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23 de mai. de 2019

Este livro não tem rosto de romance.


Pode-se até ler Svetlana Aleksievitch como se fosse um romance, tamanha a dramaticidade dos escritos da premiada escritora e jornalista bielorrussa, incluindo o Nobel de Literatura de 2015.

No seu primeiro livro A Guerra não tem Rosto de Mulher, de 1986, a hoje setuagenária inicia a obra num prólogo já emocionante, estarrecedor e dramático. E, numa relevante e construtiva postura feminista, esclarece e inicia sua inédita e importante inversão das narrativas sobre as guerras:

Trabaladora, pegue em arma!
“Não sabíamos como era o mundo sem guerra, o mundo da guerra era o único que conhecíamos, e as pessoas da guerra eram as únicas que conhecíamos. Até agora não conheço outro mundo, outras pessoas. Por acaso existiram em algum momento? A vila de minha infância depois da guerra era feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram.”

Menina na guerra
Por essa conclusão lógica, constatou então que tudo o que se falava, escrevia e consagrava sobre as guerras era através da voz masculina. E, depois de inúmeras pesquisas e entrevistas com mulheres que viveram a guerra, concluiu que os relatos femininos são distintos e falam de outras coisas: “A guerra ‘feminina’ tem suas próprias cores, cheiros; sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores”. E completa: “Um mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida… Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres”, esclarece Svetlana.

Sapadoras no cerco de Moscou
Assim surge a monumental crônica feminina sobre a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente nos confrontos entre nazistas e Exército Vermelho soviético, com passagens pela Revolução Bolchevique sob a tutela do carniceiro ditador Stálin. Trata-se, sobretudo, de um livro para pessoas sensíveis e corajosas, tanto homens como mulheres, interessados na verdade nunca contada - nem imaginada - sobre os reais bastidores das guerras, com mais de um milhão de mulheres tanto na retaguarda como na linha de frente dessas batalhas.

Batalhão de fuzileiras
A Academia Sueca atribuiu valor e poder a uma obra e estilo inéditos. Em séculos de literatura nada nesse gênero havia sido escrito. Svetlana criou, assim, um novo gênero literário classificado como novela coletiva. Ou seja, com seus textos a meio caminho entre a literatura e o jornalismo, ela usa a técnica de “colagem”, justapondo testemunhos individuais com o que consegue aproximar-se mais da substância humana dos fatos. 

As temidas aviadoras soviéticas
Não se consegue encontrar algo no estilo aproximadamente similar nem nas obras dos norte-americanos Truman Capote, Gay Talese, Tom Wolfe e Norman Mailer, precursores do jornalismo literário. Não se trata de escrever ensaio ou crônica sobre um único fato individual ou familiar, mas sim de uma tragédia coletiva de uma época longa baseado em dezenas de testemunhos explícitos de inúmeras mulheres, arrancados de suas almas. 

Mulher em luta corporal
A sofrida e feroz vitória soviética sobre os nazistas custou mais de 20 milhões de vidas humanas em quatro anos e só foi conseguida graças à imensa participação das mulheres soldados com idades entre catorze e mais de cinquenta anos. Sim, isso mesmo: de crianças a idosas.

Em nome da Revolução Bolchevique, o inescrupuloso e homicida Stálin, já em 1937, três anos antes de se enfiar na guerra contra os alemães com seu Exército Vermelho, começou a eliminar dessa hoste milhares de soldados e principalmente comandantes “não confiáveis” para se garantir no poder, consolidando sua ditadura sanguinária. E, assim, como não havia homens suficientes na União Soviética, as mulheres tiveram que se sacrificar heroicamente na defesa da pátria.

Órfãos soviéticos
Antes da metade do livro você se convence que pouco conhece de guerra. Tudo o que sabe é o básico, histórico, técnico, de heroísmo barato, com muito pouco sentimento. Pois Svetlana é implacável em sua apresentação crua, real, detalhada e humana da guerra. Sim, você vai ponderar: no meio de algo tão animalesco a guerra é humana. Em meio a algo tão “desumano” são as atitudes femininas, das soldados lá engajadas para vencer e sobreviver, que se destacam os atos heroicos e extremamente humanos, dilacerando a alma, a mente e a vida dessas guerreiras chamadas então de “irmãzinhas” por seus companheiros de batalhas, fugas, fome, frio, destruição e atrocidades. Enfim, de verdadeira carnificina.

