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19 de set. de 2019

O espírito retrógrado das novas radionovelas


Quando criança escutava, por curiosidade ou acidentalmente por estar no recinto onde mãe, tia e avó ouviam o rádio, as populares radionovelas. Esses dramas radiofônicos tornaram-se um hábito brasileiro, principalmente para as mulheres acentuadamente a partir da década de 1940. E o grande sucesso veio em 1950 com a adaptação da cubana “O Direito de Nascer”.

Telenovela O Direito de Nascer
Nessa mesma década a televisão em preto e branco começava a proliferar nos lares brasileiros. Claro que o seu primeiro grande sucesso foi a adaptação dessa consagrada história radiofônica, tornando-se, assim, a telenovela um tremendo sucesso que domina os índices de audiência até a atualidade e ditam moda, fazendo a cabeça da população.

Dentre outros tantos fatores mais e menos graves, este representa o mais visível e descarado como causa da falta do hábito de leitura dos brasileiros. É muito mais cômodo por a bunda na poltrona e, como numa mágica, ver e ouvir as peripécias e artimanhas dos personagens, os cenários, as paisagens, as músicas envolventes, sem ter o trabalho de imaginá-las, criá-las.

Assim esse povo sofrido se descontrai e torce por seus heróis, assimilando os enredos de baixíssimo nível cultural e as mensagens subliminares de interesse das emissoras e de seus patrocinadores. Assistir televisão é um vício enraizado em gerações e tão maléfico quanto os smartphones. Seu conteúdo é predominantemente danoso ao bom senso e ao livre arbítrio desde que influencia os neurônios a admirar, respeitar e temer aquilo que a indústria televisiva patrocinada e politizada determina.

Onde não há consciência cultural, os interesses financeiros, claro, conduzem as trilhas das emoções para o campo dos próprios interesses econômicos. Só há concessões quando estes atuam também no meio cultural. E raríssimas vezes – como no atual folhetim Bom Sucesso, da Globo, conduz-se as atenções para os livros, mas ainda assim sem o puro intuito de se difundir o hábito de ler, sua importância e implicações.

Não bastasse a força da TV, dos gadgets, da internet; da falta de programas governamentais; da demolição cultural sofrida recentemente por nossas escolas e universidades usadas para moldar politicamente a cabeça de nossas crianças e jovens, surge um novo monstro na lagoa intitulado “audiolivro”. Sim, um “livro” que você ouve e não lê! Como nas radionovelas de nossas avós, porém em equipamentos e sistemas extremamente modernos.

Ouvir não é ler!
A menos que eu seja um néscio, tenho comigo que livro é algo produzido para se ler. Seja por prazer, para distração, para estudar, como entretenimento e enriquecimento cultural, a prática da leitura desenvolve e apura o vocabulário com grafia correta das palavras e sentenças, tornando fácil e aprimorando qualquer escrita. A leitura dinamiza o raciocínio, agiliza a memória e facilita a interpretação lógica e emocional. A leitura é um ato de grande importância para a aprendizagem do ser humano, a leitura, além de favorecer o aprendizado de conteúdos específicos, aprimora o raciocínio.

Nada contra os audiolivros, técnica naufragada há alguns anos e que agora é ressuscitada graças ao desenvolvimento tecnológico e que comparece ao mercado para auxiliar no faturamento das editoras. Mas a comunicação e o marketing de suporte a essa tecnologia não pode confundir o consumidor e ludibria-lo a ponto de afirmar e reforçar esse conceito absurdo de que ouvir é ler. Em recente entrevista ao Publishnews (24/7/2019) Camila Cabete, gerente sênior de relações com os editores da Kobo no Brasil, afirmou sobre audiolivro de sua empresa: “Num país onde a briga é por leitores, o áudio vem para nos ajudar nesta luta". Como assim, se a briga é por leitores e não por ouvintes? Que me desculpem os que compartilham desse conceito, mas ouvir não é ler, definitivamente.

