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15 de out. de 2020

Sobre Como um Monstro é Criado *****

Uma façanha incrível consegue o estreante – e já premiado - escritor sueco Niklas Natt och Dag em sua obra inicial 1793: você lê no escuro. Sim, é a incrível sensação que temos ao ler este eletrizante e ousado thriller noir, um dramático romance policial histórico transcorrido em Estocolmo no final do século XVIII.

Desde os ambientes descritos, sejam numa taberna, num quarto ou num escritório, até as peripécias em resgate de corpo, batalhas, investigações ou caminhadas, tudo sugere escuridão ou pouca luz, tornando seu universo muito pesado, apesar da leitura fácil e leve. Esse clima leva intencionalmente o leitor ao condicionamento do ambiente que o autor quer que se leia a obra. E você passa a participar dela no intenso frio e nas sombras.

Até os dois protagonistas e demais personagens são carregados de peso, com suas dores, sujeiras, doenças, bebedeiras, roupas e defeitos físicos. E assim, proporcionam uma perturbadora leitura sempre mais acentuada a cada página. A trama desenvolve-se em Estocolmo e seus arredores, com um pit stop na Revolução Francesa. Aqui, num drama histórico, a capital sueca mais parece estar na Idade das Trevas ou Idade Média e não no final do século XVIII, em plena modernidade histórica. Tudo é extremamente grotesco, escuro, fétido, mórbido, insalubre: outro desafio para o leitor.

O fio condutor, um crime bárbaro, leva-nos aos excessos do poder. Não dos grandes poderosos, mas dos menores, os mais perigosos e contundentes, causando-nos revolta e indignação de níveis extremos. Um antídoto intenso àqueles arautos que atualmente cultuam o empoderamento de grupos em suas diversidades.

Claro que ler 1793 incomoda. É uma obra chocante. Natt och Dag equivale e às vezes supera, em terror, o aclamado Stephen King. E é insuperável nas descrições mundanas e escatológicas. Mescla suspense e pressão psicológica de maneira magistral e, assim, prende o leitor naquele ponto de não conseguir largar a leitura. Sem obviedades, surpreende a cada página com um realismo cru, pungente e muitas vezes repugnante. Para nós latinos, a única dificuldade desta leitura reside nos nomes de pessoas e locais, algo extremamente difícil, passando a ser mais um desafio no livro.

Este é um surpreendente thriller histórico que “retrata a capacidade de se ser cruel em nome da sobrevivência ou da ganância, como também a capacidade para o amor, a amizade e o desejo de um mundo melhor.”

Hoje, em tempos de hipersensibilidade social, onde muitas pessoas revoltam-se gratuitamente ao se sentirem ofendidas e agredidas por simples palavras ou imagens na tv ou nas redes sociais, levando consigo irracionalmente seus grupos de convívio de raça, religião e opção sexual, é importante que 1793 seja lido. Niklas Natt och Dag irá apresentar-lhes o que realmente é sofrimento, sujeira, ignorância, intolerância e injustiça.

Nesta era em que eternas desigualdades são totalmente visíveis, aprender como um monstro é criado em época de predominância dos monstros talvez amenize essa injustificada e incipiente ânsia por justiça social em confortáveis tempos de internet.


Valdemir Martins

14.10.2020 

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Obs: segundo o próprio autor, este é o primeiro livro da trilogia denominada Bellman Noir. O segundo livro, 1794, já foi publicado na Europa e o terceiro está no prelo.


2 de out. de 2020

A luminosidade em seres tão mergulhados nas trevas ****

Após ler os excelentes “A Estrada” e “Onde os Velhos não Têm Vez” (este, base para o filme ganhador do Oscar em 2007), li o impressionante Meridiano de Sangue ou O Crepúsculo Vermelho no Oeste, do norte americano Cormac McCarthy. Um faroeste diferenciado, extremamente realista e chocante. Um western reinventado, onde o absurdo e a alucinação se sobrepõem à realidade.

