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28 de jun. de 2020

A perda de um paraíso que nunca existiu. *****


Charles Darwin, o ícone da ciência evolutiva, cravou há mais de dois séculos que “o paraíso não havia sido perdido”, uma vez que nunca existira. Corroborando essa teoria, o contemporâneo e respeitadíssimo historiador, crítico literário, professor e pesquisador da Universidade de Harvard, Stephen Greenblatt, escreveu este desconcertante “Ascensão e Queda de Adão e Eva”.

O Pecado Original
Vencedor dos Prêmios National Books Award (2011) e Pulitzer (2012), ambos de “Não Ficção” e conhecido no meio cultural, científico, acadêmico e teológico por seus inúmeros, polêmicos e preciosos livros, Greenblatt tem o grande mérito da profunda pesquisa para desenvolver e comprovar suas teses. Debruçando-se com afinco nas tábulas de argila da civilização babilônica, elaboradas em média em 1800 antes da era cristã e descobertas no século XIX em escavações de um templo de Nínive, capital do antigo império assírio (hoje Irã), ele contesta enfaticamente o Gênesis das bíblias judaica e cristã.

A Criação
E assim, leva de roldão as histórias do Paraíso ou Jardim do Éden com Adão e Eva a bordo; o Dilúvio, afogando Noé e os animais num mar de provas científicas; e, para encurtar, as científica e naturalmente impossíveis personagens com mais de 900 anos de vida.

A Expulsão
Voltando às tábulas de argila babilônicas, ele descobre que um dilúvio, igual ao de Noé com barco salvador e tudo o mais, foi causado pelo deus babilônio mais de dezoito séculos antes da era cristã e, portanto, em documentos muito anteriores e bem mais antigos do que a data em que Moisés teria recebido as tábulas da Torá no monte Sinai.

As tábulas assírias
Para o assiriologista britânico Georges Smith, o decifrador das tábulas, ficou claro que a narrativa hebraica das origens não era única de sua espécie. “O Gênesis era, evidentemente, uma resposta ao que os cativos hebreus tinham escutado vezes sem conta – dos babilônios - enquanto sentavam e choravam seu cativeiro junto aos rios Tibre e Eufrates. Comprovadamente os hebreus estavam decididos a se distinguir, desde a aurora dos tempos, dos seus ex-captores.” Assim, constituíram sua escritura religiosa hebraica à sombra das místicas babilônicas juntadas à sua história, plagiada posteriormente pelos cristãos como seu Velho Testamento.

A região de Nínive
Na sequência, Greenblatt contesta e desmonta, de maneira enfática, empírica e severa, Santo Agostinho, o maior defensor dos Gêneses bíblicos, apenas cruzando os textos de Confissões, obra máxima do religioso, com sua biografia pregressa. Surpreendente observar que um beato defensor do contrato de casamento apenas para procriação tenha vivido treze anos em concubinato libidinoso com uma mulher da qual nem cita o nome e com a qual teve um filho indesejado, exatamente como condenava.

Agostinho tornou-se um maniqueísta, sistema religioso cristão persa que considerava Jesus como um avatar da luz em oposição ao senhor das trevas e não como Filho de Deus. Os maniqueus não aceitavam as escrituras hebraicas e escarneciam dos capítulos iniciais do Gênesis, os mesmos ferrenhamente defendidos posteriormente pelo incongruente Agostinho.

Santo Agostinho
Em sua última crença, Agostinho radicaliza despejando em Eva a culpa por todos os pecados da humanidade, originadas pelo “pecado capital” perpetuado por Adão, vítima de sua parceira, e o transforma, em seus escritos e pregações, no episódio central do drama da existência humana. Para ele, por ser Deus justiçoso, o pecado original tem como extensão toda a perversidade humana e todas as desgraças como crimes horrendos, os horrores da tirania e das guerras, terremotos, incêndios, inundações, “não passam de punições distribuídas por um Deus justo”. A isso, Greenblatt rebate com a pergunta: “Poderia alguém afirmar que um doce bebê acometido de uma doença degenerativa esteja apenas recebendo a punição que mereceu?”.

E o que dizer dos milhares de crianças que morrem de fome na África e no Oriente Médio e que não são judias nem cristãs? Segundo Agostinho “para Deus ninguém é livre do pecado (...), nem o recém-nascido” (Confissões 1.7).