Obvio que ouvir algum tipo de livro – técnico, de estudo, para reforço de memória, para entreter crianças que não lêem, para deficientes visuais, etc. - tem seus benefícios, mas absolutamente é coisa de preguiçoso se usado com fins literários. E esse é o grande perigo e minha demanda. Não se pode incentivar as pessoas a trocar a leitura de um Madame Bovari, um Crime e Castigo ou ainda um O Pintassilgo, em livro físico ou e-book, por ouvir essas obra primas como se fossem radionovelas. Duvido que alguém consiga “ouvir”, para citar um exemplo, a obra de intensa profundidade psicológica do consagrado norte americano Daniel Keyes intitulada Flores para Algernon (https://contracapaladob.blogspot.com/2019/05/a-vida-por-tras-de-uma-janela.html). É perder desastrosamente toda a riqueza literária da obra, por sua revolucionária grafia, e despejar seu valor no lixo.

Os maravilhosos livros infantis
E mais catastrófico ainda – e por que não dizer até pecaminoso – é colocar um audiolivro nas mãos de uma criança alfabetizada. Estes pequenos seres que se projetam como o futuro garantido do mercado livreiro e editorial se trabalhados adequadamente para formar novas gerações de leitores, sustentarão o futuro do livro. Audiolivro para crianças não alfabetizadas é muito interessante e revela-se um novo grande negócio, mas se dirigido para as que já leem, torna-se um tiro no pé para as editoras.

Assim, afirmo: definitivamente ouvir uma obra de importância literária não é o mesmo que lê-la. E ensinar uma criança a escutar um livro ao invés de incentivá-la a lê-lo é um crime contra a cultura, a indústria do livro e ao desenvolvimento intelectual do petiz. E, com isso, seguir essa tendência seria colocar em pauta novamente os atos nazistas e bolcheviques de queima de livros ou o enredo de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, destruindo-se livros agora não pelo fogo, mas pela tecnologia e o desespero de se recuperar um mercado que muitos não tiveram a competência de desenvolver adequadamente.

Valdemir Martins
12/9/2019.




14 de ago. de 2019

Um nome escrito em sangue, luz e sombra.


As obras literárias, usualmente, iniciam-se com um fato ou frase de referência, como a ponteira de um compasso que lhe possibilitará toda a abrangência do enredo. E, do mesmo modo, biografias iniciam-se nas origens ou nascimento do biografado.

Capa: Vocação de S. Mateus

Não é o caso da obra Caravaggio - Um Nome Escrito em Sangue, do talentoso escritor e jornalista galês Matt Rees. Uma excelente biografia romanceada, cujo texto faz um jogo de luz e sombra como a extraordinária obra do artista e como a sua própria existência.

 A vida Michelangelo de Merisi (da Caravaggio), assim conhecido por ter nascido nessa cidade italiana – é apresentada de forma bastante realista neste livro, resultado da formação jornalística de Rees. A obra nos faz vivenciar, entre os séculos 16 e 17, o princípio do movimento Barroco nas artes, retratando os conflitos vivenciais e espirituais de Caravaggio.

Morte da Virgem Maria
Suas origens e infância somente são apresentadas no meio da obra, entremeada por importantes dados históricos daquele momento em Roma e na alta cúpula da igreja católica, da qual Caravaggio chegou a ser um protegido.

Mas o fundamental deste livro são as descrições de como o pintor elaborava e produzia suas famosas telas; seus modelos, ambientes e motivações emocionais; assim como sua realidade de vida transferida para o âmago das telas. É recomendável, para maior proveito da leitura, que se observe na internet as obras citadas no texto para se obter um vislumbre mais exato do que é descrito, discutido pelos personagens e criticado pelos concorrentes.

Madona e o Menino
Caravaggio trabalhava a partir da natureza das coisas, das pessoas, das situações autênticas. Em suas obras, mostrava o que captava dessas ocorrências reais revelando assim o significado mais profundo de seus temas. A ansiedade, o sofrimento e a esperança eram transferidos das pessoas que convivia para as personagens que pintava. Segundo o próprio Rees, “Durante séculos os críticos menosprezaram Caravaggio. Mas sua influência na pintura é imensa. Rubens difundiu seu estilo pelo norte da Europa. Velazquez levou sua estética à Espanha. Ele é essencial ainda hoje para o estilo dos artistas, fotógrafos e diretores de cinema contemporâneos, como David Hockney e Martin Scorsese.”