O calor e ...

Aqui, o leitor sente o terrível calor e secura do inóspito oeste norte americano e do norte mexicano, bem como seu frio extremo mais ao norte; sente a terrível fedentina dos corpos imundos dos personagens e seus piolhos; gruda no barro e no sangue de inúmeros mortos; arrepia-se e fica abalado com carnificinas de índios e mexicanos protagonizadas por um grupo extremamente violento de americanos desgarrados e desencaminhados de sua pátria, 
deleitando-se em sua monstruosa missão infame contratada por poderosos regionais para eliminar o maior número possível de índios. E, ironicamente, levar seus escalpos como comprovantes.

...o frio do deserto.

Quem lê Meridiano de Sangue não sai a mesma pessoa no final do livro. Intermitentes deambulações pela violência extremamente explícita abalizam o arcabouço desta assustadora obra de McCarthy. Num crescendo, com detalhes meticulosamente sanguinolentos e escatológicos, a violência tropeça sempre nos trechos ou frases de lirismo e poesia, estilo e sabedoria de McCarthy.

O bando

O protagonista não tem nome. De “garoto” ele transforma-se em homem no momento certo do enredo e, para sobreviver, precisa ser tão ou mais violento que seus companheiros e inimigos. Seu co-protagonista, um juiz poliglota, culto, multi prodigioso, às vezes asqueroso e caricato, é na realidade um monstro dentro de toda alucinante violência conduzida pelo perpétuo e ambíguo personagem.

É um majestoso romance noir sobre aspectos cruciantes da história do oeste norte americano, sem concessões à cinematografia: sem John Wayne ou Clint Eastwood ou Jerônimo ou sargento Garcia. Nem Rin Tin Tin. A linguagem do livro, seus personagens, as paisagens, as descrições eventuais de romance de formação, a intensidade dos fatos e seu ritmo alucinante, constroem a grandeza da obra.

Os Apaches

O controvertido crítico literário norte americano Harold Bloom, ao considerar que este romance sobre o western “jamais será superado, escreveu: “A merecida notoriedade de ‘Moby Dick’ e ‘Enquanto Agonizo’ é levada adiante por ‘Meridiano de Sangue’, pois Cormac McCarthy é discípulo de Melville e Faulkner. Eu diria que nenhum romancista norte-americano vivo, nem mesmo Pynchon, oferece-nos um livro tão marcante e memorável quanto ‘Meridiano de Sangue’...”.


No final, com suas ponderações, McCarthy expõe o âmago da obra, em meio aos discursos infindáveis do grotesco juiz Holden, esclarecendo que era contra o vazio e o desespero que o grupo pegava em armas e se refastelava em sangue.

Todos seus personagens são absolutamente humanos com suas obscuridades e brilhos, uns mais outros menos, como todos nós. Mas McCarthy nos faz enxergar “a luminosidade nesses seres tão mergulhados nas trevas”.

Valdemir Martins

30.9.2020

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12 de set. de 2020

Abrindo uma porta sobre a noite. ****

Culpa-se a falha provável da editora, da revisão ou da gráfica ao início da leitura da obra Cemitério de Pianos, do premiado poeta e romancista português José Luís Peixoto, ao perceber-se a narrativa bruscamente quebrada por uma nova, então desconhecida. Uma constante no livro.

Conserto de pianos
Baseado na história da vida real de uma atleta fundista português, o livro não nos fala de esportes, mas das memórias póstumas de seu pai, um competente marceneiro sempre preocupado com os episódios peculiares de sua família; os felizes, os mórbidos e os terríveis. Por três gerações.

O almoço de domingo
A taberna dos vinhos
Abordando um cotidiano que deve ser comum ou similar a muitos leitores, Peixoto intercala-o sempre abruptamente com a mesma história num outro momento, e sempre numa linguagem simples, porém numa construção extremamente criativa e poética, ás vezes rotineira. Peixoto transmite a sensação de que escreve com sofreguidão, atropelando a sequência lógica do drama, resultando numa nova forma de escrever, para muitos, confusa. Para mim, resultado de sua prevalecente predisposição poética. Um encanto para quem curte boa literatura.

