Pesquisar este blog

18 de dez. de 2023

A Música de uma Vida

Uma inóspita e enregelada cidade siberiana é o primeiro grande palco deste belíssimo enredo de A Música de uma Vida, do premiado romancista franco-russo Andrei Makine. Tudo começa nessa cidade onde uma forte e longa nevasca ajunta, literalmente, um monte de pessoas em uma estação ferroviária, com composições atrasadas a mais de seis horas.
De repente, o protagonista ouve uma música. Em meio ao caos de pessoas cansadas, sujas, famintas, sonolentas e, incrivelmente conformadas, Makine começa a demonstrar a fortuna intrínseca desse povo russo simples, no início da década de 1970, conformado com o seu eterno e histórico sofrimento. O homo-sovieticus. Aquele que aprendeu a controlar a contestação que é um sentimento universal e, claro, proibido pelo sistema dominante; é censurado pela própria consciência do potencial contestador.

Novamente alguns acordes. “Avanço com a impressão de pegar a ponta de um sonho e nela me instalar”. Assim o protagonista-narrador relata como encontrou o “velho maroto” ao piano. Na viagem então para Moscou, o velho pianista –agora parceiro protagonista - fala de sua vida, sua juventude como músico e as agruras de seus pais, enquanto também músicos, durante o chamado período do Grande Terror Stalinista (1936 a 39), onde uma pessoa era executada tão somente por pronunciar algo ou nome proibido pelo regime comunista.

A obra escorrega para os campos da Segunda Guerra. Mais dissabores e complicações para o velho protagonista, sempre à sombra das escabrosidades e perseguições soviéticas. E, no final, torna à viagem e ao reencontro com o protagonista-narrador. Sempre banhado em música, quando não o som dos obuses, o dedilhar de um piano, a imaterialidade musical norteia a vida do velho personagem Berg, como se não vivesse, apenas ouvisse.

Esta é uma obra curta, equivalente a uma imensa obra literária; muito bonita e triste, constituída por diversas histórias que compõem a história inteira de vida do velho maroto, resultante do talento e da sensibilidade do siberiano Makine, infelizmente um excelente escritor pouco conhecido por aqui, mas altamente recomendado pela sua qualidade narrativa e literária. Fica a ótima dica.

Se gostou deste comentário sobre o livro, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito desta página e você será avisado sobre novas postagens. Muito obrigado!

Valdemir Martins

01.10.2023 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O trem em meio à nevasca; 3. O general e sua filha ao piano; 4. O velho Berg tocando na estação; 5. Andrei Makine.

8 de dez. de 2023

Morreram pela Pátria

Considerada mais uma obra prima da literatura russa do século XX, o livro Morreram pela Pátria, do cossaco Mikhail Sholokhov, prêmio Nobel de Literatura de 1965, além de outros lauréis, cativa-nos já nas primeiras linhas. Num terno tom poético, o autor nos imerge numa chácara das estepes russas, no caótico cenário do fim do inverno, com tudo congelado, queimado e inóspito.

Numa variação radical, Sholokhov passa então para uma linguagem vibrante, extremamente realista, iniciando o que será a narrativa inesquecível de um dos capítulos da brutal ocupação nazista da região do rio Don, ao sul da Rússia, e a histórica resistência do povo e dos soldados russos. Aqui ele se dedica aos dramas pessoais de alguns personagens para que melhor os conheçamos, fazendo assim que nos envolvamos na trama e sejamos parte desta grandiosa luta e poderoso sofrimento impingido à população e soldados naquele local.

Em julho de 1941 a Alemanha Nazista lançou um ataque em massa contra a então União Soviética. A região sul do país, nas proximidades das estepes do rio Don, foi uma das mais agredidas. É sobre essa luta, resistência e sofrimento heroico e a fome do povo russo que Sholokhov escreve com o conhecimento de quem esteve na frente de batalha. Teve enraizado em si os detalhes e sentimentos dessa conflagração que de forma extraordinária e brilhante transferiu para sua obra literária, o que sem dúvida muito lhe favoreceu na conquista do Nobel.

