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5 de fev. de 2024

New York: uma sequência de erros portugueses.

Para quem ama a cidade de Nova Iorque - ou tem vontade de conhecê-la - e não sabe sua história, faz-se importante recomendar que em sua próxima (ou primeira) viagem visite a Peter Minuit Plaza, no ponto mais meridional da ilha. Ou, se preferir, ler a excelente obra Arrancados da Terra, do premiado escritor e jornalista brasileiro Lira Neto.

Não se trata de uma história qualquer. Ela começa na Idade Média, quase um século após as descobertas das Américas. E mais uma vez com o sofrido povo judeu. Aqui, Lira insere-nos na radical e absurda Inquisição portuguesa, apresentando detalhes de um processo inquisitório que nos faz acreditar ser o princípio inspirador dos métodos nazistas, tamanha é a crueldade praticada pela Igreja Católica. Resultado: êxodo dos judeus, os novos-cristãos portugueses, para países livres da Inquisição.

Enquanto porcamente os portugueses colonizavam o Brasil, pois não sabiam o que fazer com tanta terra, nas Províncias Unidas (Holanda) calvinistas o Banco de Câmbio e a Bolsa de Valores eram organizações fundamentais a uma sociedade essencialmente urbana, com o grau de alfabetização mais elevado do continente europeu e a maior média salarial paga a funcionários públicos e privados no mundo. Lá os então cristãos-novos fugitivos encontraram liberdade cultural, econômica e religiosa. E sucesso.

Entra em cena, então, a Companhia das Índias Ocidentais (CIO) criada pelos holandeses exclusivamente para prejudicar o inimigo reino espanhol que, por razões familiares e de herdeiros, governava também Portugal. Assim, em 1621 todas as rotas comerciais ibéricas passam a ser controladas pelos holandeses. Invadir o Brasil, uma colônia indefesa e rica produtora de açúcar, tabaco e pau-brasil torna-se uma meta da Companhia, uma poderosa empresa, híbrido de força militar e companhia comercial.

A um forte e bem sucedido ataque da grande esquadra holandesa a Salvador, surge mais uma teoria da conspiração culpando cristãos-novos portugueses refugiados na Holanda. Na Espanha, prevaleceu a ideia de que os grandes responsáveis pela queda de Salvador teriam sido os judeus. Embora não houvesse nenhuma menção quanto a isso nas narrativas presenciais neerlandesas ou luso-brasileiras, persistiu em Madri a opinião de que os marranos haviam arquitetado toda aquela “trama maligna”.

Enfraquecidos por pura devassidão e desleixo, em 1625 os holandeses são expulsos da Bahia, derrotados por uma poderosa esquadra luso-espanhola. Mas, seis anos depois, muito mais organizados e em número maior de pessoas, os holandeses conquistam Pernambuco rechaçando os luso-espanhóis, E, desta vez, esquematizando-se para trazer, sob um programa de incentivos de colonização organizada, os cristãos-novos fugidos de Portugal que pela fluência da língua seriam fundamentais nesta nova conquista.

Após a aquisição, foi nomeado governador geral do Brasil o nobre protestante conde João Maurício de Nassau, de 32 anos, formação humanística exemplar e forte experiência militar. Após conquistar também Alagoas, Paraíba, Itamaracá, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão, Maurício pede e começa a receber colonos judeus com profissões diversas e investidores holandeses, abrindo o comércio à iniciativa privada. Depois de anos de sucessos no desenvolvimento da região, Nassau é obrigado pelo governo holandês e pela CIO a retornar para Amsterdam. Aproveitando-se da vacância de governo na região, nacionalistas e rebeldes luso-brasileiros formam milícias e iniciam uma guerra de libertação e reconquista principalmente da capital Recife. Com o apoio dissimulado do rei português D. Manoel IV, em janeiro de 1654 os rebeldes brasileiros reassumem Pernambuco e os holandeses restantes juntamente com os judeus são expulsos da então capital brasileira.

