A força e os interesses dos grupos dominantes mantêm o status quo indiano para aumentar ou manter seu poder. E é isto que o então estreante e desconhecido escritor Aravind Adiga denuncia neste romance único, diferenciado e cheio de humor negro, ironia e realismo cruel, abominável e inescrupuloso. Em O Tigre Branco (2008) a Índia de Adiga desencanta e brutaliza a imagem da exótica pátria dos sáris coloridos, da ioga e da elevação espiritual, por mais força e tradição que tenham seus gurus e líderes iluminados como Ghandhi. A corrupção, por exemplo, escorre entre as letras. 

Sua ficção é real – por mais incongruente que isto possa parecer - extraída da mais honesta realidade de um país dividido socialmente entre o norte da Escuridão, onde um povo quase animal nasce, vive e morre às margens do lodo do Ganges, e o sul da Luz, do desenvolvimento calcado na exploração da miséria e da ignorância. Com Adiga, desmitifica-se e desmistifica-se a Índia: o glamour sobre o brejo.

Numa história de forte ironia e repugnante sarcasmo, o protagonista Balram Halwai relata o trajeto bastante inusitado que percorreu para subir na vida e conseguir se tornar alguém importante no cenário nacional: assassinar e roubar seu patrão. Em cartas dirigidas ao primeiro-ministro chinês, Balram – ou Munna, como era chamado quando menino - revela uma visão crítica aguçada da sociedade indiana e do mundo contemporâneo, e justifica seu crime classificando-o como um ato de puro empreendedorismo. Com cinismo, ele desmonta o mecanismo da própria ascensão social.

O leitor vai se surpreender a cada passo do primoroso romance de estreia do jovem autor indiano Aravind Adiga, vencedor do Man Booker Prize 2008, um dos maiores prêmios mundiais do meio editorial. Não sem motivo, “O Tigre Branco” foi considerado pelos jurados um livro de imenso valor literário e extremamente original, por apresentar aspectos da Índia normalmente ignorados e personagens que revelam um lado humano desconcertante.

Realmente, nada a ver com a bazófia e a mesmice apresentadas no folhetim da Globo (Caminho das Índias) apresentado na época para a maioria inculta do povo brasileiro, onde a autora denota ter pesquisado somente as tradições “sócio-culturais-religiosas” da incrível, inesgotável e incomparável Índia. Ao se falar dela, não se pode pecar por ser breve, principalmente quando se usa o nome do país – apropriadamente - no plural.

O tigre branco é um animal típico do país, raro por nascer um a cada geração, como um albino. O protagonista Balram Halwai é assim designado por sua família e amigos por ser, desde pequeno, uma pessoa diferenciada em sua casta. E ele próprio descobre e assume sua identidade predadora ao visitar e conhecer a fera num zôo local. Como escreveu a revista Veja, “Aravind Adiga constrói um personagem sem caráter, que se torna símbolo extremo de um impulso selvagem de liberdade. Um alerta para os que vivem na luz.”

Segundo Florência Costa, então correspondente de O Globo em Nova Déli, “A Índia que Adiga mostra é feia, inescrupulosa, escura como os apagões diários de horas a fio que atormentam a vida dos indianos nas metrópoles. Muito distante do glamour sugerido na propaganda “a Índia que brilha”, que ganhou o mundo há treze anos.” Aravind Adiga nasceu em Madras, na Índia, em 1974 e, aos 34 anos, escreveu incontestavelmente sobre o que realmente conhece.

Valdemir Martins

23.01.2021

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O norte, do lodo; 3. O sul, do progresso; 4. O tigre branco real; 5. o autor Aravind Adiga.

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17 de jan. de 2021

Caixa de Pássaros: a alternativa é enxergar na escuridão ***

Pelo ineditismo da história e pela dificuldade de imaginarmos a situação de nada ver, sem sermos cegos e sem a experiência e o aprendizado desse deficiente visual, o livro de estreia de Josh Malerman, Caixa de Pássaros, sem paradoxismo, tornou-se um best-seller da noite para o dia. Trata-se de um thriller psicológico tenso e quase aterrorizante, que explora a essência do medo. 