Svetlana Aleksievitch
Neste livro, dezenas de depoimentos emocionantes, brilhantemente arrematados e organizados por Svetlana ao longo de anos, traduzem o ineditismo do massacre que foram os embates entre soviéticos comunistas e alemães fascistas (como são tratados pela autora), moldados pelos inacreditáveis destinos de patrióticos soldados soviéticos tratados como traidores pelo totalitarismo gélido e sangrento do alto comando stalinista.

Depois deste livro você vai encarar novas narrativas de guerras com outra visão. E vai concluir que tudo que já leu sobre os conflitos bélicos não tem realmente rosto de mulher.

Valdemir Martins
Em 22/05/2019.

Outros livros da autora publicados no Brasil pela Companhia das Letras: O Fim do Homem Soviético, Vozes de Chernobil, As Últimas Testemunhas e Rapazes de Zinco.

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13 de mai. de 2019

Flores para Algernon: a vida por trás de uma janela.


Ler “Flores para Algernon” incomoda. Desde o início, onde parece que estamos lendo com areia nos olhos. A escrita com grafia errada e encoberta propositalmente pelo norte-americano Daniel Keyes para reforçar a condição de retardado mental do protagonista Charlie, por quarenta páginas iniciais, é o que dá início ao incômodo. Mesmo assim, o leitor não desgruda do livro.

Então, a ansiedade de Charlie torna-se contagiante e atinge quem está lendo sua luta para ficar inteligente, seja na padaria onde trabalha, no laboratório experimental ou nas consultas médicas. Seja nas disputas com Algernon. E, aos poucos, o texto começa a mudar e o personagem começa a desabrochar, como uma flor cercada de espinhos.

Charlie após cirurgia
Começa então a ficar clara a proposta de Keyes de ir desmontando, gradualmente, as imagens que se constrói das pessoas, sejam elas doutores, estudantes, genitores ou simples trabalhadores braçais. Não só no texto, mas em reflexões sobre a vida real ao que o leitor é instigado pela força extraordinária da obra. Com intensa profundidade psicológica, o livro leva-nos a constatar - mais uma vez em ponderações – o quanto as mensagens que nos foram passadas durante a infância e a juventude influenciaram a formação de nosso caráter. E depois da leitura muita coisa pode mudar nos conceitos dos próprios leitores.

Labirinto montado por Chalie
As mensagens bruxas, que nos são transmitidas através das falas e das atitudes de terceiros durante nosso período de desenvolvimento intelectual, desde uma surra, puxões de orelha ou punições durante a infância até aqueles comentários inconsequentes – tipo “você é um inútil” ou “nunca vai ser ninguém na vida” ou ainda “Deus vai te castigar...” -, podem, inconscientemente, levar algumas pessoas a ser covardes, tímidas, agressivas ou pior, até psicopatas. Cada um acumula ou desenvolve de forma diferente, de acordo com a atmosfera em que cresce: seu ambiente familiar, suas amizades, sua educação, seus costumes. Agora, consciente de seus antecedentes pessoais, imagine se acontecesse com uma mente retardada.


Assim é com o protagonista, cuja evolução leva-o a enxergar com absoluta clareza os fatos, pessoas, locais e mensagens que lhe foram infligidas. Ele aprende tudo extraordinariamente rápido, mas não consegue evoluir emocionalmente e lidar com seus sentimentos.

Charlie e sua paixão
Apesar de fortemente densa, a obra flui com leveza, num romance de ficção científica extremamente interessante e de leitura cativante, claro, agora não mais com areia nos olhos. Do meio para o fim, a história sofre uma reviravolta com alterações no protagonista e em seu coadjuvante. E, de surpresa em surpresa, a obra consolida-se como um debate profundo sobre a bondade, o relacionamento humano e a solidão. Por uma das personagens principais, causadora de problemas e crises importantes na história, Keyes demonstra o perigo de se ter aquela preocupação “do que os outros vão pensar” e, assim, tornar-se uma pessoa egoísta em prejuízo inconsciente de quem se ama de verdade.

Daniel Keyes
O livro é um clássico da literatura norte-americana e adotado lá como leitura básica em muitas escolas de segundo grau. Consideram-na importante na formação dos jovens por despertá-los para o fato de que professores, chefes, líderes religiosos, atletas e até mesmo nossos desafetos ou amados são pessoas como nós. Têm sentimentos variáveis, dores na alma, problemas de alguma ordem, defeitos de personalidade, doenças invisíveis, frustrações diversas e também seus próprios desafetos.