Os rebeldes, na realidade, eram liderados por fazendeiros de tabaco, pau-brasil e cana e produtores de açúcar que deviam muito dinheiro aos judeus holandeses e à CIO. Assim, percebendo suas produção e vendas comprometidas resolveram expulsar seus credores, formando milícias com seus empregados, escravos e indígenas. Foram eles, na realidade, os grandes responsáveis pela expulsão dos holandeses de Pernambuco, sem medir o que essa colonização havia trazido de progresso e civilização para aquela região. Só importou egoisticamente seus próprios interesses e não os de uma futura nação.

Assim, um fato historicamente pitoresco foi o desgarramento de rota de uma das naus com os judeus holandeses e cristãos-novos, que depois de muitas atribulações, desembarcaram numa pequena e modesta ilha de possessão holandesa, denominada Nova Amsterdam, hoje região de Nova Iorque na América do Norte.

Esta obra de cunho documental histórico é recomendada aos que se interessam pelo assunto e pela história do século XVII. O Padre Antônio Vieira – personagem importante da literatura portuguesa e da História do Brasil - é figura atuante neste contexto, assim como todo um histórico de aventuras e desventuras da colônia judaica na Europa e nas Américas e toda a execrável e genocida perseguição da Inquisição da Igreja Católica. A hipocrisia e oportunismo português e luso-brasileiro em meio a todo sucesso holandês e judaico é algo também muito marcante.

Este é, além de um livro surpreendente, um manancial histórico brilhante, de prazerosa e enriquecedora leitura onde se vão entender os terríveis erros cometidos pelos portugueses. Primeiro enxotando os judeus de seu território na Idade Média e posteriormente apoiando maciçamente e de forma dissimulada os luso-brasileiros rebeldes - para não despertar a ira dos holandeses e espanhóis, então seus inimigos políticos - arrancando-os da terra de sua colônia brasileira, e empurrando-os – após extraordinárias realizações no nordeste - para desenvolver, fora de sua jurisdição, a maior cidade do globo em termos econômicos, políticos e culturais, até nossos dias.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Lisboa no século XVII; 3. Amsterdã no século XVII; 4. Tribunal da Inquisição em Portugal; 5. Tortura da Inquisição; 6. Pe. Antonio Vieira, o inquisidor brasileiro; 7. Mauricio de Nassau; 8. Ponte construída por Nassau em Recife; 9. As "cidades irmãs" Nova Iorque e Recife; 10. Lira Neto.

16.12.23

26 de jan. de 2024

Treblinka: a inacreditável sobrevivência da alma judaica.

Não há na história da humanidade um povo tão longevo, sofrido e batalhador. O povo judeu, com seus primórdios bíblicos mantém até os dias atuais a mesma sina de povo unido e vencedor. Marcado por episódios épicos como o êxodo do Egito, até aos tormentos atuais de subsistência heroica em meio a territórios antagônicos, o povo hebreu teve um ápice de sofrimento quando os nazistas determinaram a sua extinção. O histórico Holocausto nazista tem inúmeros registros em depoimentos e documentos, em livros, nas artes e em imagens mostrando quão cruel foi “a solução final” planificada por Hitler e seus asseclas.

Um dos mais importantes registros dos massacres encontra-se no livro Treblinka, do judeu francês Jean-François Steiner. Uma obra que registra diametralmente a mansidão e a surpreendente revolta avassaladora dos prisioneiros, em seus mínimos detalhes, todos históricos, pois realmente aconteceram e foram testemunhados.

Ao conquistar os territórios da Polônia, Ucrânia, Bielo-Rússia e Estados Bálticos (então pertencentes à União Soviética) a Alemanha nazista herdou uma população de milhões e milhões de judeus indesejados, por serem de “raça inferior”. Nasceu assim, para Hitler, a necessidade urgente de livrar-se deles e  foram então criados inúmeros campos de concentração naquela região. Treblinka, na Polônia, foi um dos pioneiros.