David e a cabeça de Golias
Este livro não é uma grande obra literária, mas um brilhante escrito sobre o mais importante pintor do barroco; um revolucionário nas técnicas e no estilo. Um pintor que tirou os santos do céu e das nuvens para colocá-los onde viveram: na terra e no meio da pobreza e da sujeira. Até a sujidade das unhas dos retratados por Caravaggio foi copiada por importantes – ou não - pintores a partir de então.

Matt Rees
Apesar de sua obra ser dominada por temas bíblicos e por ter convivido com a alta cúpula da igreja católica, da Inquisição e dos Cavaleiros, Caravaggio sempre teve uma existência difícil e sofrida, e nunca abandonou sua vida mundana, violenta e nefanda.


Valdemir Martins
13/08/2019.


2 de jul. de 2019

Um Anjo Caído e Outro Morto


A justiça divina pode ser estranha ou cruel, dependendo do credo, conforme seus escritos beatificados. Mas, em termos religiosos, Justiça, via de regra, conota punição. O que dizer, então, da justiça dos homens? Tanto no Ocidente como no Oriente a Justiça pode, da mesma forma, ser exacerbadamente rigorosa e irracional ou branda demais e inexistente. Constatações estão aí no cotidiano e na História.

E quando, então, se trata de fazer justiça com crianças? Nada muda, a não ser os sentimentos dos adultos quanto ao assunto, encorpando o exagero ou fragilizando as lições, e raramente se culpando.

O livro O Culpado (The Guilty One), obra de estreia da escocesa Lisa Ballantyne (2012), arrasta-nos impiedosamente para o aterrador assassinato de um menininho de oito anos num parque e a suspeita de que seu amiguinho de onze anos seja seu algoz.

A narrativa é emocionante e envolvente. E num ping-pong com o pesado julgamento do menino Seb (Sebastian) e o passado turbulento de seu advogado Danny (David), a autora tem a competência criativa de apresentar, de forma sempre dissimulada na trama, seus principais personagens e os “crimes” por eles cometidos.

Todos temos deslises involuntários ou não em nossa existência. E Lisa sabe muito bem explorar esse fato no desempenho de um policial, um vizinho, um advogado, um jornalista, uma mãe, um pai ou quem quer que seja que participe da história. O enredo traga o leitor que, inconscientemente, vai avaliando e julgando as atitudes dos personagens e, sem perceber, comparando fatos de sua vida com a dos protagonistas.

Trata-se de uma obra profunda na análise psicológica dos personagens e de uma sociedade extremamente preocupada com aparências e julgamentos alheios. E isso é demonstrado com força principalmente na atuação maléfica da imprensa – o que não é novidade - considerando Seb, mesmo antes do julgamento, um monstro assassino de anjos, demonizando-o e moldando assim a opinião pública, colocando-a totalmente contra o garoto antes da sentença do tribunal.

Lisa Ballantyne
David é um reputado causídico com grande experiência em episódios de delinquência juvenil, mas perturba-se com este julgamento já que muitas vezes sua meninice invade seus pensamentos conforme os fatos vão progredindo. Sua infância catastrófica é maravilhosamente apresentada pela autora com detalhes que mexem na sensibilidade de qualquer leitor.


Essas passagens do passado são muito intensas – assim como o julgamento de Seb – de uma forma bastante realista e muitas vezes chocante. A cada passagem estaremos refletindo forçosamente sobre nossos próprios passos como pais, filhos, professores, vizinhos, colegas, cidadãos. Lisa escava e exuma nossas culpabilidades, pois se trata de uma obra sobre a culpa. A culpa de todos nós.



Valdemir Martins
30/6/2019.

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25 de jun. de 2019

O dilema não-lógico do mercado livreiro: ler ou ouvir?


Dos espasmos sexuais aos engasgos mercadológicos.