A maratona de Francisco
Em certos pontos, as memórias passam a ser do próprio fundista, com retrocessos às memórias do pai. Intermitentes reminiscências da violência doméstica, das paixões incontroláveis e às vezes inconsequentes; das descobertas auspiciosas e das labutas constantes, ao fim, regadas por bons canecos de vinho.

José Luís Peixoto
Peixoto tem uma extraordinária forma de interpretar o mundo, expressa pelas suas escolhas certeiras de linguagem e de imagens. Aqui, o fantástico é contado com a naturalidade do quotidiano. Ele escreve com grande sentido de linguagem poética e grande domínio da língua portuguesa. Tendo pianos como liame da maior parte dos dramas da obra, Peixoto coloca um anjo, quase ao final, a desconstruir o protagonista e a concluir o atormentado sofrimento do maratonista Francisco.

Valdemir Martins

09.09.2020

21 de ago. de 2020

Uma das mais belas personagens femininas da literatura universal *****


Se eu disser que Ana-não, protagonista e título do quase desconhecido – no Brasil - livro do espanhol Agustín Gómez-Arcos, é uma das mais belas personagens femininas da literatura de todos os tempos, muitos atinarão exagero de minha parte. Mas ela é única em sua beleza, traduzida pelo autor em amor, perseverança, amargura e grandiosidade em sua figura humana.

Porta da casa de Ana-não
Arcos, falecido precocemente aos 59 anos em 1998 em Paris, vítima de câncer, é considerado um anarquista literário altamente inovador pela crítica inglesa e francesa. Pouco sucesso obteve na terra natal por ser um crítico ferrenho e amargo do regime ditatorial franquista, conquistando, deste modo, muitos leitores pela Europa livre, principalmente na Inglaterra e França, onde residiu e trabalhou.

Pão, presente para o filho
Por lá, Ana-não foi um de seus maiores sucessos pelo fato de ser o menos polêmico de seus livros e por abordar uma protagonista extremamente humana. A obra concentra-se na dor e no luto de uma viúva que atravessa o território espanhol a pé, do sul ao norte, para encontrar o filho. Nesta impressionante aventura materna, ela vê a presença constante da morte que lhe passa recados dúbios sobre a certeza de concluir sua jornada e encontrar o ente querido.

Andaluzia - terra de Ana-não
Trata-se, sem dúvida, de um terno e agitado poema em forma de prosa. Uma narrativa diferenciada que se concentra na solidão aflitiva de uma mãe de família e no seu obcecado propósito de rever o filho querido e de levar-lhe algo que muito gosta. Narra sua lentidão numa triste jornada por uma Espanha estranha - moderna e diferente de tudo que ela se lembrava -, em seu caminho para ver o filho sobrevivente, preso para a vida.

Agustín Gómez-Arcos
Possivelmente por razões puramente comerciais, o único livro de Gómez-Arcos publicado por aqui foi Ana-não. Livros preciosos como Maria Republica, L'enfant pain e The Carnivorous Lamb, somente importados e em espanhol, francês e inglês. Assim, quem desejar ter o prazer de ler este grande autor em português só encontrará o livro em sebos físicos e no site Estante Virtual (procure pelo autor) ou eventualmente no Mercado Livre.

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Valdemir Martins
18.08.2020

11 de ago. de 2020

Só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida. *****

Ler Atlas de Nuvens do inglês David Mitchell é como saborear um prato de deliciosos canapés variados, com seis sabores, um melhor que o outro. Este é o sentido figurado sobre o prazer de ler esta obra de vanguarda literária, de estrutura inovadora e surpreendente. Utilizando a frase de um personagem do início do livro eu diria que “só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida”, considerando-se aqui os seres inanimados como cada uma das seis criativas histórias que compõem a obra.