Diferentemente dos famosos campos de concentração de Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen, Buchenwald e Sobibór - dentre os 48 que existiram, entre concentração, seleção, guetos e eliminação -, Treblinka foi um campo de extermínio com um histórico diferenciado dos demais em diversos aspectos: era o local onde os judeus eram mais humilhados e onde a SS aplicava com mais dedicação e eficácia seu programa de despersonalização do prisioneiro e dos grupos de prisioneiros, fazendo-os perder psicologicamente sua identidade como povo ou raça, baixar a resistência e perder qualquer esperança, levando-os a encaminharem-se à morte como um rebanho de ovelhas. Afinal, era um campo de extermínio. São aspectos importantes muito bem explicados por Simone de Beauvoir no prefácio da obra, publicada em Paris em 1966.

Steiner inicia seu impecável relato abordando os pogroms soviéticos de massacre de judeus que passou a ser inteligentemente usado pelos nazistas naquela região. A seguir, a estratégia dos guetos, com o uso sistemático e eficiente dos condicionamentos psicológicos. Seus relatos são suficientemente detalhados - e, às vezes cruéis - para o entendimento eficaz desta preciosa resenha histórico.

Passa a narrar a criação do Campo de Treblinka como pioneiro dedicado apenas ao extermínio e à recuperação de bens, tudo executado, sob açoite, pelos próprios prisioneiros. A recuperação referia-se às roupas, ao dinheiro e aos demais bens portados pelos judeus para reaproveitamento; inclusive a extração de dentes e obturações de ouro dos mortos com alicates.

E neste ponto do livro, com certeza, o leitor começa a refletir horrorizado sobre o significado de todo esse mal – físico, psicológico e espiritual – impetrado pelos nazistas contra o povo judeu; jovens, idosos e crianças, sem exceção. E Steiner não economiza palavras e detalhes para descrevê-lo. E a simples e conformada aceitação da morte pelos judeus é sintetizada na frase de um personagem: “tal como fazem certas aranhas, eles ‘adormecem’ as vítimas antes de eliminá-las”.

A formação do primeiro espírito de um Comitê de Resistência surge e a alma judaica começa a formar uma união entre os prisioneiros e, simultaneamente, recrudesce a violência dos nazistas contra eles a extremos inacreditáveis. Não fosse este livro um documento de testemunhas do massacre, seria impossível aceitar os absurdos que nos são narrados.

O Comitê percebe todos os estratagemas dos alemães e dispõe-se a tramar uma rebelião. E, inacreditavelmente, inicia-se um jogo psicológico dos judeus com os alemães levando estes a acreditar na submissão total e absoluta dos prisioneiros. E o objetivo da revolta era ser um acontecimento de alcance histórico, com os evadidos servindo de testemunhas que vivenciaram aquele inferno para registro da Humanidade. Não tinha como meta simplesmente salvar vidas, pois os revoltosos, mero trapos humanos, pouco se importavam com a morte. Para os prisioneiros a revolta assumia uma dimensão extra: a destruição de um mito, a reconquista de sua condição humana.

Com idas e vindas, a revolta finalmente acontece. Mas até lá, Steiner leva o leitor a agonias e ansiedade como se fosse um prisioneiro de Treblinka, tal é o envolvimento em que consegue aprisionar seus leitores. Assim, pondo termo aos sofrimentos, brinda-nos ainda com impressionantes dados históricos de sua pesquisa. E revela, inconteste, que o histórico antissemitismo era algo muito forte àquela época, tanto que dos cerca de seiscentos fugitivos, apenas quarenta conseguiram sobreviver ao ódio dos camponeses poloneses, dos fascistas ucranianos, dos próprios alemães e de diversos grupos radicais soviéticos e europeus.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Localização; 3. Chegada ao campo; 4. Maquete; 5. Estação; 6. Hospital dissimulado para extermínio; 7. Fumaça das cremações; 8. Franz Stangl, chefe do campo; 9. Samuel Willenberg, último sobrevivente; 10. Jean-François Steiner, autor.