Sholokhov tece um belo comentário sobre patriotismo e sobre as responsabilidades de quem comanda, como um general. O que se contrapõe, de forma acentuada, pela alocução categórica de uma senhora, chamada carinhosamente de “avozinha” por um  soldado, a qual delineia seu ponto de vista sobre a passagem marcante dos batalhões por sua aldeia.

As descrições de batalhas são incrivelmente poéticas, de altíssimo valor literário, pois destacam, nas exposições, as reações psíquicas e da sensibilidade tanto dos personagens, como da natureza ao derredor. Tudo, sempre antecedido por exposições muito humanas de expectativas e procedimentos. O cotidiano da frente de batalhas dos soldados soviéticos, em sua maioria campesinos, mineradores, trabalhadores humildes e, portanto, pessoas muito simples, é relatado de forma extremamente humana.

Estratégias militares passam longe desta magnífica obra que retrata a crueza da guerra vivenciada dramaticamente por pessoas que não pediram para lá estar - e muitas vezes não sabem por que lá estão. Sabem apenas que estão lutando para defender a pátria de uma invasão dos inimigos nazistas alemães e que devem sobreviver também para voltarem aos seus lares e às suas famílias e amigos. E os que não conseguiram, apenas morreram pela pátria.

*** Se gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito da página. Muito obrigado!

Valdemir Martins

08.12.2023 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Mapa da bacia do rio Don; 3. tanque alemão atolado no rio; 4. Trincheira no quintal das casas; 5. Mikhail Sholokhov.

27 de nov. de 2023

Lasca, um pedacinho da barbárie comunista.

A bestialidade assume o comando deste pouco conhecido romance desde seu início. Tudo é admirável em Lasca, de 1923, do siberiano Vladímir Zazúbrin, proibido por mais de setenta anos nos domínios russo e soviético e publicado há pouco no Brasil na Coleção Acervo: 21 da Editora Carambaia.

A linguagem extremamente dinâmica – por vezes figurativa -, narrativas rápidas, metáforas e linguagem cinematográfica surpreendem-nos e envolvem-nos a partir da primeira página, quando deparamo-nos com a selvageria física e psicológica da cruel Tcheká – a Comissão Extraordinária para Luta contra a Contrarrevolução e Sabotagem, polícia política antecessora da KGB comunista soviética.

Com a intenção de ser preciso na descrição das crueldades, Zazúbrin, também um prisioneiro dos bolcheviques na Sibéria, chega a ser exaustivo nas descrições de atrocidades sanguinolentas. E não podemos culpá-lo pelo exagero, pois se trata principalmente de uma denúncia histórica, além de uma novela política de época.

Nesta obra o fanático protagonista tem a Revolução Comunista como uma deusa e tudo faz em seu nome, em sua honra e é a ela submisso. Este é o seu destino. Sua vida. E assim Zazúbrin demonstra o ambiente, o comportamento, a dramaticidade de um negro período histórico onde não podemos chamar seus participantes de humanos. Nem de animais, pois nem estes, irracionais, jamais chegaram a tamanha carnificina.

E o pior: sem remorsos. Um período que marcou de forma indelével a história e o povo russos.

Pelos meados da obra o médico, pai do protagonista e também vítima da barbárie, manda um recado: “... sua doença, a doença de todo o povo russo, indubitavelmente é curável e, com o tempo, desaparecerá sem deixar rastro, e para sempre. Para sempre, pois o organismo que padece dela produz anticorpos suficientes. Adeus.”. Mas, pelo que parece, essa moléstia – já modernizada - ainda circula no seio dos russos que detém o poder na atualidade.

