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30 de out. de 2022

Obra imensamente humana descrevendo Sobrevidas.

Espontaneamente, seria difícil à maioria das pessoas escolher a leitura de um livro sobre a República Unida da Tanzânia, antigos países africanos Tanganica e Zanzibar, unidos em 1964. Havendo a motivação de um Prêmio Nobel de Literatura, como no meu caso, decidi ler Sobrevidas, do tanzaniano Abdulrazak Gurnah, laureado em 2021. E não me arrependi.

Com um início pesado, farto em nomes e parentescos, a obra vai desenrolando-se como um novelo e revelando a brutal história do retardatário colonialismo alemão na África Oriental nos primórdios do século XX. Numa construção de texto diferenciada, fugindo do óbvio, Gurnah não deixa de nos surpreender com fatos inesperados e que vão transformando agradavelmente os rumos do romance.

A utilização impiedosa dos jovens locais recrutados e treinados para compor batalhões violentos contra seu próprio povo e numa guerra colonial contra invasores ingleses, denuncia a opressora civilização colonialista europeia visando a consolidação de impérios pelo mundo. E os países africanos - antes dos asiáticos - sem exceção, foram os que mais sofreram esse massacre humano e cultural brutal, mudando os destinos de grande parte de suas populações. Não sem antes exaurir suas riquezas e a força de seus povos.

Tudo isto está presente neste robusto enredo histórico muito bem trabalhado literariamente por Gurnah, tornando-se uma obra-denúncia de grande força. Em meio ao caos gerado pelos alemães às famílias tanzanianas à época, aspectos humanitários são mesclados aos abusos e à violência. Esta, também presente nos costumes educacionais familiares, marca forte presença na obra.

Em duas frases, no terço inicial do livro, Gurnah expõe a essência deste seu trabalho. Diz o general alemão a um serviçal nativo: “Por isso eu estou aqui — para tomar posse do que é nosso por direito, por sermos mais fortes. Nós estamos lidando com um povo atrasado e selvagem e a única forma de dominá-lo é incutir terror nas pessoas e em seus inúteis sultões e produzir obediência na base da pancada.”. E, nesse tom, os alemães perderam a colônia para os ingleses em violentas batalhas de conquista. A derrota valeu a queda do kaiser na Alemanha, na mesma época em que na Rússia o czar Nicolau Romanov II e sua família eram assassinados para a ascensão do proletariado ao poder.

Mas, a partir do término da guerra e sob a relativa paz do domínio inglês, os habitantes locais começam a retomar ou a reconstruir suas vidas e o autor volta a dar relevo aos personagens principais.

São basicamente quatro protagonistas que se revezam nos capítulos, criando um liame literário fundamental na estrutura do romance. E, na narração de suas vidas, Gurnah desabrocha seu escrito original, simples e objetivo, dando um ritmo muito agradável à leitura. Revela os traços culturais do povo tanzaniano, suas mazelas, costumes e sofrimento com as atrozes intervenções coloniais no cotidiano desse povo. Da história de cada personagem germina basicamente um livro, os quais vão constituir, no terço final da obra, mais um precioso livro, tamanha a riqueza de fatos e narrativas.

Apesar da violência entranhada no texto, trechos de história, lirismo, ingenuidade, força de vontade, coragem, amor e fidelidade tornam a obra imensamente humana a descrever um genocídio e todas as Sobrevidas.

Valdemir Martins

27.10.2022

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Localização da Tanzânia; 3. O povo tanzaniano; 4. Os alemães colonizadores ; 5. Batalha com as tribos; 6. Abdulrazak Gurnah.

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9 de set. de 2022

A boa filha fica em casa

Romances policiais, via de regra, envolvem sempre um criminoso, policiais e investigadores como protagonistas. Não é o caso, por exemplo, do livro A Boa Filha, da norte-americana Karin Slaughter. Nesta obra, a autora nos enreda num clima de desespero cruciante logo no início do livro, não por uma, mas por duas sequências descritivas diferenciadas do mesmo fato, após a narrativa de um brando e corriqueiro cenário familiar. E como num degradê literário invertido, o fato volta a ser relatado quase ao final da obra, numa riqueza de detalhes dramáticos que dificilmente o leitor deixará de se emocionar.

Sim, logo no início o leitor perde o fôlego. Como num tropeção, ele cai de um universo regular para um profundo e assombrador mundo de horrores, pelas descrições apavorantes e nauseantes, que traduzem o mais profundo desespero. Uma dessas sequências é novamente descrita por outra personagem e, sem ser maçante, parece um novo fato.