Keyes, nesta obra, apresenta-nos a vida que temos – o cotidiano - por trás de uma janela. A janela da própria vida. Com muita simbologia, constrói uma obra pungente, extremamente dolorida, apesar de fascinante e assaz emocionante. Como já disse, ler esta obra incomoda. Ninguém sai incólume à leitura de Flores para Algernon.

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Sobre o livro:
Entre os temas mais recorrentes da ficção científica, a percepção de múltiplas realidades já abriu margem para narrativas clássicas e questões tão profundas quanto um buraco negro. Afinal, o mundo que sempre percebemos a nossa volta realmente existe? Mas para além dos portais interdimensionais, o autor norte-americano Daniel Keyes manteve os pés no chão dentro do universo scifi e apresentou uma história que explora o conceito, ao mesmo tempo que impacta por sua delicadeza. Publicado originalmente em 1966, Flores para Algernon foi o grande expoente da carreira do escritor, ganhador do prêmio Nebula e inspiração para o filme Os Dois Mundos de Charly (1968) – que garantiu a Cliff Robertson o Oscar de Melhor Ator. E com mais de cinco milhões de exemplares vendidos é referência dentro das escolas dos Estados Unidos. (Editora Aleph)

Sinopse (com spoiler):

A obra surgiu sobre as palavras de um homem de 32 anos e 68 de QI: Charlie Gordon. Com excesso de erros no início do romance, os relatos de Charlie revelam sua condição limitada, consequência de uma grave deficiência intelectual, que ao menos o mantém protegido dentro de um “mundo” particular – indiferente às gozações dos colegas de trabalho e intocado por tragédias familiares. Porém, ao participar de uma cirurgia revolucionária que aumenta o seu QI, ele não apenas se torna mais inteligente que os próprios médicos que o operaram, como também vira testemunha de uma nova realidade: ácida, crua e problemática. Se o conhecimento é uma benção, Daniel Keyes constrói um personagem complexo e intrigante, que questiona essa sorte e reflete sobre suas relações sociais e a própria existência. E tudo isso ao lado de Algernon, seu rato de estimação e a primeira cobaia bem-sucedida no processo cirúrgico. (Editora Aleph)

Preço médio R$ 48,00. Em algumas lojas Saraiva e no site Amazon R$ 30,90. E-book Kindle R$ 23,48.

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16 de abr. de 2019

Galilee: uma obra que cria desejos e vontades.


Pense num jogo de xadrez. Em suas regras. Esta será a estrutura básica, o arcabouço do romance épico sobrenatural Galilee*, do escritor inglês, Clive Barker. O liame de toda a trama é outro escritor, porém paraplégico com poderes sobrenaturais, membro da família Barbarossa , ligada à história dos Estados Unidos desde a Guerra de Secessão, passando por Thomas Jefferson e chegando aos nossos dias. Não sem antes percorrer fantásticas ilhas “tropicais” a partir do Mar Cáspio. Muito louco, não?

Pois é, fascinante! Barker é um exímio contador de histórias, tem a força da criatividade com uma imaginação fantástica. Consegue levar-nos a um mundo metafísico como se fosse à realidade do quintal da nossa casa, deixando-nos apaixonados por muitos personagens, intrigados com outros e desprezando alguns deles.

Neste épico da moderna literatura gótica Barker cria uma saga familiar em torno dos elementos sexo, violência, um toque de escatologia e uma paixão pelo inusitado. Galilee traz uma história envolvente, que penetra no lado sinistro dos Estados Unidos com uma grande visão transcendental e onde, apesar do protagonista, o grande destaque são as mulheres.

Cenário comum no livro
A família Geary é tão rica quanto os Rockfeller e tão glamourosa quanto os Kennedy, e sua dinastia tem exercido uma influencia sutil sobre a vida americana desde a Guerra de Secessão, ocultando de forma brilhante os profundos laços de corrupção e a severa hostilidade contra os etéreos Barbarossa. Ricos e poderosos, encontram-se no topo da sociedade americana. Mas a família guarda segredos terríveis e sombrios, que vão muito além de um histórico de contrafação e da hostilidade contra os Barbarossa - um clã cuja origem está perdida no tempo, envolvida em mito e misticismo.