O ex-escravo Autua e Adam Ewing
Neste livro, considerado a obra-prima de Mitchell, ele judia do leitor. Atormenta-nos com uma certa falta de apoteoses, com os gritos calados. Ele joga com o excitamento e a seguida resignação ao mesmo tempo 
em que vai acumulando pontos de alusão para preparar-nos para algo maior. Arguto, é um grande jogador literário, bulindo com quebra-cabeças muito inteligentes.

Frobisher e o velho compositor
 Aliás, inteligência é o que não falta neste precioso enredo, retalhado por diário de viagem, romance epistolar, novela policial, thriller, drama e aventura distópicos, todos com diálogos inteligentes e arguciosos, dramáticos e irônicos, coloquiais e sofisticados. Todos enredados num contexto de esperança, não só pelo texto, como pela recorrência de referências dos textos coirmãos e uma tatuagem em forma de cometa nos protagonistas que pode até sugerir possíveis reencarnações.

A jornalista Luisa Rey e o segurança
Mitchell é tão competente que você acredita, ao passar de uma história para outra, que está lendo o texto de um novo autor, tamanha a mudança de estilo percebida na história seguinte. E para completar, os primeiros cinco textos têm aproximadamente o mesmo volume, enquanto a sexta narrativa é diferenciada. Trata-se de uma história ambientada num futuro pós-apocalíptico em que a civilização e a linguagem humanas se deterioraram assustadoramente e voltam aos períodos que ironicamente hoje denominaríamos de bárbaros, não fosse o excepcional e assustador desenvolvimento tecnológico em questão.

O atrapalhado editor Cavendish
A quinta história é uma distopia pressaga, de linguagem claudicante e inúmeros vocábulos inventados, a maioria de contrações de palavras normais, resultando na perfeita compreensão do texto. Já na sexta narrativa, a linguagem é inteiramente coloquial, informal e contracionada, porém bastante dinâmica e até divertida de se ler, num texto contado na primeira pessoa e com muitos diálogos. Enfim, recomendo que as seis histórias não devem ser percebidas individualmente, mas em sua totalidade, como parte de uma grande história.

A clone Sonmi-451
O livro, como um todo, torna-se uma charada filosófica onde Mitchell afirma sua crença na bondade e na solidariedade humanas prevalecendo sobre o egoísmo, o fanatismo cego, a maldade e a violência de pessoas ardilosas e traiçoeiras que agem sós ou liderando comunidades rotuladas de governamentais, grupais, empresariais ou religiosas.

Zachry e a misteriosa Meronym
David Mitchell
Enfim, Mitchell é sem dúvida um vanguardista literário. A estrutura deste Atlas de Nuvens bem atesta esta certeza, corroborada pela linguagem extremamente criativa, multifacetada, à vezes poética e incrivelmente originais, em enredos surpreendentes, cultos, com ricos aspectos de pesquisa, além de revolucionários na forma e conteúdo. Obrigatório a quem gosta de inovações e qualidade literária.

Como estes textos inanimados têm tanta vida!

Valdemir Martins
31.07.2020

Obs: as fotos referem-se a cenas do filme - com o título ridículo de "A Viagem" - de 2012 baseado no livro e com famosos no elenco.

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23 de jul. de 2020

Com Deus e o diabo no meio do nada. *****


Capa com a ilha errada
Contive-me na infância e na juventude, mas agora, maduro, após ler uma síntese biográfica do escritor e jornalista britânico Daniel Defoe, rendi-me a Robinson Crusoé. Um livro exuberante do início do século XVIII (1719) e que, portanto, há mais de trezentos anos nos ensina lições de vida.

Na realidade é um livro dirigido a adultos, pois para eles foi escrito, e talvez maçante para jovens apesar de suas grandes aventuras. Porém, uma obra importante na formação desses mesmos jovens por suas inumeráveis reflexões para tomada de decisões e descrições de procedimentos básicos de sobrevivência e produção de artefatos artesanais, alimentos, vestuário, navegação e defensas.