A autora faz dessas situações seu diferencial literário. E, na sequência, ingressa em narrativas descritivas de detalhes de pressões e fatores psicológicos sem ser cansativa. Neste caminho, constrói cenários, estrutura histórica e constituição dos personagens.
Longe de ser um John Grisham, Slaughter parte para uma nova narrativa onde usa como condimento novo fato mixado com as narrativas anteriores, construindo um romance excepcional e de imensa expectativa, criando grande ansiedade no leitor. Um drama familiar acompanha todo o desenrolar das ações do enredo, tendo até alguns curtos diálogos um pouco maçantes, mas de fundamental importância na estrutura da obra.

Traumas de infância, violência diversa, escatologia, técnicas jurídicas, dramas pessoais e familiares, luto e fisiologia marcam este surpreendente A Boa Filha como um livro denso, porém de leitura fluida e final inesperado. 

Excelente entretenimento com doses culturais.

Valdemir Martins

06.09.2022

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Atentado na floresta; 3. Atentado na escola: 4. Acusação popular; 5. Karin Slaughter.

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18 de abr. de 2022

Véspera: a dramaticidade suprema

Muito provavelmente você jamais colocaria nomes como Barrabás, Zebedeu ou Gestas em seus filhos, pelas evidentes conotações maléficas oriundas da Bíblia. E é um nome precito como esses que traz à baila o contexto do excelente livro Véspera, da talentosa escritora mineira Carla Madeira, segundo autor brasileiro mais lido em 2021.

Num texto envolventemente criativo, Madeira joga com ideias e palavras de forma magistral num enredo narrado em dois tempos, em meio ao alcoolismo, ao radicalismo e temor religiosos e ao forte e pavoroso sentimento de perda em todos os personagens.

A autora coloca em pauta questões religiosas polêmicas, demonstrando a força da religião no caráter das pessoas, com personagens fragilizadas por supostos sacrilégios -tornando-se inseguras e indecisas perante a vida - e até um sacerdote querendo provar que Deus pode ser violento.

Neste conturbado romance, Madeira expõe uma família infeliz que atravessa uma tragédia urbana, no melhor estilo grego, cujos membros, numa disputadíssima prova de revezamento por protagonismo, brilham em suas respectivas performances e tornam-se personagens inesquecíveis do romance brasileiro.

Uma obra que destaca, além dos chamados desígnios de Deus, o livre arbítrio humano e sua capacidade – ou não – de tomar decisões e impor atitudes. O ser humano precisa, para sua sobrevivência e para viver em sociedade, constantemente tomar decisões.

O que comer, o que vestir, que nome dar aos filhos, quanto gastar, dar um presente, escolher amigos, fazer uma reclamação, que curso fazer, que programa assistir, que livro ler, hora do banho, e por aí vai. Intermitentemente e eternamente decidindo. E é disto que a mineira Madeira trata dramaticamente neste livro, demostrando de maneira romanceada, com muita criatividade e num texto deslumbrante, o cotidiano de uma família desestruturada desde suas origens.

Uma decisão errada, uma atitude titubeante, um olhar distraído e pronto, pode-se mudar uma ou várias vidas. Usando esse subterfúgio, a autora explora a complexidade e a diversidade da família na linha central desta sua obra. Consegue levar-nos a uma viagem com todos os tipos de emoções, desde tensão e suspense a leves traços de humor e de familiaridade com personagens e situações.

Carla Madeira é sem dúvida uma das melhores escritoras brasileiras contemporâneas, infelizmente ainda sem o devido reconhecimento do público, e somente recuperada graças à visão literária (e comercial, claro) da Editora Record. Carla lançou seu primeiro livro, “Tudo é Rio”, em 2014 pela Editora Quixote, o qual, apesar do sucesso de crítica, não decolou. Fica a nossa forte recomendação.

Valdemir Martins

15.04.2022 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Caim e Abel; 3. A loja de ferragens; 4. Matemática; 5. Fazendo tricô; 6. Carla Madeira

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23 de fev. de 2022

Onde estão as Flores?

Um autor praticamente desconhecido por aqui, traz-nos um depoimento maiúsculo em seu romance de estreia, um testemunho das verdades humanas, seja na bondade, seja na crueldade. Ilko Minev, nascido búlgaro, mas brasileiro de coração, escreveu “Onde estão as flores? para relatar como seus patrícios perderam a família e os amigos para o totalitarismo e como se conseguir constituir nova família, repondo inúmeros amigos em uma nova vida.