Responsável pela difamação de Eva como a origem de todos os pecados (segundo Agostinho), a condição da mulher, ao longo da história, passou a ser a de um ente inferior e sempre subjugado, até no Islamismo – como se comprova em seus costumes – pois Adão e Eva também estão presentes no Alcorão.

São Jerônimo
Para (São) Jerônimo, no século IV, “não foi Adão que foi enganado, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão”, conceito repetido vezes sem conta ao longo dos séculos. Foi incutido em criancinhas, invocado sempre que o equilíbrio de poder do marido se via ameaçado e lançado contra mulheres inteligentes e articuladas que pareciam não conhecer o seu lugar.

Diante do obscurantismo da Idade Média, esse conceito negativo sobre a mulher e sua origem em Eva tomou corpo e até o filósofo Tomás de Aquino chegou ao extremo de afirmar: “para viverem juntos e fazer companhia um ao outro, dois amigos juntos são melhores que um homem e uma mulher”. Tudo com o lastro da forte e sanguinária Inquisição Católica, cujos troféus máximos eram extirpar nas fogueiras a bruxaria praticada pelas mulheres e caçar os judeus que causaram sofrimento a Maria.

Dictionaire de Bayle
O primeiro desmonte público – apesar de dissimulado – das ditas fábulas do Paraíso foi lançado pelo filósofo protestante francês Pierre Bayle, em sua obra Dictionaire Historique et Critique lançada em 1697, no crepúsculo do século 17, na sombra de sua proclamação de que “uma Igreja cristã que procurava obter uniformidade mediante instrumentos de tortura e fogueira, violava a própria essência do evangelho”. Os personagens Adão e Eva aparecem em inúmeros verbetes e notas de rodapé sempre sob o olhar cético e destruidor de Bayle.

Seu Dictionaire – trinta anos após a publicação do maior poema de louvor ao Gênesis (Paraíso Perdido, do inglês John Milton) - jogava na lata de lixo lendas que pouco a pouco haviam sido adicionadas à narrativa do Gênesis ao longo de mais de mil anos. A exemplo deste pensador francês, Voltaire, mais adiante em 1764, publicava seu Dicionário Filosófico com diversos verbetes destrutivos sobre o casal pecaminoso do Paraíso. E antes de finalizar esta brilhante obra, o autor não deixa de demonstrar a incompatibilidade do darwinismo com a crença em Deus, que com certeza é incompatível com a crença em Adão e Eva.

O grupo de chimpanzés
Saindo das lendas e ficções da religiosidade e das desconstruções filosóficas, Greenblat leva-nos ao epílogo desta obra analisando as semelhanças humanas com os chimpanzés sob a luz da ciência e do evolucionismo. Pondera uma eventual vida dos símios num paraíso e quais seriam suas reações mediante a nudez, ao conhecimento e demais itens importantes nos argumentos paraisionistas.

E após uma demorada e detalhada observação de um grupo completo de chimpanzés (crianças, jovens, adultos e velhos) em seu habitat natural, junto com outros cientistas, notaram que eles possibilitaram ver como seria viver sem o conhecimento do bem e do mal, da mesma forma como vivem sem sentir vergonha e sem saber que estão destinados a morrer. E conclui: “Eles ainda estão no Paraíso.”. Mas isso acontece porque formamos nossa ideia do Paraíso a partir de noções oriundas do nosso conhecimento do bem e do mal. “Nós já caímos; eles, não.”.

Stephen Greenblatt
Assim, como o mito de Adão e Eva está no cerne da nossa formação religiosa e cultural, deixando suas marcas através dos séculos, de vários pontos de vista – psicológico, artístico, teológico -, a trágica fábula determinou o modo como lidamos com o amor e a morte, a culpa e o desejo, e moldou de forma definitiva nosso destino.

Ascensão e Queda de Adão e Eva, apesar de tratar de um assunto tão sério, é uma obra eletrizante de fácil leitura e compreensão, passível de ser contestada somente por outros cientistas e estudiosos isentos, mas jamais por religiosos, por razões óbvias de defesa dos pilares das principais crenças religiosas dominantes.

Valdemir Martins
25.06.2020

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23 de jun. de 2020

A assustadora e reveladora batalha de Londres ****


Londres em 1854
Em meados do século XIX, a cidade de Londres era a mais populosa do mundo, concentrando, só no distrito de Berwick, 108 habitantes por km², enquanto, por exemplo, Manhattan abriga hoje algo em torno de 25 habitantes por km². A quantidade de dejetos humanos concentrados no espaço metropolitano infligia a Londres uma fedentina sem par, uma vez que a maioria das fezes era apenas recolhida pelos chamados catadores, que as vendiam para fertilizar as hortas e pomares das redondezas. Não havia sistema de esgoto e os penicos cheios eram despejados pelas janelas.