16.12.23

14 de jan. de 2024

Uma belíssima temporada no Inferno.

Pessoas sensíveis são as que mais sofrem nos relacionamentos? Essa questão universal diversifica-se nos contextos culturais, religiosos e sociais e está presente nas mais diversas manifestações artísticas globais. Talvez uma das mais marcantes representações desse sofrimento esteja na magnífica obra Uma Temporada no Inferno, do revolucionário poeta francês Arthur Rimbaud.

Com apenas 18 anos e num sofrido relacionamento com o também valoroso poeta Paul Verlaine – bem mais velho que ele -, escreve este texto que é provavelmente um dos mais estudados na literatura mundial. Meio poesia, meio prosa, esta pequena obra derruba conceitos literários antes bem estruturados. Um gênio bastante padecido e autopreservado supera uma vida mundana e até um tiro de seu inconstante amante.

Para se ler, entender e apreciar Uma Temporada no Inferno torna-se fundamental conhecer a biografia de Rimbaud. Sua obra é sua vida – ambos muito curtos - colocada em papel de forma renovadora de uma literatura até então bastante conservadora como a parnasiana que o antecedeu. Ele a moderniza. Extrapola regras com a simples e honesta expressão de sentimentos. Sentimentos de um ser extremamente sensível e que por demais sofreu em seus relacionamentos, seja o amoroso ou o familiar. Ele liberta a expressão dos sentimentos nas artes, trazendo a realidade para ela, tornando-a autêntica, natural e verdadeira.

Assim, ler esta pequena obra representa se tonificar de algo novo, sofrido e real. Seu texto é profundo e suas imagens perfeitamente sentidas no todo o que lhe foi a vida. Aqui, especialmente, está um relato de seu beligerante e amoroso relacionamento com um poeta mais velho extremamente apaixonado, ciumento e possessivo. Rimbaud o escreveu com a alma, tenham a certeza.

Seu texto busca respostas, além de desabafos, críticas e acus
ações. Busca caminhos e respostas para questões religiosas, sociais e pessoais principalmente. Não há muito que se comentar sobre sua curta obra, pois ela é extremamente autoexplicativa. Para entendê-la basta conhecer sua vida e lê-la, senti-la.

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Valdemir Martins

03.12.2023

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Rimbaud e Verlaine; 3. Grupo de amigos poetas e artistas; 4. Paul Verlaine; 5. O autor Arthur Rimbaud (foto da Vecteezy).

4 de jan. de 2024

O divino Elixir do Diabo

Muito antes dos estudos de psicanálise do consagrado Freud, o renovador alemão E. T. A. Hoffmann (Ernst Theodor Amadeus) já se utilizava do inconsciente humano para desenvolver sua obra intrigante no período do romantismo alemão. E isso está patente em sua obra máxima Os Elixires do Diabo, publicada em 1816, onde esbanja esse uso de forma admirável, em favor de uma literatura revolucionária para os padrões daquela época e região.

Nesse contexto, inicia-se o livro, na Prússia Ocidental (hoje Polônia), com uma deslumbrante narração dos anos de infância e adolescência passados num convento, quando enceta o inebriante envolvimento de uma criança nos costumes religiosos com uma Igreja triunfante com a promessa de graças e bênçãos ao povo de fé.

E assim começa a narrativa fascinante da vida e peripécias do monge capuchinho Medardo. Aqui Hoffmann comete um primeiro sacrilégio ao abordar a descrença essencial das pessoas nas relíquias religiosas e como a Igreja atua com elas para tornar o indivíduo num crente. A seguir, faz o leitor refletir sobre as tentações da curiosidade, do prazer e do egocentrismo.

Ao sair um pouco do ambiente monacal, o protagonista dissolve-se numa miríade de fatos e personagens onde o inconsciente predomina atitudes e desarticula tudo que o leitor anseia ler em função das referências anteriores. E ao sair desse novo clima, já está ao sabor conveniente de seu subconsciente.

