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30 de ago. de 2024

Os sobreviventes das Noites de Peste.

Não chega a surpreender o Prêmio Nobel turco Orhan Pamuk iniciar mais um romance abordando as tradições islâmicas e o Império Otomano. Desta vez, no seu livro mais recente, Noites de Peste, ele principia sua ficção contando o desastre da tutela do Abdul Hamid II - o 34º sultão otomano - sobre o que ainda restava do domínio turcomano no início do século XX. E, claro, tudo complicado pelo surgimento de pestes e revoltas anticristãs.

Nesta caudalosa ficção histórica seu enredo desenrola-se numa ilha paradisíaca imaginária localizada no Mar Mediterrâneo chamada Mingheria, entre as ilhas de Creta e Chipre, ao sul da Turquia. Dentre inúmeros fatos históricos, ele entremeia a permanente rixa de cristãos ortodoxos gregos e muçulmanos e o surgimento da peste com o ficcional governador ditatorial da ilha e as lideranças religiosas e os cônsules que não colaboram com as autoridades sanitárias. E assim, Pamuk começa a elevar o suspense da obra.

Cada nova situação ou introdução de personagem relevante dá a Pamuk a inspiração de novas divagações, trazendo-nos dados e análises históricas muito interessantes, o que deve desagradar, com certeza, aos leitores menos pacientes. Mas, o acúmulo de informações enriquece sobremaneira a obra, justificando mais uma vez, a  máxima láurea literária do escritor. Seu trabalho de pesquisa histórica é tão profuso a ponto de sufocar a leitura em certas passagens.

As situações e alternativas são amplamente conversadas entre os personagens, com devaneios e reminiscências abundantes, amarrando sobremaneira a evolução do enredo. Pamuk desencadeia uma série de capítulos de formação, contando a vida e perspectivas dos principais personagens, prolongando assim a narrativa, de maneira um pouco excessiva. E a leitura não embala. Embola. E de maneira incomodativa, pelo menos para mim.

A narração é feita na terceira pessoa, de forma até coloquial, e baseada nas cartas que uma princesa enviava para sua irmã e, estranhamente, num rompante diferenciado de seus textos, o autor revela mortes de personagens já em capítulos iniciais. Assim como fatos futuros do enredo e, espantosamente, não traz spoilers à leitura.

O protagonista mais em destaque não passa de um personagem burlesco comparável a diversas autoridades destacadas na atualidade. E, nesse embalo, Pamuk traça um paralelo crítico declarado à barafunda que se tornou o recente episódio da pandemia de  Covid-19 e a miríade de controles à sua propagação. Isto, carregado dos similares preconceitos e discriminações, abuso de autoridade e tráfico de influências. Até a cotidiana contagem de mortos nos leva ao recorrente carro-chefe da mídia à época.


A dramaticidade por vezes e alternadamente irônica é uma marca na narrativa e uma distinção no estilo do autor. Chega a ser a “linguagem oficial” do fato mais importante do enredo, o que enriquece a obra e quebra toda uma rígida expectativa e tensão proporcionada pela peste e pela incompetência de alguns servidores municipais, burocratas e das lideranças. Seus paralelos traçados com momentos históricos - como a Revolução Francesa, por exemplo - galgam as raias da ironia (ou mesmo do deboche). Outro fato que chama a atenção é que o autor pode ter possivelmente retratado a  figura do idolatrado Mustafa Kemal Atatürk - fundador da República da Turquia - no personagem herói oficial Kamil, o que lhe rendeu um processo na cidade de Esmirna, na Turquia.


Não diria que se trata de um livro empolgante, mas por trás de seu conteúdo respira uma obra literária com qualidade, de um grande escritor. No segundo terço do livro, depois de Pamuk fazer todas as apresentações de personagens e  seus sentimentos, envolvimentos e situações, a obra começa então a pegar ritmo, sem, no entanto, abandonar longas digressões.

A peste, que pela lógica até da época, seria controlável, proliferou de tal forma que atinge até o leitor causando mal estar com toda a situação. Tudo pela irresponsabilidade de um grupo com plenos poderes, porém incompetente, desfocado, inoperante e, claro, muito amador. A quantidade de mortes é tamanha que muitos leitores podem imaginar que não vai sobrar personagens para encerrar o livro, uma vez que até alguns protagonistas sucumbem à história.

Vejo na trama uma profunda e sarcástica crítica política e social de Pamuk aos governos exploradores da ignorância do populacho, assim como, aos políticos incompetentes e ludibriadores; aos poderosos ineptos e aos servidores públicos corruptos e acomodados. Bem como  às lideranças religiosas ardilosas e a todos os puxa-sacos serviçais. Chega ao extremo de envolver a obra, no seu crepúsculo, em terrorismo de Estado, em plena teocracia.

Como insinua ser a normalidade nos governos islâmicos, o autor os representa no livro como algo anárquico, cheio de fanatismo, ignorância e bestialidade, além do oportunismo. Por sua franca incompetência, neste caso, a obra o denomina “gerenciador da anarquia da peste”, com as políticas absurdas e equivocadas que foram implementadas.


No final, Pamuk abandona a peste, dedicando-se a digressões sobre o esfacelamento do Império Otomano, passando então ao relato da quarta geração dos protagonistas e sobre como sobreviveram os membros do sultanato otomano após a derrocada. E, como numa dissertação escolar, descreve as reminiscências da bisneta deles - e “autora” do livro - sobre os familiares e a ilha de Mingheria.

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Valdemir Martins

26.07.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Mapa da região; 3. O sultão Abdul Hamid II; 4. O porto de Mingheria; 5. As bolhas da peste; 6. A devastação da peste; 7. As fugas da ilha; 8. O enforcamento; 9. Os líderes religiosos; 10. O palácio Topkapi em Istambul; 11. O autor Orhan Pamuk.

Um comentário:

  1. Gostei do comentário, mas o tema não me atrai a não ser pela história.

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