Fazenda de cana na Bahia séc. XVIII
Escrito no formato quase epistolar, o livro apresenta-nos a história de um jovem inglês sonhador que queria ser marujo e passa por muitas dificuldades em navegações atlânticas, vira prisioneiro de muçulmanos, torna-se fazendeiro rico no Brasil – algo raramente citado nas sinopses e críticas à obra – e acaba como náufrago, reinventando sua subsistência. Grande parte do livro Defoe dedica às aventuras de Crusoé numa ilha onde luta pela sobrevivência por longo tempo.

Localização da ilha de Crusoé
O enredo é baseado numa história real do náufrago escocês Alexander Selkirk, perdido por quatro anos numa ilha do Pacífico Sul, em frente ao Chile, hoje denominada Ilha Robinson Crusoé. Este fato tem confundido alguns críticos e jornalística que se referem a essa ilha como a qual o personagem viveu, quando na verdade a história da obra de Defoe passa-se na Ilha de Tobago, no Caribe, na costa venezuelana.

Nau portuguesa do século XVIII
A obra é um primor de criatividade nas aventuras e situações inusitadas, mas peca nas inúmeras – e às vezes infindáveis em longos parágrafos – citações bíblicas e reflexões sobre religiosidade (Deus, pecado e a Providência), perfeitamente compreensíveis e aceitáveis pela própria formação do autor e pela forte predominância da igreja católica na cultura da época, período da feroz Inquisição Católica em Portugal e na Espanha. E passa a ser o liame da sobrevivência do solitário Crusoé num local inóspito e deserto. Assim, afirmo que Defoe conseguiu colocar Robinson Crusoé sozinho, de forma primorosa e brilhante, entre Deus e o diabo na terra do nada.

Silvícolas da época
Paraíso encontrado por Crusoé
Seu final é surpreendente, com o – agora empresário milionário – protagonista Crusoé e seu servo Sexta-feira vivenciando novas aventuras agora em plena Europa. Um final que também valoriza o lado bom das pessoas e compensa com honras a grande virtude da verdade e da honestidade.

É um livro importante para a história da formação do romance moderno por seu ineditismo ao apresentar de forma singular a estrutura colonialista, religiosa, geográfica e econômica da época. A história já inspirou quadrinhos, desenhos animados e vários filmes, inclusive do gênio Luis Buñuel, e proporcionou incontáveis produções literárias ao longo dos séculos.

Daniel Defoe
Mas, por seu conteúdo reflexivo e de ponderações bastante sérias sobre a vida, medos e sobrevivência, e apesar de conter muita aventura, não deveria ter jamais uma conotação ou versão infantil, bastante fora dos propósitos da obra. Infelizmente, para efeito de aumentar seus faturamentos, várias editoras desenvolveram inescrupulosamente versões infanto-juvenis dessa obra, distorcendo os elementos debatidos pela mesma e deturpando seus princípios literários. Portanto, havendo interesse em sua leitura, recomendo que procure uma boa tradução da versão original como a da série Clássicos da Penguin/Companhia (apesar de ter na capa um mapa errado da localização da história). Afinal,  Robinson Crusoé é um clássico da literatura muito além de uma aventura infantil.

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28 de jun. de 2020

A perda de um paraíso que nunca existiu. *****


Charles Darwin, o ícone da ciência evolutiva, cravou há mais de dois séculos que “o paraíso não havia sido perdido”, uma vez que nunca existira. Corroborando essa teoria, o contemporâneo e respeitadíssimo historiador, crítico literário, professor e pesquisador da Universidade de Harvard, Stephen Greenblatt, escreveu este desconcertante “Ascensão e Queda de Adão e Eva”.