Na sequência, Zazúbrin surpreende novamente e brinda-nos com uma pérola do carrasco chamando pela própria mãe, pedindo proteção após um pesadelo. E como tudo na vida e na história, basta um desvão involuntário e tudo muda, até radicalmente sem nosso controle. Como escreveu o editor Valerian Pravdúkhin, à época, “Aqui temos diante de nós um herói como a história da humanidade ainda não viu. Aqui há a tragédia interna desse herói, que não suportou sua façanha ‘heroica’ diante do colapso de Srúbov, que sucumbe diante da repressão que ele mesmo comanda na Tcheká”.

E da mesma forma, após a glasnost soviética, milhares de publicações então proibidas e censuradas pelo “Terror Vermelho” vieram ao público. Iniciava-se desta forma, pela escrita, a grande denúncia sobre os barbarismos impetrados pelos comunistas.

Ao condenar os nazistas pelos seis milhões do Holocausto judeu, a Humanidade se esquece dos 17 milhões de euro-asiáticos exterminados pelos comunistas, de diversas formas bastante cruéis, a mando de Stalin, gerindo sua revolução operária a partir de 1917. Dentre esses episódios, sem dúvidas, destacam-se a transformação da Sibéria num grande açougue humano, e o chamado Holodomor, onde o regime totalitarista de Stalin assassinou 7,5 milhões de ucranianos apenas pela fome.

Um detalhe: seus parceiros de comando da revolução foram também por ele assassinados. Traídos, Lenin foi morto em 1924 e Trotsky – após fuga espetacular pela Ásia Central, Europa e América do Norte, foi assassinado no México em 1940.

Por seu pesado teor, este é um livro para ser lido apenas por quem se interessa pelo assunto e deseja conhecer em detalhes o que foi o grande açougue humano estabelecido no começo do século passado pelo regime totalitarista dos comunistas a comando de Stalin.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Valdemir Martins

20.09.2023

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Sibéria; 3. Símbolo da Tcheká; 4. A corporação "Terror Vermelho"; 5. Tortura e morte; 6. O carniceiro Stalin; 7. O autor Vladímir Zazúbrin.


14 de out. de 2023

Engordando conhecimentos na Ceia Secreta

Enquanto vamos conhecendo episódios importantes do Século XIV, em plena época da chamada Santa Inquisição, alcançamos fatos que propiciam um suspense e um clima perscrutador que se revelam no âmago da obra A Ceia Secreta, do jornalista e escritor espanhol Javier Sierra. Um surpreendente romance histórico.

Lembrando um pouco o livro O Nome da Rosa, claro, sem o eruditismo de Umberto Eco, este romance desenvolve-se também num ambiente claustrofobicamente eclesiástico e investigativo, mantendo um bom suspense e aquela consequente vontade de não parar a leitura. Com um bom ritmo, o texto flui na medida em que aumenta a ansiedade do leitor.

Aqui se descobre fatos pitorescos e pouco conhecidos do berço da religião católica, em especial sobre Jesus e seus discípulos, João Batista e a onipresente Maria Madalena, além de Leonardo da Vinci, os Dominicanos e os mecenas de obras sacras. A mixagem de elementos reais e ficcionais usada por Sierra de maneira tão estimulante e envolvente consegue conduzir o leitor como partícipe da trama.

Acredito ser uma obra muito mais envolvente para quem aprecia e tem algum conhecimento de arte pictorial. A base de sua narrativa faz eclodir as inúmeras facetas e enigmas que envolvem não só a obra de Leonardo Da Vinci, mas especificamente o Cenacolo ou Santa Ceia, ou ainda A Última Ceia, como é conhecida sua polêmica obra prima, um afresco pintado numa parede do refeitório do convento da igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão.

O livro é narrado na primeira pessoa, pelo próprio protagonista, de forma bastante casual e informal, o que torna a leitura mais cativante. E não vejo uma forma de leitura de sucesso sem o acompanhamento constante de visualizações da pintura ao lado do livro, entendendo-se assim as interessantíssimas contendas sobre a obra.