Depois do trágico lançamento de “Cinquenta Tons de Cinza” em 2011, a leitura de livros no Brasil nunca mais foi a mesma, pelo menos entre as mulheres. Em função do sucesso arrasador e estarrecedor de vendas, o teor lascivo de seu conteúdo e a desolação de sua capa cinza passaram a nortear diversos editores em busca de sucesso comercial. Assim, na época, várias editoras apostaram na sacanagem para obter ou aumentar os lucros em detrimento da cultura.

Nada contra os livros melados de doce amor, bebida, suor e sexo de E. L. James e Sylvia Day. Antes da catástrofe, outros tons desse cinza literário já vendiam muito, mas ainda não serviam de norte por serem mais discretos e por terem capas coloridas. Escritores como Nicholas Sparks, Danielle Steel e Nora Roberts, com todo o seu dramático melaço amoroso, sempre foram campeões. Infelizmente, para a literatura como um todo e felizmente para a s editoras, que assim conseguiram se manter para lançar – para sorte dos apreciadores de leitura mais nobre - também livros mais dignos e com teor literário de qualidade.


No ano da tragédia, eu dava consultoria e tinha uma pequena livraria, onde fazia questão de atender pessoalmente meus clientes. Quem então procurava o “Cinza” – invariavelmente mulheres – eu tentava induzir a levar também uma obra prima fortemente sensual de D. H. Lawrence: “O Amante de Lady Chatterley”. Esta - uma obra de 1928 que foi censurada e proibida no Reino Unido até 1966, quando foi liberada - tornou-se um bom argumento de vendas para as sedentas ninfomaníacas e sodomitas.

Nesta sua maravilhosa obra Lawrence descreve detalhadamente - e com uma forte carga de lirismo - as cenas amorosas mais íntimas da Lady com o guarda-caça da propriedade, uma vez que seu amado marido ficou paraplégico e impotente. Mas, jamais chega próximo às descrições incendiárias e muitas vezes grotescas dos “Cinzas”.


O reinado britânico tem um rico histórico de ótimos livros censurados além deste. O brilhante “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, por exemplo, também foi proibido por muitos anos, por abordar o homossexualismo. Em Portugal tivemos a proibição de “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós, por revelar que o padre pulava a cerca da amante. “Lolita”, obra prima do russo Vladimir Nobokov, foi censurado em pleno século 20 na França e na Inglaterra. Todos pelo teor erótico, como se não tivesse existido o comportamento “ilícito” de “Madame Bovary”, criado pelo realista francês Gustave Flaubert.


Aqui pelo Brasil, no espírito da matéria, alguns diriam que o buraco é mais embaixo. Obras mais vulgares como “Eu e o Governador”, de Adelaide Carraro (1967), e “A Volúpia do Pecado”, de sua grande rival Cassandra Rios, foram a sensação das leituras às escondidas numa sociedade ainda falsa puritana e sob forte censura do regime militar. “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca, também chegou a ser proibido pelos militares em 1976, e até o grande Jorge Amado causou algum espanto nas hostes tradicionalistas.

Mas como por terras tupiniquins culturalmente retrógradas por absoluta falta de uma política cultural oficial, pela péssima qualidade escolar e pela absoluta falta do hábito de leitura, vários desastres literários destacam-se na paupérrima história literária recente do país. Apesar de as patrulhas ideológicas terem tentado proibir em pleno século 21 o clássico de 86 anos “Caçadas de Pedrinho”, do consagrado Monteiro Lobato, por conter “passagens racistas” (sic), as obras literárias dos “imortais” ainda sobressaem-se no mercado livreiro nacional.

No atual contexto brasileiro ironicamente temos uma espécie de “censura invertida”, prejudicando as editoras e os livreiros pelo recrudescimento da crise econômica que levou o negócio livreiro nacional à situação que todos sabemos. Num mercado em queda e em crise, os livros de sacanagem mantêm-se firmes e os de autoajuda, juvenis, esoterismo e religiosidade sobressaem nas vendas por razões óbvias diante de 13 milhões de desempregados. E o prejuízo, mais uma vez, é da cultura literária.