O Pecado Original
Vencedor dos Prêmios National Books Award (2011) e Pulitzer (2012), ambos de “Não Ficção” e conhecido no meio cultural, científico, acadêmico e teológico por seus inúmeros, polêmicos e preciosos livros, Greenblatt tem o grande mérito da profunda pesquisa para desenvolver e comprovar suas teses. Debruçando-se com afinco nas tábulas de argila da civilização babilônica, elaboradas em média em 1800 antes da era cristã e descobertas no século XIX em escavações de um templo de Nínive, capital do antigo império assírio (hoje Irã), ele contesta enfaticamente o Gênesis das bíblias judaica e cristã.

A Criação
E assim, leva de roldão as histórias do Paraíso ou Jardim do Éden com Adão e Eva a bordo; o Dilúvio, afogando Noé e os animais num mar de provas científicas; e, para encurtar, as científica e naturalmente impossíveis personagens com mais de 900 anos de vida.

A Expulsão
Voltando às tábulas de argila babilônicas, ele descobre que um dilúvio, igual ao de Noé com barco salvador e tudo o mais, foi causado pelo deus babilônio mais de dezoito séculos antes da era cristã e, portanto, em documentos muito anteriores e bem mais antigos do que a data em que Moisés teria recebido as tábulas da Torá no monte Sinai.

As tábulas assírias
Para o assiriologista britânico Georges Smith, o decifrador das tábulas, ficou claro que a narrativa hebraica das origens não era única de sua espécie. “O Gênesis era, evidentemente, uma resposta ao que os cativos hebreus tinham escutado vezes sem conta – dos babilônios - enquanto sentavam e choravam seu cativeiro junto aos rios Tibre e Eufrates. Comprovadamente os hebreus estavam decididos a se distinguir, desde a aurora dos tempos, dos seus ex-captores.” Assim, constituíram sua escritura religiosa hebraica à sombra das místicas babilônicas juntadas à sua história, plagiada posteriormente pelos cristãos como seu Velho Testamento.

A região de Nínive
Na sequência, Greenblatt contesta e desmonta, de maneira enfática, empírica e severa, Santo Agostinho, o maior defensor dos Gêneses bíblicos, apenas cruzando os textos de Confissões, obra máxima do religioso, com sua biografia pregressa. Surpreendente observar que um beato defensor do contrato de casamento apenas para procriação tenha vivido treze anos em concubinato libidinoso com uma mulher da qual nem cita o nome e com a qual teve um filho indesejado, exatamente como condenava.

Agostinho tornou-se um maniqueísta, sistema religioso cristão persa que considerava Jesus como um avatar da luz em oposição ao senhor das trevas e não como Filho de Deus. Os maniqueus não aceitavam as escrituras hebraicas e escarneciam dos capítulos iniciais do Gênesis, os mesmos ferrenhamente defendidos posteriormente pelo incongruente Agostinho.

Santo Agostinho
Em sua última crença, Agostinho radicaliza despejando em Eva a culpa por todos os pecados da humanidade, originadas pelo “pecado capital” perpetuado por Adão, vítima de sua parceira, e o transforma, em seus escritos e pregações, no episódio central do drama da existência humana. Para ele, por ser Deus justiçoso, o pecado original tem como extensão toda a perversidade humana e todas as desgraças como crimes horrendos, os horrores da tirania e das guerras, terremotos, incêndios, inundações, “não passam de punições distribuídas por um Deus justo”. A isso, Greenblatt rebate com a pergunta: “Poderia alguém afirmar que um doce bebê acometido de uma doença degenerativa esteja apenas recebendo a punição que mereceu?”.

E o que dizer dos milhares de crianças que morrem de fome na África e no Oriente Médio e que não são judias nem cristãs? Segundo Agostinho “para Deus ninguém é livre do pecado (...), nem o recém-nascido” (Confissões 1.7).

Responsável pela difamação de Eva como a origem de todos os pecados (segundo Agostinho), a condição da mulher, ao longo da história, passou a ser a de um ente inferior e sempre subjugado, até no Islamismo – como se comprova em seus costumes – pois Adão e Eva também estão presentes no Alcorão.