Num  prólogo estonteante, Minev apresenta-nos uma lição de boa velhice junto aos seres amados, cuidando de não perder sua individualidade, seu espaço e todo amor e afeto por tudo e por todos que gosta. Assim, mostrando seu caráter, introduz-nos neste romance que em muito se assemelha (e se confunde) com sua própria biografia; uma vida sofrida, surpreendente e empolgante, onde com muita luta, paciência, bondade e lucidez, sobreviveu aos horrores da Segunda Guerra na Europa Oriental, recomeçando a vida no meio da Amazônia, após uma terrível e dramática travessia do Atlântico.

Suas memórias ajudam-nos a entender o conflito mundial sob o ponto de vista de pessoas em uma época onde a comunicação era lenta ou inexistente, portanto com conceitos e expectativas jamais contadas por historiadores. Como o protagonista desta história, milhões de pessoas pela Europa tentaram ou conseguiram fugir para a liberdade e a vida em outras nações pelo mundo.

Um livro de fácil e agradável leitura que nos possibilita aprender detalhes importantes também da história brasileira, em especial na região amazônica. Fala-se sobre economia, história, política e problemas sociais. Fala-se da família, dos valores da amizade e da credibilidade. Enfim, um romance leve, gostoso de ler, como se fosse uma coletânea de crônicas sobre o tempo. Vale à pena conhecer Ilko Minev.

O título da obra é inspirado na canção “Where have all the flowers gone?” (https://www.youtube.com/watch?v=kveooWmqqr8), citada na obra e  eternizada pela atriz e cantora alemã Marlene Dietrich que virou uma espécie de hino contra as guerras, especialmente nos anos 1960 e perante toda a problemática do Vietnã. Trata-se de uma canção folclórica estadunidense composta por Pete Seeger e Joe Hickerson em 1961. Fez muito sucesso nas vozes de Dietrich, principalmente, e de Johnny Rivers, Harry Belafonte, Peter, Paul & Mary e Joan Baez, todos ícones da época.

Valdemir Martins

02.02.2022

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Localização da Bulgária; 3. Manaus em 1945; 4. Pau-rosa; 5. Ilko Minev.

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22 de jan. de 2022

A Montanha e o Rio nivelados pela vida.

No melhor estilo Ken Follett, o escritor chinês Da Chen brinda-nos com o maravilhoso romance histórico A Montanha e o Rio, obra nomeada melhor livro de 2006 pelo The Washington Post, San Francisco Chronicle, Miami Herald e Publishers' WeeklyUma obra escrita num ritmo chinês. Ou num rito chinês. Cadenciada, organizada, porém com muita dinâmica, rico em informações históricas passadas de forma suave em meio a um texto direto, objetivo. Poético quando cabível; brutal quando necessário. Ou os dois, de uma forma literariamente formidável que não nos deixa interromper a leitura.

Fugindo da tragédia totalitarista do comunismo na China, Chen instalou-se no Vale do Rio Hudson, no Estado de americano Nova Iorque em 1983, onde escreveu sobre a vida de dois irmãos no auge da Grande Revolução Cultural Proletária, (um movimento sociopolítico na China a partir de 1966): um pobre, outro poderoso e abastado; um bastardo, outro legítimo.

Um cresce em Beijing, cercado de luxo, carinho e conforto, ao passo que seu irmão é criado nas montanhas por um velho curandeiro e sua esposa, até que a morte do casal o leva a um orfanato onde passa a viver sozinho, assustado e faminto. Separados pela distância e pelas condições de vida, são dois estranhos, que crescem ignorando a existência um do outro.

A Montanha e o Rio narra a saga desses dois irmãos que trilham caminhos distintos, mas cujas vidas se encontram quando se mesclam inevitavelmente aos acontecimentos que marcam a história política e social da China no final do século XX. O texto primoroso leva-nos a “enxergar” os locais e cenários tal a qualidade descritiva de Da Chen, levando-nos a participar mais intensamente da obra.

Numa trama repleta de conspiração, mistério e paixão, esta história envolvente, que levou oito anos para ser concluída, Da Chen - conhecido por suas obras memorialísticas - faz sua primeira incursão pela área da ficção. A marca do autor está por certo presente nesta narrativa que possui também traços do romance histórico e é perpassada pelas milenares tradições do Oriente e suas relações com o mundo ocidental. Não deixa, todavia, de registrar o que foram – e o que são – as barbaridades da velha ditadura chinesa e sua elite, comandada por um partido político único, forte e implacável.