Um texto viciante que quando iniciamos não queremos parar, bem no âmago das mais tensas novelas de Stephen King. Apesar de acharmos inicialmente algumas situações um pouco forçadas, a partir do momento em que imergimos na leitura entendemos o porquê de as situações assim o serem. Não há alternativas. Andar e se virar na escuridão auto imposta ou morrer.

Numa narração alusiva, este thriller pós-apocalíptico não perdoa vidas. É massacrante. E não bastasse o terror imposto pelo surto inédito e avassalador, a protagonista e os principais personagens ainda têm que lidar com a falta de confiança um no outro, a insegurança das situações impostas e com os desconhecidos e imprevisíveis aspectos dos sons e movimentos do ar. Coração sempre na boca ou na mão; haja fôlego.

Para salvar a família vale tudo. Só que a protagonista não é desonesta e hostil como a maioria dos sobreviventes. Resta, então, usar a inteligência que terá que prevalecer sobre incidentes, imprevistos, traições, mistérios e desafetos.

Quatro anos depois, com quase todos mortos, surge uma nesga de esperança. Começa então uma nova aventura cheia de percalços, surpresas e terror. A esperança passa a ser o fio condutor.

A escrita de Malerman é literariamente pobre, mas as estruturas do texto e do enredo estão muito bem construídas, com uma linguagem objetiva, sem rodeios e descrições prolongadas. Uma obra dinâmica no melhor estilo de Jo Nesbo e James Patterson.

Não deixe de ver!




Valdemir Martins

16.04.2018

Fotos: 1. capa do livro; 2. violência para sobreviver; 3. procurando alternativas; 4. salvando a família; 5. Josh Malerman

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10 de jan. de 2021

Torto Arado: a revelação de um grande talento brasileiro. *****

Mudos ou não, o baiano Itamar Vieira Júnior faz seus pouco conhecidos personagens falarem em sua brilhante obra Torto Arado, recém-ganhadora do Prêmio Oceanos 2020, a mais importante láurea literária da Língua Portuguesa. Não bastasse a proeza, a obra de estreia de Vieira já havia triunfado em 2018 – ano de seu lançamento - ao arrebatar o Prêmio Leya. 

Não há diálogos grafados no texto, mas eles proliferam no enredo na medida em que o leitor vai se envolvendo – sim, pois neste livro você não apenas lê, mas envolve-se fortemente – na história da família do Seu Zeca Chapéu Grande e da comunidade local de Água Negra, na Chapada Diamantina, Bahia. 

A escrita extremamente simples e límpida de Vieira esconde uma história e um ambiente rural brasileiro complexos e pouco conhecidos. A humildade e a inocência do rico elenco de características únicas e comoventes vão transformando-se numa epítome de ótimas reflexões da vida, principalmente pelas irmãs que narram a maior parte desta história. 

Vieira consegue a proeza de escrever como mulher, uma vez que as contadoras dos dramas familiares são duas jovens e uma criatura encantada. Nas narrativas apresentam-se a tradicional estrutura rural do sertão brasileiro e seu legado ainda com alguns resquícios escravocratas. 

Por ter formação e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos e por sua experiência em trabalhar com comunidades típicas e originais da região – claro, além do talento literário -, o autor alcança um nível autêntico de expressão, de denúncia e de protesto, sem a necessidade de mimicar, tornando claras as vozes de deficientes, afrodescendentes, indígenas, mulheres, os ainda semi-escravizados e os que vivem em servidão. Apesar do regionalismo do romance, a linguagem clara e sucinta de Vieira subentende um tesouro de universalidade somente encontrado em grandes mestres brasileiros nesse tipo de narrativa, como Graciliano, Rosa, Nassar, Lins do Rego e Rachel de Queiroz. 

Na saga desta família e de sua comunidade quilombola as injustiças crescem na proporção de suas proles. Os costumes simples e paupérrimos podem até chocar alguns, da mesma forma que revolta outros. A narrativa de Vieira sobre o definhamento e passamento de um dos personagens-chave, por exemplo, é arrebatadora e comovente, tanto quanto a descrição do velório que a segue, com seus sons, gestos, costumes. Emocionante. 