A “teoria da conspiração” contra a Igreja Católica – já batida com sucesso em O Código Da Vinci, de Dan Brown, e no livro O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, de Michael Baigent -,
reaparece nesta obra de forma bastante enfática e envolvente, principalmente pelo fato de Sierra contextualizar seu trabalho no século XV, num cuidadoso trabalho de pesquisa. Ele é um grande cientista em simbologia e códigos antigos, como também estudioso profundo do esoterismo, pelo qual é muito respeitado.

Os cátaros (katharos que significa “puros” em grego) membros de uma facção religiosa da Idade Média que repudiava a igreja católica apostólica romana – e bem pouco conhecida pelo público – torna-se o cerne desta trama repleta de simbologias e códigos secretos. E, assim, promovendo mais polêmicas à sua obra, Sierra leva-nos até os conceitos enunciados nos chamados Evangelhos Gnósticos, descobertos no Nag Hammadi, no norte do Egito em 1945, tidos, então, como “livros perdidos da Bíblia”.

Todos os personagens desta obra e a maioria dos fatos ali relatados existiram e são históricos, o que confere ao livro A Ceia Secreta, principalmente aos religiosos cristãos, uma excelente oportunidade de engordar seus conhecimentos sobre o assunto como também de refletir mais profundamente sobre suas crenças.

Aos admiradores de Leonardo da Vinci fica a certeza reescrita de sua genialidade artística, científica e humana, uma vez que tudo no texto de Sierra tem fundamentos em rigorosas e respeitadas pesquisas. Diferente e muito superior ao de Dan Brown, este é um livro a ser lido, refletido e, com certeza, admirado e recomendado.

Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Valdemir Martins

13.09.2023

Fotos: 1. capa do livro; 2. O refeitório da Igreja de Santa Maria della Gracie; 3. A pintura original; 4. A pintura no refeitório; 5. A polêmica tela refeita da Madona da Pedra; 6. O evangelho gnóstico; 7. Javier Sierra.

3 de out. de 2023

Aos dezenove, O Quinze!

Não há como negar: é inquestionável o talento literário de Rachel de Queiroz, já explicitado em sua primeira obra, O Quinze. E é de embasbacar-se que, com apenas dezenove anos, tão brilhante romance escreveu. Um talento incontroverso.

Também incontestável é a qualidade da sua escrita e da sua criatividade. E, em tão tenra idade, já expressa um profundo conhecimento do achavascado agreste nordestino e de seus resistentes residentes e sobreviventes. Sem falarmos dos predicados de sua linguagem fluída, objetiva e concisa, contudo, sem deixar de apresentar o realismo dos personagens e cenários: “Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz.”

Muitas vezes interpretativo beirado à perfeição, os diálogos transpiram autenticidade e expõem a exuberante realidade cabocla do retirante no sertão atroz e desumanamente infernal. Perturbadoras, chegam a ser emocionantes as cruas descrições do sofrimento dos retirantes ante a fome, a sede, o sol abrasador e, como consequência, a fraqueza e a moléstia: miséria e desespero.

A tanta desgraça involuntária soma-se a incomensurável dor de não se ter tino e tempo para cumprir ou sentir o luto. Para o retirante, a vida não lhe pertence, mas à caatinga e à misericórdia de quem pouco tem para compartilhar.

Diante de tanto sofrimento, Rachel não deixa de suavizar sua obra de estreia com romances dos personagens e com a inclusão de pessoas bondosas que se destacam ao ajudar os miseráveis.

E assim, Rachel resgata as causas da fuga de sua família do Ceará para o Rio de Janeiro, em 1877, na maior seca que já assolou o nordeste brasileiro.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Valdemir Martins

31.08.2023

Fotos: 1. capa do livro; 2. criança retirante; 3. acampamento de retirantes na grande seca de 1877; 4. Rachel aos dezenove anos.

20 de set. de 2023

A agilidade do Homem Lento


Do nada, coisas impensáveis ocorrem na vida das pessoas. E um desses fatos é maravilhosamente explorado pelo Nobel sul-africano J. M. Coetzee em seu livro Homem Lento. Uma obra com a linguagem dramática típica de Coetzee trazendo o desespero e a solidão de um personagem inesquecível.