Há meses não se tem livros de qualidade entre os mais vendidos no país e o perfil dos consumidores começou a mudar com a presença crescente dos jovens, principalmente mulheres nos grupos “literários” das redes sociais, no Youtube, no streaming, nos caixas das lojas físicas sobreviventes e nos e-commerces.

Vê-se claro e evidente o extraordinário esforço de sobrevivência das editoras no país. Mas certamente não é o audiolivro que irá salvá-las. Percebe-se aqui certo desespero nessa atitude, como, para mim, um “tiro no pé”. Pois o mais lógico e inteligente, tendo-se fôlego financeiro ou não, é investir no hábito de leitura e, portanto, na formação de novas gerações de leitores, assim como o McDonald’s sempre investiu na formação de glutões.

As editoras, porém, não podem apostar só nos glutões literários que venham a engordar seus cofres. Seu foco deve também – e principalmente – incluir o desenvolvimento do hábito num padrão de futuro, eletrônico, digital e customizado, que mantenha a leitura como base para o consumo de seus produtos vindouros.

Nada contra o audiolivro para ajudar nas finanças. Mas não é a salvação, como já vi apregoado por aí. Ouvir livro é coisa de preguiçoso. Ler livro é atitude de desenvolvimento pessoal, com atributos culturais, educativos, linguísticos, ortográficos, morfológicos, recreativos, relaxantes e de lazer, entre outros.

Incentivar a leitura é manter as nobres artes de escrever, editar, revisar, traduzir, ilustrar, publicar e comercializar, que abrangem uma infinidade de empregos dignos. Incentivar a leitura é enxergar um futuro seguro para o mercado livreiro. Cultivar a audição de livros é secar o mercado. É aplicar a injeção letal que falta para o definhamento do mercado editorial brasileiro.

Este, ironicamente, continuará nos tons de cinza.

Valdemir Martins, em 24/6/2019.

29 de mai. de 2019

23 de mai. de 2019

Este livro não tem rosto de romance.


Pode-se até ler Svetlana Aleksievitch como se fosse um romance, tamanha a dramaticidade dos escritos da premiada escritora e jornalista bielorrussa, incluindo o Nobel de Literatura de 2015.

No seu primeiro livro A Guerra não tem Rosto de Mulher, de 1986, a hoje setuagenária inicia a obra num prólogo já emocionante, estarrecedor e dramático. E, numa relevante e construtiva postura feminista, esclarece e inicia sua inédita e importante inversão das narrativas sobre as guerras:

Trabaladora, pegue em arma!
“Não sabíamos como era o mundo sem guerra, o mundo da guerra era o único que conhecíamos, e as pessoas da guerra eram as únicas que conhecíamos. Até agora não conheço outro mundo, outras pessoas. Por acaso existiram em algum momento? A vila de minha infância depois da guerra era feminina. Das mulheres. Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou comigo: quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram.”

Menina na guerra
Por essa conclusão lógica, constatou então que tudo o que se falava, escrevia e consagrava sobre as guerras era através da voz masculina. E, depois de inúmeras pesquisas e entrevistas com mulheres que viveram a guerra, concluiu que os relatos femininos são distintos e falam de outras coisas: “A guerra ‘feminina’ tem suas próprias cores, cheiros; sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores”. E completa: “Um mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida… Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres”, esclarece Svetlana.

Sapadoras no cerco de Moscou
Assim surge a monumental crônica feminina sobre a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente nos confrontos entre nazistas e Exército Vermelho soviético, com passagens pela Revolução Bolchevique sob a tutela do carniceiro ditador Stálin. Trata-se, sobretudo, de um livro para pessoas sensíveis e corajosas, tanto homens como mulheres, interessados na verdade nunca contada - nem imaginada - sobre os reais bastidores das guerras, com mais de um milhão de mulheres tanto na retaguarda como na linha de frente dessas batalhas.

Batalhão de fuzileiras
A Academia Sueca atribuiu valor e poder a uma obra e estilo inéditos. Em séculos de literatura nada nesse gênero havia sido escrito. Svetlana criou, assim, um novo gênero literário classificado como novela coletiva. Ou seja, com seus textos a meio caminho entre a literatura e o jornalismo, ela usa a técnica de “colagem”, justapondo testemunhos individuais com o que consegue aproximar-se mais da substância humana dos fatos. 