O lirismo nas descrições da natureza, das crenças, das pessoas, das tipicidades, somados à história dos povos do sertão com suas peculiaridades exíguas ditadas pela tradição e a violência dos coronéis, tornam a obra um testemunho fundamental para se entender importantes aspectos dos pouco conhecidos quilombolas.
 
Guarde este nome: Itamar Vieira Júnior. Estamos felizmente diante de mais um grande talento literário brasileiro. Um escritor de verdade, com estrutura, forma e conteúdos dignos de figurarem na ABL, ao contrário de alguns poucos que presentemente lá estão.

Vieira honra aqui o nome de seu genitor, sua formação e seu cargo público. Espero que assim continue, sem despencar para o polemismo e a militância. Precisamos dele no rol dos grandes escritores brasileiros. Seja bem-vindo! 

Valdemir Martins
10.01.2021

Fotos: 1. capa do livro; 2. quilombola típico; 3. tapera da comunidade rural; 4. cerrado baiano; Itamar Vieira Junior.

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2 de dez. de 2020

Leia desconfiando de todos; a suspeita ficou muda. ***

Tive uma sensação muito estranha ao ler
A Paciente Silenciosa, do cipriota- inglês Alex Michaelides, pois este drama de suspense bem psicológico prende-nos na leitura e simultaneamente a desestimula pela pouca qualidade literária da obra.

Trata-se de uma trama intrincada e inteligente, estruturada de forma intrigante, como numa obra de Agatha Christie, levando-nos a desconfiar praticamente de todos os personagens num assassinato cuja esposa é a maior suspeita, apesar de, reconhecidamente, amar demais o marido encontrado chacinado.

A determinação do protagonista em fazer a suspeita falar e desvendar a dúvida se ela realmente atirou no marido o arrasta para um caminho tortuoso que sugere que as raízes do silêncio da esposa são muito mais profundas do que ele jamais poderia imaginar. E diante da verdade, ele vai titubear.

Assim, o autor elabora um final eletrizante, entre mistério e drama, levando o leitor a questionar tudo o que acabou de ler.

Esse thriller psicológico provocativo de estreia revela Alex Michaelides como um grande autor para quem gosta do gênero. E o coloca na lista dos grandes vendedores de livros policiais modernos, como Jo Nesbo e James Patterson, autores que produzem thrillers expressos, sem muita preocupação com o valor literário.

A obra teve a produção de sua versão cinematográfica interrompida em função da pandemia do Covid-19.


Valdemir Martins

02.12.2020

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9 de nov. de 2020

Mesmo na mais escura das noites existe luz.


Pelas próprias condições econômicas, força e união do povo e das colônias judaicas pelo mundo, deram-se o devido valor ao atroz Holocausto, hoje erroneamente considerado o maior genocídio da história mundial. Ou até, como manifestam alguns governos muçulmanos radicais, o Holocausto é um mito. Mas, quem conhece bem a História sabe que ele é real e que, além dele, outros massacres monumentais, como o Holodonor esfamélico na Ucrânia, o extermínio irracional e ilógico cometido por sanguinários ditadores como Mao Tse Tung na Revolução Cultural chinesa e Joseph Stálin na revolução bolchevique soviética e na II Guerra Mundial, ultrapassam qualquer imaginação humana. 

Apesar da força genocida dos atos de Hitler, os de Mao e de Stálin nada deixam de vantagem para os nazistas. Isto pode ser lido e entendido em muitos livros que tratam do assunto. 

Assim como marcou a vida de milhões de russos e de povos dominados pelos soviéticos em todos os tempos, perda, sofrimento, medo e terror marcaram a vida dos povos forçadamente agregados ao império comunista soviético. Desde as dinastias czaristas até a Perestroica, passando pelo sanguinário regime comunista estalinista, nada mudou. 

Trens para os gulags
E é disso que trata o livro A Vida em Tons de Cinza, da lituano-americana Ruta Sepetys. A barbárie na invasão da Lituânia pelos comunistas na década de 1940 é aqui representada pela história de uma família lituana e seus vizinhos nesse execrável capítulo da História, representando a vida e o destino de 20 a 60 milhões de pessoas (dependendo da fonte), de diversos povos, que passaram pelas mãos sanguinolentas dos bolcheviques que resultou no extermínio de um terço dos povos do Báltico durante o reinado de horror stalinista. 