Os eventos que abrem o texto demonstram de imediato, a magistralidade do autor expondo fatos contundentes e avassaladores, iniciando o contexto de desespero que contamina o livro e o leitor de imediato. O desengano e a luta ante as dificuldades físicas, a enfermidade, a velhice, a inaceitável solidão e os sonhos que se desvanecem, erigem mais este impecável trabalho de Coetzee.

A mão salvadora parece ser o amor ou apenas uma paixão, algo que lhe foi inexistente nos seus 60 primeiros anos de vida. Sim, por que esta tem jeito de recomeçar-lhe agora, nesse ponto. Mas, sua paixão lhe traz também inúmeros problemas e o principal deles é uma pessoa absolutamente estranha que se entranha em sua vida. Aqui, Coetzee insere seu alter ego, uma personagem indesejável e que passa a perturbar nossa leitura como um verdadeiro incômodo. Mas, que é, na realidade, uma forma original de o autor abordar questões existencialistas e éticas no desenvolvimento da trama.

É aquela pessoa que de repente aparece e interfere insistentemente na vida das pessoas, sempre alertando para tudo que pode acontecer de mal na vida delas. Mas, também, sem deixar de escancarar as verdades. Um ser que será visto como maligno, inesgotável, indestrutível. Mais uma preciosidade nesta obra que nos faz refletir muito sobre valores e escolhas na vida. Necessidades desnecessárias: alternativas impensadas por absoluto deslumbramento e foco em situações, coisas e pessoas erradas. E uma autopunição inconsciente.

Nesta ficção arquitetada sobre a realidade e os sentimentos comuns das pessoas, fica a preleção de que, por pior que seja a situação, sempre há alternativas. Apenas depende de nós encontrá-las e utilizá-las ou não; com inteligência e sabedoria para não corrermos o risco da solidão voluntária, da viver-se fora do próprio tempo, como Marcel Proust, definhando no passado e sobrevivendo pelas memórias.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Valdemir Martins

28.07.2023

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O protagonista na bicicleta; 3. A massagista; 4. J. M. Coetzee.

14 de set. de 2023

Stella Maris: uma obra desconcertante.

Após a leitura de O Passageiro (vide comentário abaixo), do brilhante Cormac McCarthy, continuei a tortura psicológica no segundo livro de seu díptico, Stella Maris, cujo protagonista passa a ser a irmã do personagem análogo do primeiro livro. Já em seu início a mesma destrói diversos conceitos psicológicos e seus inúmeros testes, inclusive os de QI, em longa conversa com um terapeuta.

McCarthy, neste que é seu último livro, consegue escrever uma obra sem narrativas, composta só por seguidos diálogos, onde o leitor, em sua própria mente, vai construindo a narrativa. Uma técnica literária excepcional, muito pouco usada. Alicia, a adolescente protagonista, faz doutorado em Matemática e, ao discorrer sobre sua infância e pré-adolescência, faz um arrazoado entre filosofia e física. E quem lê, defronta-se com uma obra que põe em cheque conceitos sobre Deus, a verdade e a própria existência humana.

Num livro curto, mas extremamente profundo, apresenta-se uma obra que dignifica a literatura moderna com suas proposições viscerais em cima de um enredo breve, bastante complexo e essencialmente diverso. As críticas de uma jovem de apenas vinte anos – mas extremamente inteligente, vivida e sofrida – à sociedade que insiste em enxergar tudo sempre sob a mesma ótica, impressiona-nos pela contrastante lucidez de uma esquizofrênica, em diálogos contundentes sobre perda, saudade e loucura. Aqui, mais uma vez, McCarthy arrasa.

Como se previsse seu fim, McCarthy vem iluminar certos pontos escuros encontrados em O Passageiro e, talvez, em algumas obras anteriores. Consagra-se, sem dúvida, como um dos maiores escritores norte americanos em dois séculos.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Valdemir Martins

15.07.2023

Fotos: 1. capa do livro; 2. Black River Falls, onde fica o instituto; 3. Einstein e Oppenheimer citados no livro; 4. Cormac McCarthy.