Quando Galilee, o príncipe pródigo dos Barbarossa, se apaixona pela recém-casada Rachel Geary, o ódio reprimido entre as famílias emerge numa intensidade mutuamente destrutiva, que evocará espectros de traição, loucura e morte. As raízes das dinastias se revelarão fincadas em um solo sinistro e repleto de surpresas.

Como no xadrez e com muita imaginação, o criativo Barker constrói suas jogadas descritivas uma a uma até o desfecho que, a partir da décima parte da obra, também como no jogo, mantem o clima de suspense, sem dar pistas se teremos um empate ou um cheque-mate.

Clive Barker
Este livro desperta desejos e cria vontades. Um texto de 712 páginas que se lê com muito prazer, atravessando história, romance, fantasia, sexo e suspense, fugindo assim, da praxe dos textos de horror tradicionais do autor. E você lamenta quando termina a leitura. Com sua imaginação e talento para construir mundos que não existem, Barker arquiteta uma viagem sobrenatural, criando situações fora do tempo e do espaço. Algumas coisas ficam sem solução no final do livro e isso pode indicar que teremos uma provável continuação. Ou, o mais provável, é que no mundo criado por Clive Barker nem tudo tenha uma resposta.


Valdemir Martins
Em 08/04/2019.

*Livro esgotado, encontrado em sebos (Estante Virtual) ou sob encomenda na Livraria da Travessa. Publicação da Editora Bertrand Brasil, 2006.

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16 de mar. de 2019

Nunca presuma. Procure sempre além do óbvio.



Quem aprecia ler suspense e fantasia vai salivar no princípio do livro O Homem de Giz, da inglesa C. J. Tudor, sendo atropelado por uma surpreendente narrativa num parque de diversões e a apresentação de um diferenciado personagem branco, no qual muitos leitores apostam suas fichas, por dedução, ser o homem de giz. E você diz “oba, o livro promete”. Daí, num arrefecimento voluntário e bem menos cinematográfico, Tudor inicia a composição de seus interessantes personagens, alguns deles bastante esquisitos e a maioria problemáticos.


Apresentados ao passado dos personagens e à suas condições atuais, nova surpresa numa cena transcorrida no bosque da cidade e que lembra – principalmente para quem leu – as cenas de reunião do grupo de meninos e uma menina e suas brigas com o grupo rival no livro It, a Coisa, do Stephen King.

Entremeando humor negro e descrições fielmente nojentas e horripilantes com o imprevisível e o surpreendente, Tudor vai intercalando também os incógnitos desenhos de diversos homens de giz, chegando ao extremo de sorrisos em cabeças sem rosto. Um clima de efervescência sem ebulição cresce alucinadamente a partir de uma reflexão sobre vida e relacionamentos em meados do livro. Personagens são descritos de formas precisas e assim vamos entendendo e intuindo seu caráter, suas famílias - na maioria disfuncionais -, e suas reações. Paralelamente à história, a autora expõe também os dramas do envelhecimento e da precariedade da vida. E passa-nos um conselho sábio: “Nunca presumas. Questiona tudo. Procura sempre além do óbvio”.

Narrada em duas épocas paralelas (1986 e 2016), a história tem o efeito de fazer com que o leitor crie sempre expectativas diferentes do que realmente vai ser lido, submetendo-se, assim, a inovadoras surpresas. O texto tem uma linguagem dinâmica, ágil, eivada de medos, rancores, desconfianças, reviravoltas surpreendentes e descrições terrivelmente sanguinolentas. O leitor, em muitas situações, passa a acreditar que se trata não só de um livro de suspense, mas também de fantasia, tamanha a qualidade da manipulação imaginária da autora.

C. J. Tudor
A obra pode não ser um primor como thrillers de consagrados autores, mas aí é que se abrilhanta o talento de Tudor, trazendo-nos algo extremamente diferente, entremeando bom texto literário e reflexões com choques de eletrizante suspense e cenas de impacto. Este é seu romance de estreia e já nos apresenta muito do seu talento. Nesse caminho, eliminando desmazelos literários, logo chegará ao topo. É minha aposta, aguardando seu próximo livro.

Valdemir Martins
16/03/2019.