Broad Street onde tudo começou
Este é apenas um dos assuntos de que trata o livro O Mapa Fantasma, de Steven Johnson, escritor de ciência norte americano que transformou um episódio da história da ciência numa narrativa eletrizante, demonstrando como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles. No mundo de hoje, com desinfetantes específicos, medicamentos adequados, sistemas de canalização e tratamento de esgoto e, enfim, com saneamento básico, não se tem a menor noção do que eram, há pouco mais de um século e meio, as condições de insalubridade até dos mais nobres em todo o mundo.

A bomba d'água maligna
Este livro, nesta época de pandemia do Coronavírus, torna-se uma leitura bastante interessante para demonstrar, de forma dramática e eficiente, como um vírus ou qualquer bactéria contamina com facilidade a população e a importância da prevenção e controle. Nele é demonstrado, por exemplo, a importância das bactérias e que, diferentemente dos vírus, sem elas não haveria vida neste planeta. Igualmente, Johnson explora o assunto e alerta para o risco de pandemia a partir da evolução e adaptação do vírus A1N5 (gripe aviária) no ser humano, o que provavelmente aconteceu com o aparecimento do Covid-19.

Mapa pioneiro de Snow no jornal
Dr. John Snow
Voltando a Londres, um dia em agosto de 1854, no populoso Soho, uma bebê de seis meses começa a vomitar e evacuar fezes líquidas e esverdeadas. Sua mãe, seguindo as normas de higiene da época, lavava suas fraldas e panos num balde e depois despejava seu conteúdo pestilento (com Cólera) numa fossa que desaguava no Tâmisa, rio que cruza a parte mais populosa da cidade e em cujas margens trabalhavam catadores de ossos, de fezes, de ostras, junta-trapos, lameiros, exploradores de esgotos, lixeiros, limpadores de fossa, cata-velas, cata-bagulhos entre outros. Mas o rio famoso também abastecia a cidade de água “potável” e o contágio pelo vírus do Cólera foi inevitável, provocando a maior epidemia de todos os tempos.

Esgoto pioneiro de Londres
A partir desse episódio, a narrativa nos leva à descoberta do tratamento inicial do Cólera e à obrigação do governo britânico de desenvolver um sistema de esgoto para a cidade, que hoje serve de modelo tanto para as metrópoles como para as pequenas cidades pelo mundo.
Stephen Johnson


E nessa balada, com ritmo, sarcasmo e inúmeras comparações com situações da atualidade, o autor nos proporciona diversas e agradáveis informações sobre nossa evolução social, científica e tecnológica, numa linguagem coloquial muito envolvente. Traz, inclusive, dados históricos muito interessantes, como, por exemplo, o fato de a Rainha Victoria ter exigido que o parto do seu quarto filho fosse indolor, usando as técnicas do Dr. John Snow – não o da série Game of Thrones –, mas o descobridor do clorofórmio como anestésico e das origens do Cólera.  Impossível não refletir sobre nosso passado, nosso tempo e nossa vida durante a agradável leitura desta obra.

Valdemir Martins
08.06.2020









6 de mai. de 2020

Como um bom vinho no primeiro gole *****


Como um bom vinho no primeiro gole, ler Um Cavalheiro em Moscou, do novelista norte-americano Amor Towles, pode enganosamente parecer-nos, em princípio, um pouco adstringente. Seu primeiro quinto desenrola-se vagaroso e a seguir começa a pegar o ponto, como se diria na culinária. Mas o vigoroso esplendor que se segue num crescente marca esta obra como uma das mais importantes da literatura deste começo do século XXI.


Towles escreve como um verdadeiro cavalheiro literário, com elegância, idéias e colocações refinadas, farta demonstração cultural, dramaticidade contida, fina ironia e riqueza de situações e personagens marcantes e inesquecíveis. Mas, para se ler este romance literário é importante que se tenha alguma noção da história do começo do século passado, em especial na Rússia; de gastronomia e enologia clássicas, etiqueta à mesa, moda, mobiliário, cinema, literatura e música da época.

