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26 de set. de 2024

O Pássaro Pintado para o Bem e para o Mal.

A violência das guerras não está só nos campos de batalha. Sua força destrutiva descomunal invade a vida das pessoas até antes de se iniciarem os confrontos bélicos. E toda a pureza e a inocência permanecem apenas nas crianças, mesmo que sofram maus tratos, indiferença, sede ou fome. O pecado maior de uma guerra é tolher a infância. E é dessa forma que o premiado escritor polonês Jerzy Kosinski dá início ao seu best-seller de 1965 O Pássaro Pintado.

Com abertura impactante, a obra nos traz uma torturante narrativa de desmanche da inocência infantil ludibriada por imagens ilusórias das mentiras que contam às crianças. Tudo reforçado pelas atitudes adultas violentas, bruscas e sem comiseração.

As crendices religiosas e maldições, fruto de ignorância e fantasias, logo contaminam o texto  e inacreditáveis pragas e superstições conduzem as atitudes paradoxais e insanas. O pequeno protagonista começa a se destacar como o escopo de tudo o que é pestilento. E tragédias passam a ser seu cotidiano, num clima de violência gratuita e miséria.

Esta é uma obra que concentra todo o horror, desalento e desolação do ambiente satélite a uma guerra, contada de forma extremamente realista e chocante, entremeada de pitadas de realismo fantástico que lhe acrescentam imenso valor literário.

A narrativa de Kosinski é extremamente crua, cruel, sanguinolenta e até escatológica. Exige, em alguns trechos, que o leitor controle o seu estômago e sua mente. Como um sadista, descreve cenas fortes, brutais e extremamente realistas. Mas, ele simplesmente descreve o que de fato acontece nas cercanias das guerras, mudando o comportamento humano face a toda a barbárie que envolve as pessoas involuntariamente. É o resultado da bestialidade da guerra, da luta pela sobrevivência.

O leitor irá perambular e viver aventuras com o pequeno protagonista de aldeia em aldeia; de floresta em floresta. Em suas divagações perante o sofrimento ou alguma rara satisfação, o menino incorpora seus pensamentos aos de aldeões, transgredindo paradigmas religiosos, supersticiosos e até demoníacos. Apresenta-nos, desta forma o autor, a promiscuidade do pensamento humano perante a insegurança e o sofrimento frequentes.

Numa clara crítica aos nazistas, o menino reflete: “Os alemães me intrigavam. Que desperdício, refletia. Um mundo tão cruel e desumano, valeria a pena que alguém se empenhasse em governar?” E rememora que sem contar com o auxílio de Deus ou do Diabo o que sempre prevalece é a força brutal e bruta dos alemães, causadores da guerra, agindo por influência dos Maus Espíritos e saindo sempre vitoriosos.

Ninguém podia detê-los. Eram invencíveis: cumpriam sua função com magistral habilidade. Contaminavam a outros com o ódio de que estavam possuídos, condenavam nações inteiras ao extermínio. Era provável que todos os alemães houvessem vendido a alma ao Diabo desde o berço. Aí residia o segredo de seu poder e de sua força.

Kosinski, num feito extraordinário, desenvolve um ensaio sobre o Mal e o Bem em pleno romance. O pequeno protagonista, começa a analisar sua vida – mesmo dentro de uma pura ótica infantil – e conclui que de nada lhe adiantaram igrejas, padres, gente bondosa e orações (“uma verdadeira perda de tempo”), uma vez que a partir da separação de seus pais só lhe sobrevieram sofrimento, dor e angústia; que só lhe cortejaram com sucesso as forças do Mal, que em muito superaram o Bem. E toma uma decisão drástica mudando os rumos de sua história.

Em seu arremate final, o autor introduz os soldados soviéticos na obra, concedendo-lhes a aura da bondade contrastando com tudo que o pequeno protagonista vivenciou até então, e contrariando toda a sua recém elaborada definição de vida. Assim um militar russo faz a iniciação do menino, mostrando-lhe o embuste das religiões em oposição ao magnífico e benevolente Partido Comunista e seu chefe Stalin, ícones da bondade suprema.

Reflexões sobre vingança e heroísmo, liberdade, direitos e deveres infantis são muito marcantes nas páginas finais da obra com final previsível. Mas, a marca indelével que nos fica é o sofrimento ao derredor de uma guerra que a transpõe e avança sobre toda a reconstrução das sobrevidas. E nosso agora jovem protagonista representa o reflexo dos pássaros pintados por toda uma tragédia.