2 de ago. de 2023

Um Passageiro em agonia

O personagem Kid Talidomida define a certa altura de um diálogo impossível: “Estamos falando aqui de graus infinitos de liberdade, por isso é sempre possível efetuar uma rotação e fazer com que tudo pareça diferente.” Estes são os devaneios de loucura nos desvãos da consciência que nos presenteia o genial escritor norte americano Cormac McCarthy nos estertores dos seus 90 anos. Parece sem nexo. Entramos num mundo de seres ilógicos, com nadadeiras. E assim iniciamos a leitura do seu livro O Passageiro.

Ato contínuo, vamos ingressar num texto com o DNA específico de McCarthy. Personagens das sombras infestam, então, o início da obra, seja em fantasias ou em realidades. O leitor deverá ter paciência e ir assimilando gradativamente a grandeza do texto que tem pela frente.

O Passageiro narra a história de um mergulhador de resgate, assombrado por perdas, solitário em meio a muitos amigos, e que, perseguido por uma conspiração que não compreende, anseia por um desfecho de vida mais aceitável do que tudo que já presenciou e conviveu.

Personagens, locais e situações muito lentamente vão se encaixando num complexo quebra-cabeça, como um up no ânimo de leitura. Os passados ressuscitados vão encorpando o enredo, desvendando e construindo personagens, suas histórias e conexões.

Boa parte dos diálogos são fortes, construtivos e consistentes, Veja este trecho: “Talvez seja apenas porque as pessoas dizem coisas sobre você que não falam na sua cara. Coisas ruins? Não. Apenas coisas sobre você que podem ser verdadeiras. Você acha que é capaz de aprender tudo sobre si mesmo por conta própria?”. Realmente, dá muito no que pensar, não é mesmo? São diálogos muitas vezes percebidos como irreais, mas que têm um imenso teor de verdades a serem refletidas. Tratam de vida, realidade, culpabilidade, esperança, relacionamento, lógica, fantasia, amor, perda e solidão, entre outros temas profundos.

Em trechos cruciais, passeia entre o sonho e o burlesco, flertando com a fantasia em imersões na psique de personagens fundamentais. Muitas vezes, inversamente a sequências de sua obra Meridiano de Sangue, a violência aqui é psicológica – e até filosófica - e terrivelmente perturbadora.

Uma obra difícil, com alguns diálogos técnicos aborrecidos, que demanda paciência e imensa curiosidade para, finalmente, desembarcar em satisfação após a miríade de locais, situações e personagens transpostas para saber a incrível história do protagonista Bobby Western.

Um imenso poema moderno. Um livro brilhante, cujo projeto ficará concluído com o segundo livro deste díptico do Prêmio Pulitzer McCarthy: Stella Maris.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Valdemir Martins

02.07.2023

Fotos: 1. capa do livro; 2. Mergulhadores profissionais; 3. Bar típico de Nova Orleans; 4. Port Sulphur; 5. Plataforma de petróleo na Bolívia; 6. Cormac McCarthy.

16 de jul. de 2023

As realidades de O Cavaleiro Inexistente

Tudo que vemos só é real se fizer parte de nosso contexto de conhecimento. Nada será diferente disso perante nossa experiência de vida. E é disso que trata o primoroso romance do italiano Italo Calvino em sua obra O Cavaleiro Inexistente. Calvino, merecedor de um Nobel de Literatura, preterido a inúmeros premiados, segundo meus conceitos de qualidade literária. Sinta-se à vontade para discordar.

Nesta sua obra, mais uma vez fantástica, ele nos assombra com nossa própria sombra: aquilo que somos e que jamais mostramos ser. Para isso, vai até Carlos Magno, na Idade Média, século VIII, para apresentar-nos uma extravagante história sobre uma armadura viva, porém sem seu suposto cavaleiro, contada por uma penitente freira.