As temidas aviadoras soviéticas
Não se consegue encontrar algo no estilo aproximadamente similar nem nas obras dos norte-americanos Truman Capote, Gay Talese, Tom Wolfe e Norman Mailer, precursores do jornalismo literário. Não se trata de escrever ensaio ou crônica sobre um único fato individual ou familiar, mas sim de uma tragédia coletiva de uma época longa baseado em dezenas de testemunhos explícitos de inúmeras mulheres, arrancados de suas almas. 

Mulher em luta corporal
A sofrida e feroz vitória soviética sobre os nazistas custou mais de 20 milhões de vidas humanas em quatro anos e só foi conseguida graças à imensa participação das mulheres soldados com idades entre catorze e mais de cinquenta anos. Sim, isso mesmo: de crianças a idosas.

Em nome da Revolução Bolchevique, o inescrupuloso e homicida Stálin, já em 1937, três anos antes de se enfiar na guerra contra os alemães com seu Exército Vermelho, começou a eliminar dessa hoste milhares de soldados e principalmente comandantes “não confiáveis” para se garantir no poder, consolidando sua ditadura sanguinária. E, assim, como não havia homens suficientes na União Soviética, as mulheres tiveram que se sacrificar heroicamente na defesa da pátria.

Órfãos soviéticos
Antes da metade do livro você se convence que pouco conhece de guerra. Tudo o que sabe é o básico, histórico, técnico, de heroísmo barato, com muito pouco sentimento. Pois Svetlana é implacável em sua apresentação crua, real, detalhada e humana da guerra. Sim, você vai ponderar: no meio de algo tão animalesco a guerra é humana. Em meio a algo tão “desumano” são as atitudes femininas, das soldados lá engajadas para vencer e sobreviver, que se destacam os atos heroicos e extremamente humanos, dilacerando a alma, a mente e a vida dessas guerreiras chamadas então de “irmãzinhas” por seus companheiros de batalhas, fugas, fome, frio, destruição e atrocidades. Enfim, de verdadeira carnificina.

Svetlana Aleksievitch
Neste livro, dezenas de depoimentos emocionantes, brilhantemente arrematados e organizados por Svetlana ao longo de anos, traduzem o ineditismo do massacre que foram os embates entre soviéticos comunistas e alemães fascistas (como são tratados pela autora), moldados pelos inacreditáveis destinos de patrióticos soldados soviéticos tratados como traidores pelo totalitarismo gélido e sangrento do alto comando stalinista.

Depois deste livro você vai encarar novas narrativas de guerras com outra visão. E vai concluir que tudo que já leu sobre os conflitos bélicos não tem realmente rosto de mulher.

Valdemir Martins
Em 22/05/2019.

Outros livros da autora publicados no Brasil pela Companhia das Letras: O Fim do Homem Soviético, Vozes de Chernobil, As Últimas Testemunhas e Rapazes de Zinco.

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13 de mai. de 2019

Flores para Algernon: a vida por trás de uma janela.


Ler “Flores para Algernon” incomoda. Desde o início, onde parece que estamos lendo com areia nos olhos. A escrita com grafia errada e encoberta propositalmente pelo norte-americano Daniel Keyes para reforçar a condição de retardado mental do protagonista Charlie, por quarenta páginas iniciais, é o que dá início ao incômodo. Mesmo assim, o leitor não desgruda do livro.

Então, a ansiedade de Charlie torna-se contagiante e atinge quem está lendo sua luta para ficar inteligente, seja na padaria onde trabalha, no laboratório experimental ou nas consultas médicas. Seja nas disputas com Algernon. E, aos poucos, o texto começa a mudar e o personagem começa a desabrochar, como uma flor cercada de espinhos.

