Há dias que tudo começa conturbado. Algo dá errado, um esquecimento, um acidente e o inesperado, e você prefere não ter levantado da cama, pois não consegue realizar aquilo que precisa. E esse é o primeiro dia do protagonista-título Baumgartner, em mais uma grande obra – e último romance - do consagrado escritor americano Paul Auster.
Dir-se-ia que trata-se de um romance sobre o azar, tamanha a intensidade de coisas erradas sequenciais que recepcionam o leitor, não fosse uma narrativa tremendamente humana, peculiaridade forte nos textos de Auster. Com todo seu talento, ele inicia a obra, por conseguinte, traçando as características atrapalhadas de um viúvo de setenta anos enfrentando imprevistos logo pela manhã.
Então, surge a personagem que o fará afastar-se de seu luto, sem, contudo, cessá-lo: uma segunda companheira de vida, como emblematicamente profetizara a parceira original. Mas, claro, mais um desastre. E num texto magnífico, de simbologia profunda, Auster leva nosso protagonista a retornar a seus textos. Ali, reflexivamente, ele entende ser prisioneiro de si próprio. E que a solidão esfacela sua estrutura, sua condição humana; sua vida. E, com toda a virilidade de um jovem, sente-se velho. E decide, apesar de tudo, libertar-se.
Simultaneamente, tem a percepção de leves sinais de senilidade, ou como prefere encarar, “o princípio do fim”. Doces recordações da infância com a irmã e a adolescência com os amigos, as passagens marcantes em transportes e as recordações históricas com a família, como filmes, projetam-se em sua mente. Chega ao extremo de ir conhecer a terra natal do avô, em mais uma deliciosa representação de Auster, numa provável incursão familiar autobiográfica, dentre outras tantas passagens deste livro. Tudo isso, numa extraordinária análise criativa e expositiva do amadurecimento e da velhice.
Sua escrita é limpa, criativa, musicalmente absorvível, apesar da objetividade. Leve, apesar das inúmeras tragédias e contratempos. E sempre desejosamente romântica. Usa a simbologia de forma precisa, forçando o leitor a reflexões soberbas sobre o protagonista, mas enlaçando-nos e propiciando-nos a possibilidade de refletirmos sobre nós mesmos. Sobre o próprio luto, o amor e a memória. Dentre tantos outros trechos extraordinários, a descrição das deambulações de seu pai para escrever uma carta, bem como o conteúdo da missiva, é uma dos mais exuberantes textos da literatura norte-americana moderna.
Escritor nova-iorquino típico, foi imensamente premiado na Europa – em especial na França -, o que lhe faltou absurdamente em seu próprio país.
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Valdemir Martins
22.09.2024
Fotos: 1. Capa do livro; 2. A queda na escada; 3. Os sinais da senilidade; 4. O mundo dos livros; 5. A nova companheira; 6. A emocionante carta do pai; 7. Auster em sua biblioteca; 8. O autor Paul Auster.