Entrada e recepção do hotel
Hotel Metropol Moscow
O palco desta deslumbrante história é o lendário Hotel Metropol, uma joia de cinco andares da art-nouveau em Moscou, local onde desfilaram as maiores celebridades e personalidades do século 20. Situado próximo à Praça Vermelha, em frente ao glamouroso Teatro Bolshoi, foi construído por um industrial e mecenas na virada do século passado. Nele o leitor passa a conviver com o protagonista, o incomparável Conde Aleksandr Ilitch Rostov, condenado a lá viver em prisão domiciliar pelos burocratas do então regime revolucionário comunista.

Lobby do hotel
O flagrante abismo entre a cultura aristocrática russa czariana e os rudes e rudimentares atos e costumes bolcheviques é por ele explorado de forma a valorizar cada lado na sua forma superlativa. A fascinante Moscou em transição mostra que seus monumentos e cultos criados por gestores, artistas e agentes culturais refinados são tão valorosos que nem a brutalidade camponesa e inculta de seus novos dominantes consegue destruí-la.

Elevadores e escadaria
A suite da Mme. Salgueiro
Contracenam com o Conde, de modo fluente e dinâmico, duas intrigantes e inteligentíssimas meninas, escritores, diplomatas, músicos, jornalistas, os dedicados e fiéis funcionários do Metropol, atrizes e bailarinas, camaradas do novo regime e um gato zarolho.

Restaurante Piazza
Num rico colóquio entre o protagonista e um simples operário em cima de um telhado mereceria um quadro emoldurado por nobre material, se numa página coubesse.  Nele, sem duvida, consegue-se saborear um delicioso pão preto com mel e café fresco. Nada escapa à intensa criatividade de Towles, desde os nativos cães borzóis, às quarenta variedades de maçãs soviéticas e a delicadeza das flores dos Lilases das praças moscovitas. Por outro lado, não deixa de protestar, nas entrelinhas, contra o Prêmio Pulitzer de Jornalismo atribuído ao americano Walter Duranty (NY Times), que relatava “apenas rumores” de fome na URSS enquanto 32 milhões de pessoas morriam de inanição, massacradas pelas ações de coletivização do campo por Stálin, na Grande Fome de 1932/33, principalmente na Ucrânia.

Hall do Restaurante Boyarskiy
Towles atravessa o tempo revelando o isolamento e a estagnação cultural, tecnológica básica e de costumes da União Soviética, chegando a uma brilhante conversa de cama onde põe em cheque também a evolução humana uma vez que o povo soviético, quase na década de 1960, desconhece o aspirador de pó e a máquina de lavar roupas enquanto seu governo apenas reinventa o comum, produz armas modernas e uma usina atômica. Demonstra, ainda, que de nada serve uma vasta cultura pessoal se o individuo não acompanha o novo, seja nas artes, na ciência, na vida ou na política. Além de surpreendentemente nos ensinar o valor universal da companhia de uma criança: “...lembre-se que ao contrário dos adultos, as crianças querem ser felizes. Por isso, ainda têm a capacidade de tirar grande prazer das coisas mais simples.”

Como um autêntico romance moderno, Um Cavalheiro em Moscou tem uma construção dinâmica, nem parecendo um romance de formação, graças ao uso inteligente e agradável de flash backs muito bem encaixados que vão intermitentemente, sem alterar o ritmo da obra, apresentando a vida do protagonista. Diferentemente de livros tradicionais e até consagrados, Towles amarra-nos à sua narrativa sem floreios ou volteios, fazendo com que a leitura evolua prazerosamente, sem os aborrecimentos de descrições cansativas e detalhes desnecessários ou sensacionalistas.

Amor Towles
O bostoniano Towles torna-se, assim, uma agradável surpresa literária contemporânea. Este seu livro ficou mais de quarenta semanas como mais vendido nos EUA e foi consagrado o livro do ano (2016) pela crítica ianque. Recomendo sua leitura, com persistência na parte inicial como quem estivesse lendo a obra de um consagrado escritor russo. Logo a seguir, o leitor terá que acompanhar o dinâmico texto e frenética história de um protagonista russo escrito por um talentoso e promissor escritor americano.

Valdemir Martins
09.04.2020

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6 de abr. de 2020

Primo Levi sempre nos limites da morte. ***


O escritor italiano Primo Levi inicia o que é considerado um dos mais importantes trabalhos memorialísticos do século XX às vésperas da sua morte. Só que, para seu gaudio – e de seus  milhões de leitores – no livro É Isto um Homem? (Se questo è um uomo) seu destino real é inúmeras vezes adiado, fazendo com que a obra desenrole-se permanentemente nos limites da morte.