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Valdemir Martins

15.08.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Capa da edição inglesa; 3. Os pássaros pintados; 4. A criança na guerra; 5. A influência da Igreja; 6. A influência soviética; 7. A ponte destruída; 8. Crianças nos acolhimentos pós guerra; 8. O autor Jerzy Kosinski.

15 de set. de 2024

Dois Irmãos, dois pesos e duas medidas.

A ambivalência prevalece no breve romance Dois Irmãos, do premiado romancista brasileiro Milton Hatoum. Um drama familiar ambientado em Manaus envolve-nos num incidente ocorrido entre irmãos gêmeos que, como uma cicatriz, marca toda a obra.

A dualidade está presente em cada parágrafo, pois destaca sempre um pai que pensa de uma forma e uma mãe de outra; a personalidade de um que difere substancialmente do outro, o amor e o ressentimento, o bem sucedido e o esquálido; e assim segue nas atitudes dos personagens.

Narrado pelo filho da empregada da família, baseado em conversas ouvidas, cenas presenciadas e atos participativos, o romance possibilita-nos degustar uma obra simples, porém extremamente dinâmica. Seus personagens se agitam até de formas surpreendentes nos seus relacionamentos, sempre marcados pelo amor, pelo ciúme e pelo trabalho. E engolfa o leitor em cenas de bandalheira, paparicação, desvelo e até estupro. Tudo em meio aos aromas, sabores, palafitas, igarapés, prostíbulos, chuvaradas, usos e costumes manauaras.

A degradação e esfarelamento da família de origem libanesa é contada após trinta anos pelo órfão que desconfia ser seu pai um dos homens da família. Pelo desregramento familiar qualquer deles pode sê-lo. Mas a personalidade da mãe – forte para todos e frágil para um dos filhos – liderou toda a bagunça.

Tudo isso, engendrado pelo manauara exímio contador de histórias Milton Hatoum. Criativo, coerente, autêntico em suas precisas descrições realistas; original na criação de situações. Apesar de o trato do comportamento humano estruturar toda a obra de forma modelar, Hatoum nada em criatividade na construção deste soberbo romance. Não fosse pela alta qualidade da obra e pelo respeito ao autor, poderíamos dizer que é digna de uma novela do horário nobre.

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Valdemir Martins

08.08.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Cidade de Manaus à época; 3. O irmão malandro; 4. O bar nas palafita; 5. Milton Hatoun.

30 de ago. de 2024

Os sobreviventes das Noites de Peste.

Não chega a surpreender o Prêmio Nobel turco Orhan Pamuk iniciar mais um romance abordando as tradições islâmicas e o Império Otomano. Desta vez, no seu livro mais recente, Noites de Peste, ele principia sua ficção contando o desastre da tutela do Abdul Hamid II - o 34º sultão otomano - sobre o que ainda restava do domínio turcomano no início do século XX. E, claro, tudo complicado pelo surgimento de pestes e revoltas anticristãs.

Nesta caudalosa ficção histórica seu enredo desenrola-se numa ilha paradisíaca imaginária localizada no Mar Mediterrâneo chamada Mingheria, entre as ilhas de Creta e Chipre, ao sul da Turquia. Dentre inúmeros fatos históricos, ele entremeia a permanente rixa de cristãos ortodoxos gregos e muçulmanos e o surgimento da peste com o ficcional governador ditatorial da ilha e as lideranças religiosas e os cônsules que não colaboram com as autoridades sanitárias. E assim, Pamuk começa a elevar o suspense da obra.

Cada nova situação ou introdução de personagem relevante dá a Pamuk a inspiração de novas divagações, trazendo-nos dados e análises históricas muito interessantes, o que deve desagradar, com certeza, aos leitores menos pacientes. Mas, o acúmulo de informações enriquece sobremaneira a obra, justificando mais uma vez, a  máxima láurea literária do escritor. Seu trabalho de pesquisa histórica é tão profuso a ponto de sufocar a leitura em certas passagens.

As situações e alternativas são amplamente conversadas entre os personagens, com devaneios e reminiscências abundantes, amarrando sobremaneira a evolução do enredo. Pamuk desencadeia uma série de capítulos de formação, contando a vida e perspectivas dos principais personagens, prolongando assim a narrativa, de maneira um pouco excessiva. E a leitura não embala. Embola. E de maneira incomodativa, pelo menos para mim.