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Sinopse:
Em 1986, Eddie e os amigos passam a maior parte dos dias andando de bicicleta pela pacata vizinhança em busca de aventuras. OS desenhos a giz são seu código secreto: homenzinhos rabiscados no asfalto; mensagens que só eles entendem. Mas um desenho misterioso leva o grupo de crianças até um corpo desmembrado e espalhado em um bosque. Depois disso, nada mais é como antes. Em 2016, Eddie se esforça para superar o passado, até que um dia ele e os amigos de infância recebem um mesmo aviso: o desenho de um homem de giz enforcado. Quando um dos amigos aparece morto, Eddie tem certeza de que precisa descobrir o que de fato aconteceu trinta anos atrás. (Editora Intrínseca)

The Taking of Annie Thorne 

Este é o título em inglês do novo livro de C. J. Tudor, lançado agora nos Estados Unidos e sem previsão – nem título ainda – para o Brasil. Segundo dicas da autora, é um suspense centrado em um mistério que ficou sem solução há décadas: o desaparecimento de uma menina e seu misterioso retorno, quarenta e oito horas depois, incapaz de contar o que lhe ocorreu e completamente diferente de seu estado habitual.

28 de fev. de 2019

O Conto Surrealista da Aia



O best-seller O Conto da Aia, minha primeira leitura de Margaret Atwood, revelou-se extremamente vagaroso em seu início. Quase desisti, pois além de lento, o desenvolvimento da obra é frequentemente mesclado com descrições similares às de um romance de formação, como a de um consultório médico que, se omitido, não seria notado, mas, enfim, tem seu valor literário:

“Quando sou chamada passo por uma porta de entrada que dá para uma sala interna. É branca, sem traços distintivos, como a sala externa, exceto por um biombo dobrável, de tecido vermelho esticado sobre uma estrutura de madeira, um olho dourado pintado na superfície, com uma espada virada para cima com duas serpentes entrelaçadas abaixo dele, como uma espécie de punho. As cobras e a espada são fragmentos, cacos de simbolismo quebrado que restaram do tempo de antes.”

O muro dos enforcados
Porém, evoluindo a leitura, fui constatando que não se tratava de um texto fraco, ruim. Afinal, é um Atwood (diriam). Apesar de uma história pouco vibrante, morosa, a estrutura do texto é fascinante, dinâmica. Trata-se, pois, de um romance surrealista e não uma ficção científica como muitos insistem afirmar. A própria autora assume que é um romance de ficção especulativa de algo possível de acontecer. No caso deste romance especificamente, nota-se que o talento de Atwood tem a preocupação de explorar o inconsciente; prospectar sistematicamente os sonhos, as coincidências, e os fenômenos do acaso; e injetar magia, humor negro e inquéritos sobre a sexualidade e o amor. Tudo, sem exceção, requisitos básicos para se classificar o texto na doutrina de André Breton.

A protagonista ocupa-se amiúde de ponderações e reflexões sobre o “tempo de antes” e de possibilidades presentes e, às vezes, futuras. Seus pensamentos constantemente voam, flutuam em possibilidades. A cena de quatro mulheres numa ambulância é icônica nesse sentido, beirando o non-sense.

O fio condutor da obra é a história da Aia Offred (of Fred, pertencente a Fred), sobrevivente numa catástrofe distópica; uma guerra conduzida por fanáticos fundamentalistas religiosos cristãos que, além de alterarem até a Bíblia, mudam todo o conceito evolutivo do dia-a-dia do homo sapiens. Uma doutrina retrógrada dominante; uma teocracia onde a mulher é simplesmente objeto: fantasia que corrobora a caracterização de ficção surrealista.

Margaret Atwood
A narrativa de Atwood incomoda. Claro, não pelo texto, mas pelas situações permanentemente descritas – e pormenorizadamente descritas. Ela faz questão de chocar o leitor e de despertá-lo para situações drásticas que podem ser eminentes. É sua forma de alertar sobre os perigos que nos rondam via radicalismos presentes em todo lugar e nas mais diversas situações sociais, políticas, tecnológicas, religiosas e militares no mundo atual.

A obra é uma transgressão ao regular. Transfigura-se numa antologia de digressões e Atwood, por ser também poetiza, despenca invariavelmente em lirismos em meio à narração de fatos, como se estivesse divagando. Mas isto é intrínseco às obras surrealistas e aí se destacam as qualidades literárias da autora, pois o enredo em si configura-se numa história comum, apenas criativa. Somente a partir do capítulo trinta e dois a obra toma um ritmo mais célere e dinâmico rumo à sua apoteose de suposições. No gênero, o livro não alcança a força de A Revolução dos Bichos, de Fahrenheit 451 e de A Laranja Mecânica, por exemplo.