São Jerônimo
Para (São) Jerônimo, no século IV, “não foi Adão que foi enganado, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão”, conceito repetido vezes sem conta ao longo dos séculos. Foi incutido em criancinhas, invocado sempre que o equilíbrio de poder do marido se via ameaçado e lançado contra mulheres inteligentes e articuladas que pareciam não conhecer o seu lugar.

Diante do obscurantismo da Idade Média, esse conceito negativo sobre a mulher e sua origem em Eva tomou corpo e até o filósofo Tomás de Aquino chegou ao extremo de afirmar: “para viverem juntos e fazer companhia um ao outro, dois amigos juntos são melhores que um homem e uma mulher”. Tudo com o lastro da forte e sanguinária Inquisição Católica, cujos troféus máximos eram extirpar nas fogueiras a bruxaria praticada pelas mulheres e caçar os judeus que causaram sofrimento a Maria.

Dictionaire de Bayle
O primeiro desmonte público – apesar de dissimulado – das ditas fábulas do Paraíso foi lançado pelo filósofo protestante francês Pierre Bayle, em sua obra Dictionaire Historique et Critique lançada em 1697, no crepúsculo do século 17, na sombra de sua proclamação de que “uma Igreja cristã que procurava obter uniformidade mediante instrumentos de tortura e fogueira, violava a própria essência do evangelho”. Os personagens Adão e Eva aparecem em inúmeros verbetes e notas de rodapé sempre sob o olhar cético e destruidor de Bayle.

Seu Dictionaire – trinta anos após a publicação do maior poema de louvor ao Gênesis (Paraíso Perdido, do inglês John Milton) - jogava na lata de lixo lendas que pouco a pouco haviam sido adicionadas à narrativa do Gênesis ao longo de mais de mil anos. A exemplo deste pensador francês, Voltaire, mais adiante em 1764, publicava seu Dicionário Filosófico com diversos verbetes destrutivos sobre o casal pecaminoso do Paraíso. E antes de finalizar esta brilhante obra, o autor não deixa de demonstrar a incompatibilidade do darwinismo com a crença em Deus, que com certeza é incompatível com a crença em Adão e Eva.

O grupo de chimpanzés
Saindo das lendas e ficções da religiosidade e das desconstruções filosóficas, Greenblat leva-nos ao epílogo desta obra analisando as semelhanças humanas com os chimpanzés sob a luz da ciência e do evolucionismo. Pondera uma eventual vida dos símios num paraíso e quais seriam suas reações mediante a nudez, ao conhecimento e demais itens importantes nos argumentos paraisionistas.

E após uma demorada e detalhada observação de um grupo completo de chimpanzés (crianças, jovens, adultos e velhos) em seu habitat natural, junto com outros cientistas, notaram que eles possibilitaram ver como seria viver sem o conhecimento do bem e do mal, da mesma forma como vivem sem sentir vergonha e sem saber que estão destinados a morrer. E conclui: “Eles ainda estão no Paraíso.”. Mas isso acontece porque formamos nossa ideia do Paraíso a partir de noções oriundas do nosso conhecimento do bem e do mal. “Nós já caímos; eles, não.”.

Stephen Greenblatt
Assim, como o mito de Adão e Eva está no cerne da nossa formação religiosa e cultural, deixando suas marcas através dos séculos, de vários pontos de vista – psicológico, artístico, teológico -, a trágica fábula determinou o modo como lidamos com o amor e a morte, a culpa e o desejo, e moldou de forma definitiva nosso destino.

Ascensão e Queda de Adão e Eva, apesar de tratar de um assunto tão sério, é uma obra eletrizante de fácil leitura e compreensão, passível de ser contestada somente por outros cientistas e estudiosos isentos, mas jamais por religiosos, por razões óbvias de defesa dos pilares das principais crenças religiosas dominantes.

Valdemir Martins
25.06.2020

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