Sua viagem prossegue já incorporada por seu duo. Atos de paixão e violência intercalam-se com passagens de aventura e discursos sobre costumes. A dualidade explorada por Hoffmann extrapola seu protagonista, ampliando-a a príncipes e santas. A tradicionalíssima disputa entre o bem e o mal desabrocha como núcleo filosófico da obra, sempre atropelada pela fraqueza de caráter do monge em seus duos, como pela exploração do grotesco e do trágico em contraposição à religiosidade, à beleza feminina e ao encanto das paisagens.

Considerado um dos precursores da literatura fantástica, tem nas visões do protagonista, como parte importante da obra, a maior expressão do fantástico neste livro. Diálogos e altercações com mortos, com santos e com o próprio demônio, assim como a inclusão de penhascos e bosques escuros acentuam essa característica em seu texto.

Este clássico é uma obra brilhante, intrincada, pautada por diálogos contundentes, ótimas tramas de suporte ao enredo, muitas reviravoltas e um clima bastante agitado para as emoções e predileções do leitor. E uma soberba e emocionante apoteose.

Uma leitura que exige concentração e memória, pois por incrível que possa parecer, é uma linda e complexa história de amor. Ensina-nos, mesmo aos descrentes, que o mundo espiritual sempre se sobrepõe à banalidade terrena em permanente evolução.

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Valdemir Martins

30.11.2023

Fotos: 1. Capa do livro; . Capuchinhos dominicanos; 3. A bela Santa Rosália; 4. Santuário das Tílias Sagradas; 5. Clautros do Santuário; 6. Mosteiro dominicano em Roma; 7. E. T. A. Hoffmann

18 de dez. de 2023

A Música de uma Vida

Uma inóspita e enregelada cidade siberiana é o primeiro grande palco deste belíssimo enredo de A Música de uma Vida, do premiado romancista franco-russo Andrei Makine. Tudo começa nessa cidade onde uma forte e longa nevasca ajunta, literalmente, um monte de pessoas em uma estação ferroviária, com composições atrasadas a mais de seis horas.
De repente, o protagonista ouve uma música. Em meio ao caos de pessoas cansadas, sujas, famintas, sonolentas e, incrivelmente conformadas, Makine começa a demonstrar a fortuna intrínseca desse povo russo simples, no início da década de 1970, conformado com o seu eterno e histórico sofrimento. O homo-sovieticus. Aquele que aprendeu a controlar a contestação que é um sentimento universal e, claro, proibido pelo sistema dominante; é censurado pela própria consciência do potencial contestador.

Novamente alguns acordes. “Avanço com a impressão de pegar a ponta de um sonho e nela me instalar”. Assim o protagonista-narrador relata como encontrou o “velho maroto” ao piano. Na viagem então para Moscou, o velho pianista –agora parceiro protagonista - fala de sua vida, sua juventude como músico e as agruras de seus pais, enquanto também músicos, durante o chamado período do Grande Terror Stalinista (1936 a 39), onde uma pessoa era executada tão somente por pronunciar algo ou nome proibido pelo regime comunista.

A obra escorrega para os campos da Segunda Guerra. Mais dissabores e complicações para o velho protagonista, sempre à sombra das escabrosidades e perseguições soviéticas. E, no final, torna à viagem e ao reencontro com o protagonista-narrador. Sempre banhado em música, quando não o som dos obuses, o dedilhar de um piano, a imaterialidade musical norteia a vida do velho personagem Berg, como se não vivesse, apenas ouvisse.

Esta é uma obra curta, equivalente a uma imensa obra literária; muito bonita e triste, constituída por diversas histórias que compõem a história inteira de vida do velho maroto, resultante do talento e da sensibilidade do siberiano Makine, infelizmente um excelente escritor pouco conhecido por aqui, mas altamente recomendado pela sua qualidade narrativa e literária. Fica a ótima dica.