Permito-me não destacar mais detalhes para não incorrer em spoiler e tirar todas as surpresas principais inteligentemente elaboradas pelo autor, com dramaticidade de primeira linha, suspense e muita emoção. Recomendadíssimo!

Valdemir Martins

15.01.2022

Fotos: 1. Capa do livro; 2. As montanhas e os rios chineses; 3. A Revolução Cultural; 4. Modernidade na tradição; 5. Da Chen


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13 de dez. de 2021

A Revolucionária Pequena Fadette

Este é um romance de época que transporta-nos, inicialmente, para as crendices sobre irmãos gêmeos no século XIX, quando a extraordinária escritora francesa George Sand o criou, inspirada nos costumes de Bourges, na província de Berry, sua campestre e verdejante terra natal no centro da França. Falo da obra A Pequena Fadette, que demonstra toda a sensibilidade desta mulher revolucionária que se utiliza de elementos de realismo fantástico com uma antecedência de um século.

Sand, cujo nome verdadeiro era Amandine Aurore Lucile Dupin de Francueil (1804-1876), foi uma mulher descasada (com dois filhos) que corajosamente passou a fumar em público e a trajar roupas masculinas (apenas por diversão e praticidade) e foi obrigada a adotar este pseudônimo masculino, quando ainda em Paris, para ser aceita nos meios literários, antes de voltar para sua região de nascença. Muito admirada por sua cultura e pensamento modernos, para a época, Sand tinha como amigos Chopin, Liszt, Balzac, Flaubert, Mérimée e Mousset, entre outras celebridades contemporâneas.

Considerada por muitos como a melhor escritora francesa, consagrou-se como romancista e memorialista e tem em A Pequena Fadette sua obra máxima. Inspirada em sua infância campesina, esta obra traz todos os elementos do meio rural e infanto-juvenil do interior francês à época. Inicia-se com os mitos dos gêmeos e prossegue pelo consequente difícil relacionamento entre os dois até que surge a pequena Fadette, dando outro rumo à história.

Com extrema competência e de forma sutil, através de fatos e conversas juvenis, Sand escancara de forma profunda a hipocrisia social, bem como os complexos psíquicos e a baixa estima humana. Molda de forma altamente artística o ícone “pessoa feia de alma bonita”. Baseada em seus dramas biográficos, criou as principais personagens desta obra, sendo o casal protagonistas os mais fortes detentores dessas características.

Neste romance campestre seu texto é repleto de otimismo, ingenuidade e poesia, traduzido em personagens eivados de amor, ciúme, honestidade e fidelidade, numa pequena comunidade rural francesa do século XIV. Uma história romântica, graciosa, leve e muito bem escrita.

Chamo a atenção e recomendo a leitura desta obra na edição da Barcarolla, de 2021 - a primeira tradução integral da obra original de Sand -, pois a anterior, da Abril Cultural, é apenas uma adaptação adolescente de 1973 para a coleção Literatura Juvenil. Como divulga a própria editora Barcarolla, “A presente edição revela a magnitude de uma obra literária que acabou ofuscada pela ousada biografia da própria autora.”.


Valdemir Martins

10.12.2021

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Os gêmeos; 3. Fadette e o irmão; 4. Fadette e os gêmeos; 5. George Sand.


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14 de nov. de 2021

Flutuando “Em Águas Profundas”

Você vai sentir-se numa pequena cidade da Pensilvânia, próxima a Nova Iorque. Vai experimentar uma sensação gradativa sufocante, na medida em que esta história tipicamente norte-americana evolui, a partir de um início corriqueiro. É a competente preparação do leitor pela consagrada escritora ianque Patrícia Highsmith, no romance Em Águas Profundas.

Com uma excelente estrutura textual, narrativa dinâmica e diálogos brilhantes, neste livro de 1957 Smith segue o tom de sua obra mais consagrada, publicada dois anos antes, O Talentoso Ripley, mantendo em crescente suspense a revelação de fatos que vão alterando inesperadamente o desenrolar da trama. Neste, o ritmo é bem mais brando, impacientando aqueles que anseiam por um drama psicológico de suspense frenético.

Highsmith é considerada uma das mais importantes escritoras de romances policiais de todos os tempos, além de magníficos contos de caráter policialesco com profunda análise psicológica. Consegue surpreender o leitor ao colocar traços e ações de psicopatia em personagens extremamente dóceis, amáveis e até submissos.