Charlie após cirurgia
Começa então a ficar clara a proposta de Keyes de ir desmontando, gradualmente, as imagens que se constrói das pessoas, sejam elas doutores, estudantes, genitores ou simples trabalhadores braçais. Não só no texto, mas em reflexões sobre a vida real ao que o leitor é instigado pela força extraordinária da obra. Com intensa profundidade psicológica, o livro leva-nos a constatar - mais uma vez em ponderações – o quanto as mensagens que nos foram passadas durante a infância e a juventude influenciaram a formação de nosso caráter. E depois da leitura muita coisa pode mudar nos conceitos dos próprios leitores.

Labirinto montado por Chalie
As mensagens bruxas, que nos são transmitidas através das falas e das atitudes de terceiros durante nosso período de desenvolvimento intelectual, desde uma surra, puxões de orelha ou punições durante a infância até aqueles comentários inconsequentes – tipo “você é um inútil” ou “nunca vai ser ninguém na vida” ou ainda “Deus vai te castigar...” -, podem, inconscientemente, levar algumas pessoas a ser covardes, tímidas, agressivas ou pior, até psicopatas. Cada um acumula ou desenvolve de forma diferente, de acordo com a atmosfera em que cresce: seu ambiente familiar, suas amizades, sua educação, seus costumes. Agora, consciente de seus antecedentes pessoais, imagine se acontecesse com uma mente retardada.


Assim é com o protagonista, cuja evolução leva-o a enxergar com absoluta clareza os fatos, pessoas, locais e mensagens que lhe foram infligidas. Ele aprende tudo extraordinariamente rápido, mas não consegue evoluir emocionalmente e lidar com seus sentimentos.

Charlie e sua paixão
Apesar de fortemente densa, a obra flui com leveza, num romance de ficção científica extremamente interessante e de leitura cativante, claro, agora não mais com areia nos olhos. Do meio para o fim, a história sofre uma reviravolta com alterações no protagonista e em seu coadjuvante. E, de surpresa em surpresa, a obra consolida-se como um debate profundo sobre a bondade, o relacionamento humano e a solidão. Por uma das personagens principais, causadora de problemas e crises importantes na história, Keyes demonstra o perigo de se ter aquela preocupação “do que os outros vão pensar” e, assim, tornar-se uma pessoa egoísta em prejuízo inconsciente de quem se ama de verdade.

Daniel Keyes
O livro é um clássico da literatura norte-americana e adotado lá como leitura básica em muitas escolas de segundo grau. Consideram-na importante na formação dos jovens por despertá-los para o fato de que professores, chefes, líderes religiosos, atletas e até mesmo nossos desafetos ou amados são pessoas como nós. Têm sentimentos variáveis, dores na alma, problemas de alguma ordem, defeitos de personalidade, doenças invisíveis, frustrações diversas e também seus próprios desafetos.

Keyes, nesta obra, apresenta-nos a vida que temos – o cotidiano - por trás de uma janela. A janela da própria vida. Com muita simbologia, constrói uma obra pungente, extremamente dolorida, apesar de fascinante e assaz emocionante. Como já disse, ler esta obra incomoda. Ninguém sai incólume à leitura de Flores para Algernon.

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Sobre o livro:
Entre os temas mais recorrentes da ficção científica, a percepção de múltiplas realidades já abriu margem para narrativas clássicas e questões tão profundas quanto um buraco negro. Afinal, o mundo que sempre percebemos a nossa volta realmente existe? Mas para além dos portais interdimensionais, o autor norte-americano Daniel Keyes manteve os pés no chão dentro do universo scifi e apresentou uma história que explora o conceito, ao mesmo tempo que impacta por sua delicadeza. Publicado originalmente em 1966, Flores para Algernon foi o grande expoente da carreira do escritor, ganhador do prêmio Nebula e inspiração para o filme Os Dois Mundos de Charly (1968) – que garantiu a Cliff Robertson o Oscar de Melhor Ator. E com mais de cinco milhões de exemplares vendidos é referência dentro das escolas dos Estados Unidos. (Editora Aleph)

Sinopse (com spoiler):