A narração é feita na terceira pessoa, de forma até coloquial, e baseada nas cartas que uma princesa enviava para sua irmã e, estranhamente, num rompante diferenciado de seus textos, o autor revela mortes de personagens já em capítulos iniciais. Assim como fatos futuros do enredo e, espantosamente, não traz spoilers à leitura.

O protagonista mais em destaque não passa de um personagem burlesco comparável a diversas autoridades destacadas na atualidade. E, nesse embalo, Pamuk traça um paralelo crítico declarado à barafunda que se tornou o recente episódio da pandemia de  Covid-19 e a miríade de controles à sua propagação. Isto, carregado dos similares preconceitos e discriminações, abuso de autoridade e tráfico de influências. Até a cotidiana contagem de mortos nos leva ao recorrente carro-chefe da mídia à época.


A dramaticidade por vezes e alternadamente irônica é uma marca na narrativa e uma distinção no estilo do autor. Chega a ser a “linguagem oficial” do fato mais importante do enredo, o que enriquece a obra e quebra toda uma rígida expectativa e tensão proporcionada pela peste e pela incompetência de alguns servidores municipais, burocratas e das lideranças. Seus paralelos traçados com momentos históricos - como a Revolução Francesa, por exemplo - galgam as raias da ironia (ou mesmo do deboche). Outro fato que chama a atenção é que o autor pode ter possivelmente retratado a  figura do idolatrado Mustafa Kemal Atatürk - fundador da República da Turquia - no personagem herói oficial Kamil, o que lhe rendeu um processo na cidade de Esmirna, na Turquia.


Não diria que se trata de um livro empolgante, mas por trás de seu conteúdo respira uma obra literária com qualidade, de um grande escritor. No segundo terço do livro, depois de Pamuk fazer todas as apresentações de personagens e  seus sentimentos, envolvimentos e situações, a obra começa então a pegar ritmo, sem, no entanto, abandonar longas digressões.

A peste, que pela lógica até da época, seria controlável, proliferou de tal forma que atinge até o leitor causando mal estar com toda a situação. Tudo pela irresponsabilidade de um grupo com plenos poderes, porém incompetente, desfocado, inoperante e, claro, muito amador. A quantidade de mortes é tamanha que muitos leitores podem imaginar que não vai sobrar personagens para encerrar o livro, uma vez que até alguns protagonistas sucumbem à história.

Vejo na trama uma profunda e sarcástica crítica política e social de Pamuk aos governos exploradores da ignorância do populacho, assim como, aos políticos incompetentes e ludibriadores; aos poderosos ineptos e aos servidores públicos corruptos e acomodados. Bem como  às lideranças religiosas ardilosas e a todos os puxa-sacos serviçais. Chega ao extremo de envolver a obra, no seu crepúsculo, em terrorismo de Estado, em plena teocracia.

Como insinua ser a normalidade nos governos islâmicos, o autor os representa no livro como algo anárquico, cheio de fanatismo, ignorância e bestialidade, além do oportunismo. Por sua franca incompetência, neste caso, a obra o denomina “gerenciador da anarquia da peste”, com as políticas absurdas e equivocadas que foram implementadas.


No final, Pamuk abandona a peste, dedicando-se a digressões sobre o esfacelamento do Império Otomano, passando então ao relato da quarta geração dos protagonistas e sobre como sobreviveram os membros do sultanato otomano após a derrocada. E, como numa dissertação escolar, descreve as reminiscências da bisneta deles - e “autora” do livro - sobre os familiares e a ilha de Mingheria.

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Valdemir Martins

26.07.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Mapa da região; 3. O sultão Abdul Hamid II; 4. O porto de Mingheria; 5. As bolhas da peste; 6. A devastação da peste; 7. As fugas da ilha; 8. O enforcamento; 9. Os líderes religiosos; 10. O palácio Topkapi em Istambul; 11. O autor Orhan Pamuk.

19 de ago. de 2024

Os Perigos do Imperador: um romance do Segundo Império.

Para ler este livro obrigatoriamente temos que passar pela Praça XV, no Rio de Janeiro. Foi lá que o jornalista, biógrafo e premiado escritor brasileiro Ruy Castro descobriu um caderno que deu origem  ao delicioso livro Os Perigos do Imperador: um romance do Segundo Império. E essa história encontra-se no prólogo da obra, fundamental para assimilar todo o clima do romance e a perspicácia do autor.

