Espontaneamente, seria difícil à maioria das pessoas escolher a leitura
de um livro sobre a República Unida da Tanzânia, antigos países africanos
Tanganica e Zanzibar, unidos em 1964. Havendo a motivação de um Prêmio Nobel de
Literatura, como no meu caso, decidi ler Sobrevidas, do
tanzaniano Abdulrazak Gurnah, laureado em 2021. E não me arrependi.
Com um início pesado, farto em nomes e parentescos, a obra vai
desenrolando-se como um novelo e revelando a brutal história do retardatário
colonialismo alemão na África Oriental nos primórdios do século XX. Numa
construção de texto diferenciada, fugindo do óbvio, Gurnah não deixa de nos
surpreender com fatos inesperados e que vão transformando agradavelmente os
rumos do romance.
A utilização impiedosa dos jovens locais recrutados e treinados para
compor batalhões violentos contra seu próprio povo e numa guerra colonial
contra invasores ingleses, denuncia a opressora civilização colonialista europeia visando a consolidação de impérios pelo mundo. E os países africanos - antes
dos asiáticos - sem exceção, foram os que mais sofreram esse massacre humano e
cultural brutal, mudando os destinos de grande parte de suas populações. Não
sem antes exaurir suas riquezas e a força de seus povos.
Tudo isto está presente neste robusto enredo histórico muito bem
trabalhado literariamente por Gurnah, tornando-se uma obra-denúncia de grande
força. Em meio ao caos gerado pelos alemães às famílias tanzanianas à época,
aspectos humanitários são mesclados aos abusos e à violência. Esta, também
presente nos costumes educacionais familiares, marca forte presença na obra.
Em duas frases, no terço inicial do livro, Gurnah expõe a essência deste
seu trabalho. Diz o general alemão a um serviçal nativo: “Por isso eu estou
aqui — para tomar posse do que é nosso por direito, por sermos mais fortes. Nós
estamos lidando com um povo atrasado e selvagem e a única forma de dominá-lo é
incutir terror nas pessoas e em seus inúteis sultões e produzir obediência na base
da pancada.”. E, nesse tom, os alemães perderam a colônia para os ingleses em
violentas batalhas de conquista. A derrota valeu a queda do kaiser na Alemanha,
na mesma época em que na Rússia o czar Nicolau Romanov II e sua família eram
assassinados para a ascensão do proletariado ao poder.
Mas, a partir do término da guerra e sob a relativa paz do domínio
inglês, os habitantes locais começam a retomar ou a reconstruir suas vidas e o
autor volta a dar relevo aos personagens principais.
São basicamente quatro protagonistas que se revezam nos capítulos,
criando um liame literário fundamental na estrutura do romance. E, na narração
de suas vidas, Gurnah desabrocha seu escrito original, simples e objetivo,
dando um ritmo muito agradável à leitura. Revela os traços culturais do povo
tanzaniano, suas mazelas, costumes e sofrimento com as atrozes intervenções
coloniais no cotidiano desse povo. Da história de cada personagem germina
basicamente um livro, os quais vão constituir, no terço final da obra, mais um
precioso livro, tamanha a riqueza de fatos e narrativas.
Apesar da violência entranhada no texto, trechos de história, lirismo,
ingenuidade, força de vontade, coragem, amor e fidelidade tornam a obra
imensamente humana a descrever um genocídio e todas as Sobrevidas.
Valdemir Martins
27.10.2022
Fotos: 1. Capa do livro; 2. Localização da Tanzânia; 3. O povo tanzaniano; 4. Os alemães colonizadores ; 5. Batalha com as tribos; 6. Abdulrazak Gurnah.
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