Tive a oportunidade de ler trabalhos brilhantes sobre os holocaustos judeu e ucraniano, onde esses genocídios aniquilaram em onze anos, seis milhões de judeus por ordens de Hitler e, em apenas dois anos - no chamado Holodomor -, doze milhões de ucranianos famélicos por ordem de Stálin. Os judeus, arrancados de seus lares e jogados em guetos, campos de concentração e extermínio; os ucranianos, impiedosamente massacrados em seus próprios lares e quintais.

Stálin: tão cruel quanto Hitler
Obras como Treblinka (Jean-François Steiner), Mila 18 (Leon Uris), A lista de Schindler: A verdadeira história (Mietek Pemper), A Menina que Roubava Livros (Markus Zusak), As Mulheres do Nazismo (Wendy Lower), A Noite (Elie Wiesel), A Fome Vermelha (Anne Applebaum), muito bem descrevem esses tétricos episódios da história humana. Mas poucos deles são tão memoriais e sensíveis quanto o texto brilhante de Levi.

Auschwitz
Sua escrita é sentimental, apreende as nuances do bem e do mal demandadas pelas mentes cativas e as dominantes. Descobre e revela poesia em meio ao caos, à bestialidade e ao aniquilamento. Sua escrita, assim como ele, sobrevive, resfolega, brota em arranjos plenos de humanidade em meio à crueldade. Supera o simples e engaja-se liricamente no intrincado meandro de mentes egoístas, poderosas, frígidas e violentas.

Primo Levi
Ler "É Isto um Homem?" é ingressar no sentimento objetivo e claro do autor: “Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos.”

Uma obra para se aperfeiçoar a história e o conhecimento sobre o humano, onde nada é bíblico nem fábula. Esta é a história real que todo ser humano, apesar da evolução, tem que conhecer e admitir em sua idade adulta, já que é inconcebível conhecê-la na idade escolar. Afinal, é um aprendizado sobre a que extremos o homem pode chegar no tratamento a seu semelhante.

Valdemir Martins
17/02/2020.

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29 de jan. de 2020

O Monumento Literário de Delia Owens. *****

Se você definir o livro Um Lugar Bem Longe Daqui, da norte-americana Delia Owens, como sua próxima leitura, escolheu uma belíssima obra. Na lista dos mais vendidos há dois anos no ranking ianque, com mais de 3,5 milhões de exemplares vendidos somente por lá, este romance de formação* narra a jornada sofrida e solitária de uma menina de seis anos em busca de sobrevivência num lugar inóspito.

Um livro surpreendente escrito por uma cientista especializada, mas de uma sensibilidade, uma criatividade e uma inteligência fenomenais, com o requinte de entremear poesias intrínsecas ao contexto da obra. Uma narrativa dolorosamente bonita com texto suntuoso nos relatos plenos de solidão, de amor, de solidariedade e de convivência com a poesia silente da natureza. Um verdadeiro manifesto adverso ao preconceito, à destruição da natureza, à usurpação, à irresponsabilidade e ao egoísmo.

Owens conta-nos uma história de crescimento com muitas nuances de profunda emoção. O flerte pré-adolescente, o amor platônico, o despertar e a calada necessidade sexual estão presentes nestas surpreendentes narrativas que leva-nos à convivência inescapável com a natureza. As aventuras permeiam o texto também com bastante emoção. A narrativa da luta da menina contra as violentas correntes marítimas é de tirar o fôlego. E suas descrições bucólicas e encantadoras de praias, brejos, rios e lagoas; bandos de lindas aves e inúmeros e delicados insetos são os fios dourados entremeados num texto brilhantemente criativo.

Foto Editora Intrínseca

Como se não bastasse esse contexto, a criativa Owens escreve em paralelo o relato de um estranho crime, despertando no leitor, de forma crescente, uma ansiedade e suspense por seu desfecho, uma vez que envolve importantes personagens da trama. O final é prá lá de surpreendente, como se toda a obra fosse despejada, de forma arrebatadora, num único funil apoteótico.