Num misto de registro histórico de fatos e costumes costurado à uma prosa ficcional muito competente, Castro principia a obra com a decisão do Imperador dom Pedro II, do Brasil, em fazer uma longa viagem ao exterior e o alvoroço que isto acarretou na corte e adjacências. Como competente cronista que é, Castro constrói de imediato todo o ambiente da sociedade imperial carioca do começo de 1875, levando-nos a navegar em uma saborosa viagem no tempo.

Um jornalista norte-americano que acompanhou o imperador em sua viagem, veio ao Brasil para conhecê-lo e redigir uma série de artigos prévios para seu jornal, passando a ser um protagonista neste episódio praticamente incógnito na História do Brasil. E assim, passamos a conhecer um governante brasileiro diferenciado, amante da arte, da cultura e das ciências.

Seus desafetos secretavam bile permanentemente face aos constantes êxitos conquistados por d. Pedro II e por sua simplicidade e despretensão. E, como grandes invejosos, falavam dele com amargura e exagerado deboche. Castro nos proporciona então, realmente conhecer esse monarca Pedro, ilustre brasileiro que em muito supera todos os governantes republicanos que por aqui suportamos ao longo da História. Seja por sua humildade, por seus interesses no desenvolvimento científico e social, seja por sua intelectualidade, autenticidade e autonomia.

Nos Estados Unidos o imperador teve contato com inúmeras modernidades daquela época, desconhecidas em nosso país, então, imperial. Além de, por iniciativa própria, conhecer pessoalmente políticos, militares, artistas, estudiosos e intelectuais daquele país, mundialmente consagrados, mantendo sempre sua inconfundível dignidade, tolerância e sabedoria. Além de aceitar inconfessadamente o sistema republicano.

E a cereja do bolo são as narrativas da muito atrapalhada trama contra o imperador, repletas de ironias contextuais e autênticas. Numa construção literária brilhante, Ruy Castro intercala cronologicamente documentos, cartas, diários, notícias e o caderno da Praça XV, entremeados por suas argutas narrativas como liames dos mesmos. Resulta, enfim, numa obra cativante e reveladora que provavelmente irá surpreender muitos leitores. Recomendo!

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Valdemir Martins

18.06.2024


Fotos: 1. Capa do livro; 2. Dom Pedro na época da viagem; 3. Com o presidente norte americano na abertura da Exposição Universal da Filadélfia; 4. Dom Pedro testando o telefone de Graham Bell; 5. O arco em homenagem a Dom pedro em Nova Iorque; 6. O autor Ruy Castro.


9 de ago. de 2024

Cenas de um Futuro Socialista: profecia escrita há mais de 130 anos.

Uma distopia profética, considerada a avó de outras obras notáveis como 1984, Admirável Mundo Novo e Nós, foi escrita em 1890 tratando de um novo sistema político de controle socialista na Alemanha que só seria adotado efetivamente na Rússia quase trinta anos depois, a partir das teorias desenvol
vidas por Marx e Engels.


Refiro-me à sátira atemporal Cenas de um Futuro Socialista, escrita pelo jornalista alemão Eugene Richter, até então inédita por aqui e lançada pela Faro Editorial, sob o selo Avis Rara. Além de jornalista, o autor foi político atuante e forte defensor do liberalismo.


A partir das teses socialistas preconizadas principalmente por sindicatos europeus na segunda metade do século XIX, o liberal Richter desenvolve este profético texto, antecipando em cerca de 70 anos a catástrofe soviética.

A narrativa é feita por um pai de família absolutamente convicto do socialismo como a solução para tudo. Após algum tempo persuadido, começa a perceber que algo não está dando certo, quando começa a ver sua família dissolvida; suas economias e seus bens - e sua história - apropriados pelo Estado. 

As consequências desse novo establishment é perceptível, gradualmente, por toda a população, mas nosso “herói” fanático, com sua lealdade ideológica sempre encontra uma justificativa positiva - por mais absurda que pareça perante a realidade - para aceitar as situações paradoxais.


Como sempre acontece nesses regimes totalitários de Estado, Richter previu todos seus desmandos e incompetência na administração econômica da nação, com falta de trabalho, racionamento de alimentos e suspensão das das liberdades individuais sob ameaças permanentes, entre outros desastres políticos e sociais.