A obra surgiu sobre as palavras de um homem de 32 anos e 68 de QI: Charlie Gordon. Com excesso de erros no início do romance, os relatos de Charlie revelam sua condição limitada, consequência de uma grave deficiência intelectual, que ao menos o mantém protegido dentro de um “mundo” particular – indiferente às gozações dos colegas de trabalho e intocado por tragédias familiares. Porém, ao participar de uma cirurgia revolucionária que aumenta o seu QI, ele não apenas se torna mais inteligente que os próprios médicos que o operaram, como também vira testemunha de uma nova realidade: ácida, crua e problemática. Se o conhecimento é uma benção, Daniel Keyes constrói um personagem complexo e intrigante, que questiona essa sorte e reflete sobre suas relações sociais e a própria existência. E tudo isso ao lado de Algernon, seu rato de estimação e a primeira cobaia bem-sucedida no processo cirúrgico. (Editora Aleph)

Preço médio R$ 48,00. Em algumas lojas Saraiva e no site Amazon R$ 30,90. E-book Kindle R$ 23,48.

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16 de abr. de 2019

Galilee: uma obra que cria desejos e vontades.


Pense num jogo de xadrez. Em suas regras. Esta será a estrutura básica, o arcabouço do romance épico sobrenatural Galilee*, do escritor inglês, Clive Barker. O liame de toda a trama é outro escritor, porém paraplégico com poderes sobrenaturais, membro da família Barbarossa , ligada à história dos Estados Unidos desde a Guerra de Secessão, passando por Thomas Jefferson e chegando aos nossos dias. Não sem antes percorrer fantásticas ilhas “tropicais” a partir do Mar Cáspio. Muito louco, não?

Pois é, fascinante! Barker é um exímio contador de histórias, tem a força da criatividade com uma imaginação fantástica. Consegue levar-nos a um mundo metafísico como se fosse à realidade do quintal da nossa casa, deixando-nos apaixonados por muitos personagens, intrigados com outros e desprezando alguns deles.

Neste épico da moderna literatura gótica Barker cria uma saga familiar em torno dos elementos sexo, violência, um toque de escatologia e uma paixão pelo inusitado. Galilee traz uma história envolvente, que penetra no lado sinistro dos Estados Unidos com uma grande visão transcendental e onde, apesar do protagonista, o grande destaque são as mulheres.

Cenário comum no livro
A família Geary é tão rica quanto os Rockfeller e tão glamourosa quanto os Kennedy, e sua dinastia tem exercido uma influencia sutil sobre a vida americana desde a Guerra de Secessão, ocultando de forma brilhante os profundos laços de corrupção e a severa hostilidade contra os etéreos Barbarossa. Ricos e poderosos, encontram-se no topo da sociedade americana. Mas a família guarda segredos terríveis e sombrios, que vão muito além de um histórico de contrafação e da hostilidade contra os Barbarossa - um clã cuja origem está perdida no tempo, envolvida em mito e misticismo.

Quando Galilee, o príncipe pródigo dos Barbarossa, se apaixona pela recém-casada Rachel Geary, o ódio reprimido entre as famílias emerge numa intensidade mutuamente destrutiva, que evocará espectros de traição, loucura e morte. As raízes das dinastias se revelarão fincadas em um solo sinistro e repleto de surpresas.

Como no xadrez e com muita imaginação, o criativo Barker constrói suas jogadas descritivas uma a uma até o desfecho que, a partir da décima parte da obra, também como no jogo, mantem o clima de suspense, sem dar pistas se teremos um empate ou um cheque-mate.

Clive Barker
Este livro desperta desejos e cria vontades. Um texto de 712 páginas que se lê com muito prazer, atravessando história, romance, fantasia, sexo e suspense, fugindo assim, da praxe dos textos de horror tradicionais do autor. E você lamenta quando termina a leitura. Com sua imaginação e talento para construir mundos que não existem, Barker arquiteta uma viagem sobrenatural, criando situações fora do tempo e do espaço. Algumas coisas ficam sem solução no final do livro e isso pode indicar que teremos uma provável continuação. Ou, o mais provável, é que no mundo criado por Clive Barker nem tudo tenha uma resposta.


Valdemir Martins
Em 08/04/2019.

*Livro esgotado, encontrado em sebos (Estante Virtual) ou sob encomenda na Livraria da Travessa. Publicação da Editora Bertrand Brasil, 2006.

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