Numa linguagem simples e direta, pelo fato de a narração ser efetuada por uma jovem, Sepetys – após entrevistar vários sobreviventes - registrou criativamente este romance dramático. Transporta-nos para lugares às vezes lindos e na maioria das vezes horrorosos, entremeando, no drama, fatos poéticos nas lembranças da protagonista. E assim cativa nossa leitura e nos faz devorar o livro ansiosamente. 

Aprisionada em gulags da Sibéria com sua mãe e seu irmão, a protagonista de quinze anos – valendo-se de seus incríveis dotes artísticos – tenta contato com o pai através de imagens por ela desenhadas, sem saber se ele sobreviveu. E, como se não fosse suficiente, suas agruras e barbaridades continuam até a região ártica, onde apresenta-nos uma história devastadora pela violência e humilhações que vivenciam. 

Ruta Sepetys
Apesar de serem hoje nações prósperas, isto é o que restou dos povos bálticos enquanto seus países eram varridos do mapa no século passado: história. Uma história extremamente desumana que é-nos apresentada de maneira direta neste excelente romance de Ruta Sepetys. Ela consegue, contando-nos apenas o drama de um grupo de expatriados, expor claramente a barbárie deste genocídio pouco conhecido da história. 

Valdemir Martins 

02.11.2020

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2 de nov. de 2020

Até onde pode chegar um ato de louca paixão ****

O consagrado escritor norte-americano Scott Turow pressentiu no jovem Raphael Montes uma promessa brasileira como grande escritor de policiais, após ler Suicidas, obra de estreia do novo talento, em 2011. Montes, então, veio evoluindo a cada obra tornando-se também um escritor policial e de suspense de sucesso em terras brasileiras.

Scott Turow
Em seu romance Dias Perfeitos, de 2014, - uma história de amor obsessivo - tudo começa muito ameno, comum e óbvio. Aos poucos cresce torna-se grudento e você não consegue parar de ler para saber até onde pode chegar um ato de louca paixão. Nesta obra bem estruturada, percebe-se claramente que Montes ainda procura por uma linguagem literária mais consistente para marcar seu estilo. Porém seu enredo é estonteante, surpreendente a cada página.

Aqui ele demonstra – desde cedo – sua capacidade de esmiuçar uma mente doentia e de explorar dosada e adequadamente sua psique. Numa história vibrante, dinâmica, as peripécias do protagonista nos gratificam com reviravoltas surpreendentes, situações inacreditáveis. Algumas poucas até forçadas ou improváveis, o que demonstra o autor ainda em fase de amadurecimento. Um final morno, como no início, pode até decepcionar alguns leitores.

Ilha Grande
Mas, é espantoso o nível de crescimento do enredo e envolvimento proporcionados por Montes, chegando a um ápice de loucura e situações macabras, escatológicas e de terror dignas de Clive Barker e Stephen King, neste, lembrando a obra Misery. O inteligente e paranoico protagonista parece-nos às vezes um parvo a sonhar grandiosidades e felicidades pretensamente impossíveis. Mas caindo na realidade das situações bastante criativas do autor, apresenta-se mais como um frio macho assexuado e um personagem sombrio com fortes indícios de psicopatia.

O que parecia um inconsequente encontro casual num churrasco de conhecidos num domingo transforma-se no pesadelo brutal para os dois protagonistas de almas atormentadas e para todos os personagens principais da obra. E, claro, para os felizardos leitores que escolheram ler Dias Perfeitos.

O livro já ganhou o mundo sendo comercializado para catorze países e os direitos da obra foram vendidos para o cinema, em produção nacional a ser dirigida por Daniel Filho.

Valdemir Martins

27.10.2020

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15 de out. de 2020

Sobre Como um Monstro é Criado *****

Uma façanha incrível consegue o estreante – e já premiado - escritor sueco Niklas Natt och Dag em sua obra inicial 1793: você lê no escuro. Sim, é a incrível sensação que temos ao ler este eletrizante e ousado thriller noir, um dramático romance policial histórico transcorrido em Estocolmo no final do século XVIII.