Marcado pela aleivosia e pela flutuante presença da hipocrisia, este romance cresce e fisga o leitor no avançar da leitura. Uma leitura ansiosa que nos envolve suavemente no texto à procura daqueles fatos que imaginamos e que nunca acontecem.

O protagonista - homem honesto, pacato, culto e dinâmico empreendedor -, é um homem diferenciado, com um negócio não lucrativo, traído em seu amor, sem ter televisão em sua casa e com um carro obsoleto. E, por um ato impensado, passa por momentos funestos e vira alvo de maledicências. Esse é o mote para tudo que Highsmith preparou para servir ao leitor, no quarto final desta sua obra, um grande banquete literário; um show de escrita e de criatividade que causam muita ansiedade.

Highsmith tem como característica em seus principais romances e contos, histórias de crimes banais como contexto para o desenvolvimento de ideias perversas em figuras visivelmente pacatas. Geralmente são pessoas afligidas pela dúvida e com forte senso de dualidade psicológica.

Depois de décadas esgotado no Brasil, este título ganhou nova edição pela Intrínseca no final de 2020, além de uma versão cinematográfica com Ben Affleck no papel do protagonista, a estrear brevemente. Autora de 22 romances e vários contos durante uma carreira de quase cinquenta anos, com pelo menos 12 adaptações para o cinema e vencedora de diversos prêmios importantes, Highsmith construiu tramas icônicas baseadas no conceito do “herói-criminoso”. Patricia Highsmith, como Agatha Christie, sempre vale a pena ler.

Valdemir Martins

14.11.2021

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A esposa alcoólatra; 3. A criação de lesmas; 4. Afogado na piscina; 5. A pedreira; 6. Patricia Highsmith


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28 de out. de 2021

O Jardim de Cimento: duro e cruel como a solidão

Tudo começa com uma narrativa de um pré-adolescente de catorze anos. Revela seu relacionamento familiar; fala sobre o irmão e irmãs, a difícil convivência e o primeiro diálogo com o pai, peripécias escolares e seus primeiros experimentos sexuais. Assim, o premiado escritor britânico Ian McEwan, inicia seu ótimo e estonteante romance O Jardim de Cimento.

Esta é uma obra muito difícil de comentar sem tropeços em spoilers, o que procurei evitar neste escrito, esperando não ser muito árido. O texto curto da obra – apenas 136 páginas - evolui de forma dramática e intrigante, provocando imenso assombro, enquanto evidencia a transformação da família e, de forma crua e direta, expõe o início do forçado amadurecimento das crianças e dos pré-adolescentes.

O ingresso na solidão e responsabilidade familiar, com profundas contrariedades, irá marcar esses personagens para sempre. Uma família unida, pela ingenuidade e pela dúvida, mas absolutamente em farrapos. Assim, o enredo apresenta um lar inteiramente desgovernado mediante as regras de comportamento social e de higiene, sendo a lógica superada pela conveniência e dominada por instintos.

McEwan, numa narrativa visceral, explora a introversão gerada por essa solidão num crescente desespero inconsciente – inclusive do leitor -, com um sentimento de tragédia e muita tristeza. Lançadas numa vida absolutamente livre, em plena fase de profundas mudanças da puberdade e da infância, essas quatro crianças enfrentam seus medos, desejos e contrariedades de forma bastante autêntica, com o livre arbítrio dominando até as necessidades. E sempre com a mãe como eixo de tudo.

A entrada de mais um personagem na história – o namorado da filha mais velha – inicia mais uma etapa de mudanças, agitando e mexendo com o psicológico de todos.

Apesar de parecer uma história comum, singular, suas excrescências comportamentais levam o leitor a um crescente assombro, com um crepúsculo turbulento finalizado com um forte soco no estômago de quem lê. Um final surpreendente, brusco, forte e inesperado; que vale muito a pena sua leitura e consequente reflexão. 

Valdemir Martins

26.10.2021

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O jovem narrador; 3. A mãe doente  ; 4. Os irmãos; 5. Ian McEwan


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13 de out. de 2021

Cthulhu: um chamado distante

Consagrado como um dos grandes escritores estadunidenses do século XX, H. P. Lovecraft foi pioneiro em fantasiar o horror, sendo O Chamado de Cthulhu – uma coletânea de contos – considerada sua obra principal, fato que me levou à sua leitura.

Apesar de ser apenas um texto comum na atualidade, em função da enormidade de produções literárias de fantasia e horror a partir da segunda metade do século passado, Lovecraft é imensamente criativo. Sua escrita chega a ser surpreendente, se considerarmos que estudou apenas até o ensino médio. Mas, teve em seu avô um grande incentivador de sua inata vocação, pois aos pródigos seis anos criou suas primeiras poesias.