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Valdemir Martins

01.10.2023 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O trem em meio à nevasca; 3. O general e sua filha ao piano; 4. O velho Berg tocando na estação; 5. Andrei Makine.

8 de dez. de 2023

Morreram pela Pátria

Considerada mais uma obra prima da literatura russa do século XX, o livro Morreram pela Pátria, do cossaco Mikhail Sholokhov, prêmio Nobel de Literatura de 1965, além de outros lauréis, cativa-nos já nas primeiras linhas. Num terno tom poético, o autor nos imerge numa chácara das estepes russas, no caótico cenário do fim do inverno, com tudo congelado, queimado e inóspito.

Numa variação radical, Sholokhov passa então para uma linguagem vibrante, extremamente realista, iniciando o que será a narrativa inesquecível de um dos capítulos da brutal ocupação nazista da região do rio Don, ao sul da Rússia, e a histórica resistência do povo e dos soldados russos. Aqui ele se dedica aos dramas pessoais de alguns personagens para que melhor os conheçamos, fazendo assim que nos envolvamos na trama e sejamos parte desta grandiosa luta e poderoso sofrimento impingido à população e soldados naquele local.

Em julho de 1941 a Alemanha Nazista lançou um ataque em massa contra a então União Soviética. A região sul do país, nas proximidades das estepes do rio Don, foi uma das mais agredidas. É sobre essa luta, resistência e sofrimento heroico e a fome do povo russo que Sholokhov escreve com o conhecimento de quem esteve na frente de batalha. Teve enraizado em si os detalhes e sentimentos dessa conflagração que de forma extraordinária e brilhante transferiu para sua obra literária, o que sem dúvida muito lhe favoreceu na conquista do Nobel.

Sholokhov tece um belo comentário sobre patriotismo e sobre as responsabilidades de quem comanda, como um general. O que se contrapõe, de forma acentuada, pela alocução categórica de uma senhora, chamada carinhosamente de “avozinha” por um  soldado, a qual delineia seu ponto de vista sobre a passagem marcante dos batalhões por sua aldeia.

As descrições de batalhas são incrivelmente poéticas, de altíssimo valor literário, pois destacam, nas exposições, as reações psíquicas e da sensibilidade tanto dos personagens, como da natureza ao derredor. Tudo, sempre antecedido por exposições muito humanas de expectativas e procedimentos. O cotidiano da frente de batalhas dos soldados soviéticos, em sua maioria campesinos, mineradores, trabalhadores humildes e, portanto, pessoas muito simples, é relatado de forma extremamente humana.

Estratégias militares passam longe desta magnífica obra que retrata a crueza da guerra vivenciada dramaticamente por pessoas que não pediram para lá estar - e muitas vezes não sabem por que lá estão. Sabem apenas que estão lutando para defender a pátria de uma invasão dos inimigos nazistas alemães e que devem sobreviver também para voltarem aos seus lares e às suas famílias e amigos. E os que não conseguiram, apenas morreram pela pátria.

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Valdemir Martins

08.12.2023 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Mapa da bacia do rio Don; 3. tanque alemão atolado no rio; 4. Trincheira no quintal das casas; 5. Mikhail Sholokhov.

27 de nov. de 2023

Lasca, um pedacinho da barbárie comunista.

A bestialidade assume o comando deste pouco conhecido romance desde seu início. Tudo é admirável em Lasca, de 1923, do siberiano Vladímir Zazúbrin, proibido por mais de setenta anos nos domínios russo e soviético e publicado há pouco no Brasil na Coleção Acervo: 21 da Editora Carambaia.

A linguagem extremamente dinâmica – por vezes figurativa -, narrativas rápidas, metáforas e linguagem cinematográfica surpreendem-nos e envolvem-nos a partir da primeira página, quando deparamo-nos com a selvageria física e psicológica da cruel Tcheká – a Comissão Extraordinária para Luta contra a Contrarrevolução e Sabotagem, polícia política antecessora da KGB comunista soviética.