Desde os ambientes descritos, sejam numa taberna, num quarto ou num escritório, até as peripécias em resgate de corpo, batalhas, investigações ou caminhadas, tudo sugere escuridão ou pouca luz, tornando seu universo muito pesado, apesar da leitura fácil e leve. Esse clima leva intencionalmente o leitor ao condicionamento do ambiente que o autor quer que se leia a obra. E você passa a participar dela no intenso frio e nas sombras.

Até os dois protagonistas e demais personagens são carregados de peso, com suas dores, sujeiras, doenças, bebedeiras, roupas e defeitos físicos. E assim, proporcionam uma perturbadora leitura sempre mais acentuada a cada página. A trama desenvolve-se em Estocolmo e seus arredores, com um pit stop na Revolução Francesa. Aqui, num drama histórico, a capital sueca mais parece estar na Idade das Trevas ou Idade Média e não no final do século XVIII, em plena modernidade histórica. Tudo é extremamente grotesco, escuro, fétido, mórbido, insalubre: outro desafio para o leitor.

O fio condutor, um crime bárbaro, leva-nos aos excessos do poder. Não dos grandes poderosos, mas dos menores, os mais perigosos e contundentes, causando-nos revolta e indignação de níveis extremos. Um antídoto intenso àqueles arautos que atualmente cultuam o empoderamento de grupos em suas diversidades.

Claro que ler 1793 incomoda. É uma obra chocante. Natt och Dag equivale e às vezes supera, em terror, o aclamado Stephen King. E é insuperável nas descrições mundanas e escatológicas. Mescla suspense e pressão psicológica de maneira magistral e, assim, prende o leitor naquele ponto de não conseguir largar a leitura. Sem obviedades, surpreende a cada página com um realismo cru, pungente e muitas vezes repugnante. Para nós latinos, a única dificuldade desta leitura reside nos nomes de pessoas e locais, algo extremamente difícil, passando a ser mais um desafio no livro.

Este é um surpreendente thriller histórico que “retrata a capacidade de se ser cruel em nome da sobrevivência ou da ganância, como também a capacidade para o amor, a amizade e o desejo de um mundo melhor.”

Hoje, em tempos de hipersensibilidade social, onde muitas pessoas revoltam-se gratuitamente ao se sentirem ofendidas e agredidas por simples palavras ou imagens na tv ou nas redes sociais, levando consigo irracionalmente seus grupos de convívio de raça, religião e opção sexual, é importante que 1793 seja lido. Niklas Natt och Dag irá apresentar-lhes o que realmente é sofrimento, sujeira, ignorância, intolerância e injustiça.

Nesta era em que eternas desigualdades são totalmente visíveis, aprender como um monstro é criado em época de predominância dos monstros talvez amenize essa injustificada e incipiente ânsia por justiça social em confortáveis tempos de internet.


Valdemir Martins

14.10.2020 

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Obs: segundo o próprio autor, este é o primeiro livro da trilogia denominada Bellman Noir. O segundo livro, 1794, já foi publicado na Europa e o terceiro está no prelo.


2 de out. de 2020

A luminosidade em seres tão mergulhados nas trevas ****

Após ler os excelentes “A Estrada” e “Onde os Velhos não Têm Vez” (este, base para o filme ganhador do Oscar em 2007), li o impressionante Meridiano de Sangue ou O Crepúsculo Vermelho no Oeste, do norte americano Cormac McCarthy. Um faroeste diferenciado, extremamente realista e chocante. Um western reinventado, onde o absurdo e a alucinação se sobrepõem à realidade.

O calor e ...

Aqui, o leitor sente o terrível calor e secura do inóspito oeste norte americano e do norte mexicano, bem como seu frio extremo mais ao norte; sente a terrível fedentina dos corpos imundos dos personagens e seus piolhos; gruda no barro e no sangue de inúmeros mortos; arrepia-se e fica abalado com carnificinas de índios e mexicanos protagonizadas por um grupo extremamente violento de americanos desgarrados e desencaminhados de sua pátria, 
deleitando-se em sua monstruosa missão infame contratada por poderosos regionais para eliminar o maior número possível de índios. E, ironicamente, levar seus escalpos como comprovantes.

...o frio do deserto.