Os demônios, psicopatas, alienígenas e semideuses que prevalecem neste livro – um deles, o Cthulhu do título – não nos levam propriamente ao horror, mas causam-nos incômodo constante pela presença inerente do Mal. E é deslumbrante como Lovecraft parte de situações sempre banais para descrições horrendas, de forma progressiva e em ritmo crescente e até acelerado.

Monstros marinhos, possessões musicais, artistas demoníacos, uma igreja de cultos satânicos, fantasmas, monstros espaciais e pessoas depressivas fazem parte dos enredos cativantes para quem curte o gênero. São oito textos totalmente diferentes, com enfoques distintos e em lugares díspares, com uma narrativa de forte apelo visual. E a criatividade de Lovecraft é tão contaminante que estimula o leitor aos mais fantásticos cenários e a supor os seres mais horripilantes e gosmentos. Prova disso é a fabulosa quantidade de criaturas e estruturas imaginadas por ilustradores quando se faz uma busca pela internet. Vale à pena.

Deles, atraíram-me com especial anseio “O assombro das trevas” e “A música de Erick Zann”, mas, como nos demais, ficou-me a frustração de finais mais densos e comprometidos com a fantasia de terror.  “O chamado de Cthulhu”, em especial, na minha expectativa ficou devendo para sua fama. Os demais contos são Dagon, Ar Frio, O que a Lua traz Consigo e O Modelo de Pickman.

Na verdade, o texto que acabei gostando muito foi o derradeiro “Carta a R. Michel”,  onde o autor, numa escrita brilhante, conta a um amigo sua interessante e tumultuada biografia. Para quem não curte o gênero, a obra vale para conhecer o autor e o porquê de sua fama.

 Valdemir Martins

12.10.2021


Fotos: 1. Capa do livro; 2. A imagem do Cthulhu mais conhecida; 3. O castelo submarino do monstro ; 4. Uma ameaça à navegação; 5. H. P. Lovecraft.

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2 de set. de 2021

A Ocupação: todo homem é a ruína de um homem?

Nada como ler por prazer. E isso me levou ao livro A Ocupação, do paulistano Julián Fuks, escolhido para leitura por recomendação do site literário português Wook. Fico eufórico quando adentro ao contexto de uma obra e esta me dá mais prazer pelo linguajar mágico e magnífico do escritor do que propriamente pelo enredo.

Não fossem o lastro e rastro ideológico que permeia o texto, poderíamos considerá-la uma obra de ótima qualidade literária. Fucks escreve fácil, com muita elegância, poesia e objetivamente, sem arabescos linguísticos, apesar de suas permanentes figurações que ilustram drasticamente sua exiguidade descritiva.

Muitas obras, inclusive clássicas e consagradas, passam pelo contexto político apenas narrando-o, sem a necessidade óbvia de críticas ou de ser opinativa, tarefas que, no meu entendimento, cabem unicamente ao leitor. Não é o caso de A Ocupação, onde o autor procura infiltrar e até escancarar seus posicionamentos ideológicos em alguns trechos do livro.

 A vitimização é seu estratagema na personificação do protagonista: os ancestrais morreram no holocausto, o pai sofre longamente no hospital, o cachorro de estimação também incorporou o sofrimento, as pessoas com as quais convive e compactua no hotel abandonado e por elas ocupado, são todas vítimas reais do destino e das mãos de outros homens, que promovem a guerra, o policiamento rigoroso, a esperteza nos negócios. Ou, como ele prefere, são vítimas da sociedade.

Aplicando aqui as palavras do próprio autor em outro contexto, “haveria afinal alguma virtude na simples condição de vítima?”. Claro que há essa virtude na ficção quando bem encaixada no enredo e não como linha condutora e ainda politizada.

Enfim, considero a leitura aborrecida pelo relatado e por repisar as mesmices do noticiário cotidiano. Como o próprio Fuks assume, “estou escrevendo um livro sobre a dor do mundo, a miséria, o exílio, o desespero, a raiva, a tragédia, o absurdo (...)”. E nele, apesar da excelente escrita do autor, ele não se permite ficcionar com criatividade e sua elegância e poesia perdem-se num infeliz panfleto político.

Valdemir Martins

31.08.2021 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Prédio ocupado; 3. A morte do cachorro de estimação ; 4. O pai hospitalizado; 5. Julián Fuks.

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