Lançado em 1985, o livro - um ícone feminista - voltou a ter evidência recentemente pelas feministas americanas em razão da eleição de “machista” Donald Trump. Para os homens pode ser uma leitura aborrecida, mas é um triunfo entre as mulheres.

No Brasil, O Conto da Aia foi publicado pela editora Rocco (R$ 44,50, 368 páginas); no eBook Kindle (R$ 18,85) e a série The Handmaid's Tale é exibida pelo canal Paramount. Margaret Atwood promete a continuação da obra para breve. O novo livro, intitulado The Testaments (Os Testamentos ou As Provas, em tradução livre), se passará quinze anos após os acontecimentos de O Conto da Aia e narrará a história a partir da perspectiva de três mulheres. Será lançado em 10 de setembro.


Valdemir Martins
26.02.2019

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18 de jan. de 2019

CONTRACAPA/Livros: Livros roubados por nazistas voltam a famílias e i...

CONTRACAPA/Livros: Livros roubados por nazistas voltam a famílias e i...: Pesquisadores usam internet para novas pistas de tesouro avaliado em milhões de dólares. Milton Esterow, em  O Globo  [via New York Times...

Livros roubados por nazistas voltam a famílias e instituições.

Pesquisadores usam internet para novas pistas de tesouro avaliado em milhões de dólares.
Milton Esterow, em O Globo [via New York Times]
Foto: YAD VASHEM PHOTO ARCHIVES/NYT / NYT
A busca por milhões de livros roubados por nazistas durante a Segunda Guerra Mundial é um trabalho permanente — e largamente ignorado. A pilhagem de bibliotecas realizada pelos alemães não tem o mesmo glamour que seus furtos de obras de arte, muitas delas valendo milhões de dólares.
Mas recentemente, sem estardalhaço, a busca pelos livros se intensificou, conduzida por pesquisadores que muitas vezes encontram as obras “escondidas à olhos vistos” em prateleiras de bibliotecas pela Europa.
Seu trabalho é auxiliado pela internet e por arquivos tornados públicos recentemente, mas também por bibliotecários europeus que transformaram essa busca em prioridade.
— As pessoas fizeram vista grossa por muito tempo, mas acho que isso não é mais possível — disse Anders Rydell, autor de “O livro dos ladrões: o saque nazista às bibliotecas europeias e a corrida para devolver uma herança literária”.
Dado o escopo do crime, a tarefa à frente é gigantesca. Um exemplo: quase um terço dos 3,5 milhões de livros da Biblioteca Regional e Central de Berlim pode ter chegado lá via pilhagem na Segunda Guerra.
Foto: Milton Ribeiro
— A maioria das bibliotecas alemãs tem livros roubados por nazistas — diz Sebastian Finsterwalder, que pesquisa a origem das obras.
Mas há sinais promissores. Nos últimos 10 anos, bibliotecas na Alemanha e na Áustria devolveram aproximadamente 30 mil livros para 600 proprietários, herdeiros e instituições. Em um caso de 2015, quase 700 obras roubadas da casa de Leopold Slinger, um especialista em engenharia petrolífera, foram restituídos a seus descendentes pelo governo austríaco.
— Há progresso, mas lento — disse Patricia Grimsted, pesquisadora da Universidade de Harvard e uma das especialistas mundiais nas obras roubadas por nazistas.
Números muitas vezes não fazem jus ao que pode significar para uma família a devolução de um livro especial.
No ano passado, na Alemanha, a Universidade de Potsdam deu um importante volume do século XVI de volta para a família do seu dono, um homem morto em um campo de concentração em 1943. A obra, escrita por um rabino em 1564, explica a base dos 613 mandamentos do Torá. O neto do proprietário identificou o título em uma lista on-line de obras saqueadas e foi com seu pai, um sobrevivente do Holocausto, de Israel até a Alemanha para recuperá-lo.
— Foi uma experiência muito emocionante para meu pai e eu — diz o neto, David Schor.
Foto: fahup.blogspot.com
O trabalho para buscar livros deu um salto nos anos 1990, quando Patricia Grimsted descobriu 10 listas de itens roubados de bibliotecas francesas por uma força-tarefa comandada pelo ideólogo nazista Alfred Rosenberg. O grupo pilhou mais de 6 mil bibliotecas e arquivos por toda a Europa — mas deixou também detalhados relatórios de suas ações, muito úteis para recuperar o que foi roubado.
Ainda que Rosenberg, enforcado como criminoso de guerra em 1946, fosse a principal força por trás do saque de bibliotecas, ele tinha um competidor em Heinrich Himmler, o líder da organização paramilitar SS, cujos agentes eram particularmente interessados em livros sobre maçonaria.
Os alvos nazistas eram principalmente famílias e instituições judaicas, mas incluíam também maçons, católicos, comunistas, socialistas, eslavos e críticos do regime. Ainda que livros tenham sido queimados pelos seguidores de Hitler em sua ascensão, mais tarde muitas obras foram transferidas para bibliotecas e para o Instituto de Estudo da Questão Judaica (Institut zur Erforschung der Judenfrage) , criado pela força-tarefa de Rosenberg em Frankfurt em 1941.
— Eles planejavam utilizar esses livros depois que guerra estivesse ganha. O objetivo era estudar seus inimigos e sua cultura para proteger futuros nazistas dos judeus e outros antagonistas — diz a pesquisadora Patricia Grimsted.