Quem lê Meridiano de Sangue não sai a mesma pessoa no final do livro. Intermitentes deambulações pela violência extremamente explícita abalizam o arcabouço desta assustadora obra de McCarthy. Num crescendo, com detalhes meticulosamente sanguinolentos e escatológicos, a violência tropeça sempre nos trechos ou frases de lirismo e poesia, estilo e sabedoria de McCarthy.

O bando

O protagonista não tem nome. De “garoto” ele transforma-se em homem no momento certo do enredo e, para sobreviver, precisa ser tão ou mais violento que seus companheiros e inimigos. Seu co-protagonista, um juiz poliglota, culto, multi prodigioso, às vezes asqueroso e caricato, é na realidade um monstro dentro de toda alucinante violência conduzida pelo perpétuo e ambíguo personagem.

É um majestoso romance noir sobre aspectos cruciantes da história do oeste norte americano, sem concessões à cinematografia: sem John Wayne ou Clint Eastwood ou Jerônimo ou sargento Garcia. Nem Rin Tin Tin. A linguagem do livro, seus personagens, as paisagens, as descrições eventuais de romance de formação, a intensidade dos fatos e seu ritmo alucinante, constroem a grandeza da obra.

Os Apaches

O controvertido crítico literário norte americano Harold Bloom, ao considerar que este romance sobre o western “jamais será superado, escreveu: “A merecida notoriedade de ‘Moby Dick’ e ‘Enquanto Agonizo’ é levada adiante por ‘Meridiano de Sangue’, pois Cormac McCarthy é discípulo de Melville e Faulkner. Eu diria que nenhum romancista norte-americano vivo, nem mesmo Pynchon, oferece-nos um livro tão marcante e memorável quanto ‘Meridiano de Sangue’...”.


No final, com suas ponderações, McCarthy expõe o âmago da obra, em meio aos discursos infindáveis do grotesco juiz Holden, esclarecendo que era contra o vazio e o desespero que o grupo pegava em armas e se refastelava em sangue.

Todos seus personagens são absolutamente humanos com suas obscuridades e brilhos, uns mais outros menos, como todos nós. Mas McCarthy nos faz enxergar “a luminosidade nesses seres tão mergulhados nas trevas”.

Valdemir Martins

30.9.2020

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12 de set. de 2020

Abrindo uma porta sobre a noite. ****

Culpa-se a falha provável da editora, da revisão ou da gráfica ao início da leitura da obra Cemitério de Pianos, do premiado poeta e romancista português José Luís Peixoto, ao perceber-se a narrativa bruscamente quebrada por uma nova, então desconhecida. Uma constante no livro.

Conserto de pianos
Baseado na história da vida real de uma atleta fundista português, o livro não nos fala de esportes, mas das memórias póstumas de seu pai, um competente marceneiro sempre preocupado com os episódios peculiares de sua família; os felizes, os mórbidos e os terríveis. Por três gerações.

O almoço de domingo
A taberna dos vinhos
Abordando um cotidiano que deve ser comum ou similar a muitos leitores, Peixoto intercala-o sempre abruptamente com a mesma história num outro momento, e sempre numa linguagem simples, porém numa construção extremamente criativa e poética, ás vezes rotineira. Peixoto transmite a sensação de que escreve com sofreguidão, atropelando a sequência lógica do drama, resultando numa nova forma de escrever, para muitos, confusa. Para mim, resultado de sua prevalecente predisposição poética. Um encanto para quem curte boa literatura.

A maratona de Francisco
Em certos pontos, as memórias passam a ser do próprio fundista, com retrocessos às memórias do pai. Intermitentes reminiscências da violência doméstica, das paixões incontroláveis e às vezes inconsequentes; das descobertas auspiciosas e das labutas constantes, ao fim, regadas por bons canecos de vinho.

José Luís Peixoto
Peixoto tem uma extraordinária forma de interpretar o mundo, expressa pelas suas escolhas certeiras de linguagem e de imagens. Aqui, o fantástico é contado com a naturalidade do quotidiano. Ele escreve com grande sentido de linguagem poética e grande domínio da língua portuguesa. Tendo pianos como liame da maior parte dos dramas da obra, Peixoto coloca um anjo, quase ao final, a desconstruir o protagonista e a concluir o atormentado sofrimento do maratonista Francisco.

Valdemir Martins

09.09.2020