Um livro que mostra um cavaleiro que não existe, mas que traz algumas reflexões sobre a nossa própria existência e insignificância. O protagonista é um paladino com tudo que se esperaria de um cavaleiro medieval, ou melhor, de um ser humano em qualquer época: caráter inabalável, incorruptível, fiel, nobre, honesto, imbuído de honra, coragem e retidão. Isto é, uma figura principal que não existe, mas que seria desejável na humanidade.

Dentre as diversas alegorias elaboradas por Calvino a principal é o próprio protagonista. Além de ser o cara certinho, lógico, irritantemente perfeccionista, que não entende as exceções, ele cumpre cegamente todas as regras, normas e protocolos até as últimas consequências. Um indivíduo representado por uma armadura de cavaleiro, de caráter inabalável, voz metálica, incorruptível, devoto, nobre, fiel, imbuído de honra, coragem, retidão e que por isso mesmo não existe.

Apesar das comparações de alguns críticos e analistas com os homens modernos e tecnológicos, pecam por ignorar que este é um romance de fantasia e crítica social escrito em 1959, época em que os computadores – ainda rudimentares - acabavam de trocar as válvulas pelos transistores. Não se sonhava sequer com a internet. Evidente que o autor visava demonstrar um ser utópico que, por pretensamente ser poderoso apesar de humilde, é, por isso, cortejado, invejado e orbitado por um idiota, uma mulher perfeitamente empoderada e um ambicioso e tremendo invejoso que lhe pretende a proeminência, assim como por um admirador jovem e inexperiente que num golpe de sorte se torna seu herdeiro material.

Nesta poderosa e irônica crítica social, Calvino ridiculariza a Sagrada Ordem dos Cavaleiros do Graal, historicamente aclamados como heróis, mostrando seu treinamento como isolacionista e idiotizante, numa aparente crítica ao fanatismo religioso. Apesar de uma história simples e curta, é cheia de cenas que oscilam entre ridículas e até hilariantes.

Um belíssimo exercício literário rico em sátiras e metáforas elaborado por um dos mais importantes escritores italianos do século XX.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Valdemir Martins

16.06.03

Fotos: 1. Capa; 2. O cavaleiro branco; 3. A guerreira; 4. Carlos Magno; 5. O idiota; 6. Italo Calvino

20 de jun. de 2023

Um circo que realmente passa, sem avisar que vai embora

Com um enredo despretensioso e simples, o Prêmio Nobel francês (2014) Patrick Modiano inicia seu romance Um Circo Passa com dois protagonistas num relacionamento estranho e biografias misteriosas. Aliás, todo terço inicial da obra é propositalmente enigmático visando surpreender-nos lentamente na evolução da leitura.

Narrando na primeira pessoa, como memórias, o autor abusa das citações de localidades e endereços parisienses causando-nos a impressão de um certo exibicionismo referente ao seu conhecimento da capital francesa. Revela nas entrelinhas deste texto ligeiro, sôfrego e ansioso, tudo o que a Segunda Guerra marcou em sua formação.

A tensão aumenta na história elevando o nível de angústia do leitor. As incógnitas começam a se encaixar, mas sem solução. Passados remexidos são surpreendentemente revelados corroborando o clima da obra e aumentando o suspense. Os protagonistas, perambulando por lugares depressivos e apesar de terem muito a esconder um do outro, compartilham os mesmos sonhos.

Uma obra rápida, enigmática e parece-nos relativamente simples por ser curta e abrupta, mas, por ser uma obra aberta, nos desperta inúmeras possibilidades de criar e tomar nossas próprias soluções criativas num raciocínio elucubrado à Umberto Eco. O livro entra em nossa mente como realmente um circo que passa por nossa cidade, trazendo-nos sonhos e emoções e rapidamente indo embora sem aviso prévio.

*** Se você gostou deste comentário, siga-nos. Basta clicar em "Seguir" no lado superior direito do blog. Muito obrigado!

Valdemir Martins

022.06.2023 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. café Les Deux Magots; 3. O prédio na Pont Neuf; Patrick Modiano