O outro mal do nazismo
(Publicado por Publishnews em 03/05/2018)

Quando decidiu seguir o rastro dos saqueadores de livros do período nazista, o jornalista sueco Anders Rydell lançou-se numa jornada de milhares de quilômetros pela Europa. Seu intuito era compreender os fatos que levaram a essa ação tão cruel e descobrir o que ainda existe de tudo o que se perdeu durante a Segunda Guerra. Ladrões de livros – A história real de como os nazistas roubaram milhões de livros durante a Segunda Guerra (Planeta, 416 pp, R$ 79,90 – Trad.: Rogério Galindo) relata em detalhes os saques efetuados em bibliotecas, livrarias e acervos pessoais no período nazista e mostra, ainda, como um pequeno time de bibliotecários trabalha heroicamente para tentar devolver esses exemplares às vítimas do Holocausto e suas famílias. Uma narrativa que revela o que um único livro pode representar para quem perdeu tudo no conflito mais sangrento da história.

Os homens que salvavam livros
(publicado no site Amazon)

A luta para proteger os tesouros judeus das mãos dos nazistas


Uma saga de heroísmo e resistência, amizade e romance, e uma devoção inabalável à literatura e à arte, mesmo sob o risco de morte.
Os homens que salvavam livros é a incrível história real dos habitantes do gueto de Vilna, na Lituânia, que resgataram milhares de livros e manuscritos raros da cultura judaica por duas vezes – primeiro das mãos dos nazistas, depois dos soviéticos. Tendo como base documentos judaicos, alemães e soviéticos, incluindo diários, cartas, memórias e entrevistas do autor com vários participantes da história, o livro registra as atividades ousadas de um grupo de poetas e eruditos que se tornaram combatentes e contrabandistas na cidade conhecida como a "Jerusalém da Lituânia".
Partindo de uma extensa pesquisa do principal estudioso do gueto de Vilna, de estilo e ousadia excepcionais, Os homens que salvavam livros é uma história épica de heroísmo, um conto pouco conhecido dos dias mais sombrios da guerra.
Vencedor do National Jewish Book Award 2017 – Categoria Holocausto
por David E. Fishman (Autor),‎ Luis Reyes Gil (Tradutor) - Editora Vestígio, primeira edição, 2018, capadura, 352 páginas, R$ 44,38 (site Amazon), R$ 69,80 (Livraria Cultura) e-book R$ 31,41 (Amazon Kindle).

12 de jan. de 2019

CONTRACAPA: A loucura onde menos se espera.

CONTRACAPA: A loucura onde menos se espera.A obra desenvolve-se frenética proporcionando-nos protagonistas que são simultaneamente autores e personagens. São basicamente dois livros em um, ambos regados intermitentemente à prosa poética, história, religião, amor e paixão. A narrativa da primeira relação sexual de um adolescente cego é brilhantemente sublime e poética

A loucura onde menos se espera.


Uma das causas dos baixíssimos índices de leitura da população brasileira é o erro fundamental de impor títulos, autores e gêneros às crianças iniciantes em leitura principalmente nas escolas. Não vou entrar aqui no mérito das obras, mas todos sabem – ou tem ainda uma ideia – do que se obrigam os alunos a ler.