Esta história da Menina do Brejo - como é chamada a protagonista - é sem dúvida uma das melhores e mais completas estreias literárias contemporâneas. Nesta sua obra pioneira no romance, Owens demonstra um talento literário que me leva a complaná-la à sua já consagrada compatriota Donna Tartt (O Pintassilgo), ao falecido catalão Agustín Goméz Arcos (Ana-não) e ao Nobel britânico Kazuo Ishiguro, por exemplo. Com setenta anos, dedicou dez a este livro que se tornou um fenômeno editorial nos Estados Unidos, dominando os tops por mais de quarenta semanas. Com certeza, pela riqueza de seu texto e pelas nuances líricas, esta não é uma obra para se assimilar via audiolivro, esta aberração contraditória do mercado livreiro.

Delia Owens
Delia Owens é coautora de três livros de não ficção, sucessos de vendas internacionalmente reconhecidos, sobre a sua experiência como cientista da vida selvagem na África. Venceu o John Burroughs Award para artigos sobre Natureza. Foi publicada em várias revistas de referência na área da ecologia e da vida selvagem.

A obra teve os direitos de adaptação cinematográfica negociados e o filme será produzido pela Fox 2000. Para quem quiser ver a sinopse, sempre com o risco de spoilers, pode acessar informações sobre o livro no site da editora Intrínseca: https://www.intrinseca.com.br/livro/906/ .

Em nosso país, onde os quinze livros mais vendidos no último ano não registram sequer uma obra de cunho literário, os números norte americanos referentes a Um Lugar Bem Longe Daqui nos faz refletir seriamente sobre a nossa precária evolução cultural, hoje mais preocupada, sem necessidade, com os geeks, o racismo, o feminismo e a homofobia, além da chatice das discussões inócuas sobre qualidades políticas da direita ou da esquerda.

Valdemir Martins
Em 26/01/2020

* obra literária em que é exposto, de forma pormenorizada, o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado adulto.

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15 de dez. de 2019

O intimista e surpreendente Sobre os Ossos dos Mortos ****


Para nós brasileiros que praticamente não conhecíamos a escritora polonesa Olga Tokarczuk, recém-laureada com o Nobel de Literatura e o Man Booker International Prize, lê-la converte-se numa agradabilíssima surpresa. É uma brilhante contadora de histórias com simplicidade sofisticada.

Cartaz do filme holandês
Em 2014 foi editado no Brasil, em uma tiragem limitada pela Tinta Negra, seu romance fragmentário Os Vagantes, que se encontra esgotado. Agora, em função das premiações, a Editora Todavia lançou “Sobre os Ossos dos Mortos”, obra selecionada pelo jornal britânico The Guardian como um dos 100 melhores livros do século 21; foi adaptado para o cinema no filme holandês Rastros e levou o Urso de Prata no Festival de Berlim de 2017.

A obra, muito bem estruturada e com uma escrita moderna, inovadora, é um diferenciado suspense, não convencional, cuja história se passa na atualidade numa remota e gélida vila polonesa. Sua protagonista, Janina, uma ex-engenheira e professora de inglês aposentada, costuma se dedicar ao estudo da astrologia, à poesia do inglês William Blake, à manutenção de casas de veraneio e a sabotar armadilhas visando impedir a matança de animais silvestres.

Ela, em primeira pessoa, é a narradora do enredo, misturando thriller e humor, numa reflexão permanente sobre a condição humana e a natureza. O leitor (a) viaja com a cabeça de Janina, uma vez que ela descreve ricamente os fatos e simultaneamente faz reflexões filosóficas e divagações astrológicas sobre os fatos narrados, seus conviventes, suas moléstias e sua solidão: “A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo – envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares – os sentidos – sucumbem à apoptose. A apoptose é a morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria.”.

Janina é uma excêntrica senhora ateia que subverte o corriqueiro na vida das pessoas. Até suas convicções sobre a morte chegam a beirar a comicidade. Aliás, o cômico, é algo que espreita muitas das situações vividas por ela. Baseado em suas narrativas, o livro torna-se intimista, com devaneios sobre tudo, até sobre o que as pessoas pensam quando estão em silêncio na igreja.

Olga Tokarczuk
Perturbador, algo macabro, abordando temas como o mundo natural e a civilização, este livro é um romance instigante sobre temas como loucura, injustiça contra indivíduos marginalizados e direitos dos animais, causa da qual Olga é ativista.

O livro extrapola a história de crimes e investigações convencionais, sua espinha dorsal, para se tornar um belo suspense existencial. Com um final surpreendente, tem tudo para ser uma bela fantasia, mas é de um realismo irretorquível.

Valdemir Martins
em 14/12/2019.

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