Leitura recomendada a todos os simpatizantes de regimes de esquerda por apresentar, de forma visionária, tudo o que intercorre nos países que adotaram e adotam esse sistema político de governo.


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Valdemir Martins

04.06.2024


Fotos: 1. Capa do livro; 2. Max e Engels; 3. Livro 1984, inspirado nesta obra; 4. Compartilhamento de moradia; 5. Fila do racionamento de alimentos; 6. O autor Eugene Richter.


22 de jul. de 2024

O Pacto da Água traz um grande rio literário.

Inebriante! Talvez não seja o adjetivo mais adequado para definir o belíssimo romance O Pacto da Água, do médico e escritor etíope americano Abraham Verghese, um destaque entre os best-sellers campeões do New York Times. Mas, fica difícil escapar dessa definição depois que se inicia a leitura da obra. Você simplesmente não consegue parar.

A água, presente no título, e a medicina inundam toda a obra. E nesse aluvião Verghese revela-se um perito em enredar situações, biografias e histórias. Sem dúvida, trata-se de uma saga familiar, com diversos protagonistas, elaborada numa linguagem direta, descrições precisas, rica na elucidação dos cenários e diálogos dinâmicos, entremeados de colocações poéticas e precisões políticas, históricas e geográficas.

É o enredo de uma família hindu cristã do sul da Índia, marcada por um carma, como acredita ter boa parte das famílias daquela região. O livro desenvolve-se revelando os costumes e diferenças daquela população de forma desenvolta e com o uso dos nomes originais das coisas, entre apetrechos, roupas, comidas, profissões, frutas, peixes, por exemplo.

Após rápida e dramática escala na Escócia, a narrativa prossegue na tradicional cidade de  Madras (hoje Chennai) no Golfo de Bengala, no leste da Índia, com o médico Digby, trazendo uma crítica refinada à colonização inglesa na Índia, embrutecida pelo esnobismo e discriminação da maioria dos britânicos que lá atuaram. Aí surge um médico sueco, que além de competente, surpreende-nos com suas atitudes espiritualistas e humanitárias. E faz o primeiro link entre as histórias dos protagonistas.

Verghese expõe a hoje abominável separação social por castas na Índia, atingindo níveis inacreditáveis de intolerância e preconceito - graças à incivilidade -, condenando as castas inferiores à extrema pobreza e suprema ignorância. A independência da Índia do jugo colonialista britânico e o maligno risco comunista percorre também todo o enredo.

Então, algo inédito e surpreendente: a cena de uma relação sexual absolutamente sublime e nada erótica é outra proeza literária elaborada por Verghese, onde o autor se supera. Como já disse no início, simplesmente inebriante.

Em meio a diversas situações médicas, brilhantemente descritas por Verghese - que é médico -, tornando-as acessíveis aos leigos, dramas passageiros  e até arrasadores desenrolam-se numa atmosfera excepcionalmente humanística que permeia toda a obra. Alguns momentos tristes que nos tocam profundamente podem trazer lágrimas aos olhos, pois ao correr da leitura passamos, involuntariamente, a amar alguns protagonistas e personagens.

Esta obra tem o dom de a cada personagem introduzido no enredo, gerar uma rica figura ou situação que abrilhanta o livro, mantendo-o num alto nível de excelência literária. Personagens fascinantes, diálogos preciosos, informações valiosas, históricas e contundentes constituem o liame e a espinha dorsal da formação da maravilhosa saga. 

Esta obra somada à anterior O Décimo Primeiro Mandamento demonstra que Abraham Verghese já está a merecer alguma premiação literária expressiva e as atenções mais profícuas dos membros do conselho da Academia Sueca do Prêmio Nobel.


Na gíria, um livro gigante; no popular, um livro maravilhoso. Ou seja, uma gigantesca e maravilhosa obra literária, com drama, romance, aventura, poesia, culinária, geografia, artes e muita medicina para os que gostam de uma ótima e inebriante leitura. Imperdível!


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Valdemir Martins

24.05.2024


Fotos: 1. Capa do livro; 2. O Sul da Índia; 3. A predominância dos rios; 4. O elefante amigo da família; 5. As maravilhas de Tamil Nadu; 6. A estação de Madras; 7. As inundações das Monções; 8. Abraham Verghese.