Para mim, o método ideal seria o do critério de escolha da própria criança dando-lhes sim alternativas de escolha. Enquanto minha professora me obrigava a ler Senhora, de José de Alencar e Dom Casmurro, de Machado de Assis, minhas leituras favoritas perambulavam entre Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, A Cabana do Pai Thomaz, de Harriet Beecher Stowe, Bom dia, Tristeza, de Françoise Sagan, O Cortiço, de Aluísio Azevedo e A Carne, de Júlio Ribeiro. Hoje leio com prazer o Memorial de Aires, do Machado, e estou achando excelente.

Ou seja, o fundamental para a leitura é a descoberta do prazer de ler. Com certeza, muitas pessoas que não gostam de ler nunca tiveram a oportunidade de ter em mãos ou diante dos olhos um livro que pudesse lhes dar prazer, seja pelo texto, seja pelo assunto ou a história.

Hoje por exemplo, aos 70 anos, vivo descobrindo leituras prazerosas. A surpresa mais recente deu-se com a obra Os Loucos da Rua Mazur, do premiado escritor português João Pinto Coelho. Sua grande qualidade é a construção do texto e a linguagem realista e fluente onde coloca-nos trechos enigmáticos, ironias precisas e preciosas, assim como a convivência de protagonistas e personagens díspares que enriquecem sobejamente a obra.

Polônia dividida em 1939

Mas seu estilo vigoroso e único lembra-nos em alguns aspectos e na qualidade seus compatrícios José Saramago e Walter Hugo Mãe. Senão, veja: “E depois havia Dreide, a louca. Ninguém lhe sabia pai, mãe ou nação. Chegara acompanhada por um cigano, duas mulas e uma miúda nas entranhas. O cigano desaparecera, levara uma das mulas e ficaram as três. Desde então, fixara-se ali, chegada ao vilarejo, mas ainda na floresta, por cautela.”.


Consegue colocar-nos em meio a cenas pesadas, como a descrição sucinta e precisa, meticulosa e eficaz, do búnquer onde lutam personagens, levando-nos a sentir com exatidão o clima ambiente com todos os seus fedores repugnantes e a lama e fezes grudando em nossos pés. Descreve com realismo absoluto as cenas, os locais e as reações, coadunantes ou não, numa atmosfera tétrica como: “Depois passou o cabo Marek; já sem chorar ou rezar, agarrava contra o peito uma mão decepada na esperança de que fosse a sua; logo atrás, amparado por dois companheiros, um rapazinho. Erik fixou-lhe mais os olhos esbugalhados do que as tripas que abraçava, aparvalhado.”

A obra desenvolve-se frenética proporcionando-nos protagonistas que são simultaneamente autores e personagens. São basicamente dois livros em um, ambos regados intermitentemente à prosa poética, história, religião, amor e paixão. A narrativa da primeira relação sexual de um adolescente cego é brilhantemente sublime e poética.

Cidade de Jedwabne inspirou a obra
A ajustada trama da tolerante e até pacata convivência entre judeus e cristãos num vilarejo à nordeste da Polônia só é desconjuntada, juntamente com a cidade, pelos sinistros bolcheviques soviéticos e sua cega obediência e ignorante idolatria ao líder genocida Stálin (efetivamente e fora do romance, os bolcheviques, como uma praga, destruíram tudo por onde passaram ao longo da história). A partir daí e sem a interferência dos nazis, instala-se o tétrico. E o livro transforma-se numa obra-prima do terror, com pessoas comuns promovendo - num rompante de ignorância, intolerância e crendice - um fratricídio que jamais sairá da mente dos leitores. Pinto Coelho, como já o fizera em todo o texto, prima, então, de forma descomunal nos detalhes. E como descrito na capa do livro da edição brasileira: “Na Polônia ocupada por soviéticos e alemães, o horror vem de quem menos se espera.”.

João Pinto Coelho
Um livro arrebatador, Prêmio Leya de 2017, pouco divulgado e de incomensurável valor literário para a língua portuguesa, seja pelo enredo e escrita, quer por sua estruturação e pela capacidade de fabulação de João Pinto Coelho.

Valdemir Martins
12/01/2019.

Os Loucos da Rua Mazur  - Romance português de João Pinto Coelho - Editora Casa da Palavra – Rio de Janeiro, 2018.

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