Com a intenção de ser preciso na descrição das crueldades, Zazúbrin, também um prisioneiro dos bolcheviques na Sibéria, chega a ser exaustivo nas descrições de atrocidades sanguinolentas. E não podemos culpá-lo pelo exagero, pois se trata principalmente de uma denúncia histórica, além de uma novela política de época.

Nesta obra o fanático protagonista tem a Revolução Comunista como uma deusa e tudo faz em seu nome, em sua honra e é a ela submisso. Este é o seu destino. Sua vida. E assim Zazúbrin demonstra o ambiente, o comportamento, a dramaticidade de um negro período histórico onde não podemos chamar seus participantes de humanos. Nem de animais, pois nem estes, irracionais, jamais chegaram a tamanha carnificina.

E o pior: sem remorsos. Um período que marcou de forma indelével a história e o povo russos.

Pelos meados da obra o médico, pai do protagonista e também vítima da barbárie, manda um recado: “... sua doença, a doença de todo o povo russo, indubitavelmente é curável e, com o tempo, desaparecerá sem deixar rastro, e para sempre. Para sempre, pois o organismo que padece dela produz anticorpos suficientes. Adeus.”. Mas, pelo que parece, essa moléstia – já modernizada - ainda circula no seio dos russos que detém o poder na atualidade.

Na sequência, Zazúbrin surpreende novamente e brinda-nos com uma pérola do carrasco chamando pela própria mãe, pedindo proteção após um pesadelo. E como tudo na vida e na história, basta um desvão involuntário e tudo muda, até radicalmente sem nosso controle. Como escreveu o editor Valerian Pravdúkhin, à época, “Aqui temos diante de nós um herói como a história da humanidade ainda não viu. Aqui há a tragédia interna desse herói, que não suportou sua façanha ‘heroica’ diante do colapso de Srúbov, que sucumbe diante da repressão que ele mesmo comanda na Tcheká”.

E da mesma forma, após a glasnost soviética, milhares de publicações então proibidas e censuradas pelo “Terror Vermelho” vieram ao público. Iniciava-se desta forma, pela escrita, a grande denúncia sobre os barbarismos impetrados pelos comunistas.

Ao condenar os nazistas pelos seis milhões do Holocausto judeu, a Humanidade se esquece dos 17 milhões de euro-asiáticos exterminados pelos comunistas, de diversas formas bastante cruéis, a mando de Stalin, gerindo sua revolução operária a partir de 1917. Dentre esses episódios, sem dúvidas, destacam-se a transformação da Sibéria num grande açougue humano, e o chamado Holodomor, onde o regime totalitarista de Stalin assassinou 7,5 milhões de ucranianos apenas pela fome.

Um detalhe: seus parceiros de comando da revolução foram também por ele assassinados. Traídos, Lenin foi morto em 1924 e Trotsky – após fuga espetacular pela Ásia Central, Europa e América do Norte, foi assassinado no México em 1940.

Por seu pesado teor, este é um livro para ser lido apenas por quem se interessa pelo assunto e deseja conhecer em detalhes o que foi o grande açougue humano estabelecido no começo do século passado pelo regime totalitarista dos comunistas a comando de Stalin.

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Valdemir Martins

20.09.2023

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Sibéria; 3. Símbolo da Tcheká; 4. A corporação "Terror Vermelho"; 5. Tortura e morte; 6. O carniceiro Stalin; 7. O autor Vladímir Zazúbrin.


14 de out. de 2023

Engordando conhecimentos na Ceia Secreta

Enquanto vamos conhecendo episódios importantes do Século XIV, em plena época da chamada Santa Inquisição, alcançamos fatos que propiciam um suspense e um clima perscrutador que se revelam no âmago da obra A Ceia Secreta, do jornalista e escritor espanhol Javier Sierra. Um surpreendente romance histórico.

Lembrando um pouco o livro O Nome da Rosa, claro, sem o eruditismo de Umberto Eco, este romance desenvolve-se também num ambiente claustrofobicamente eclesiástico e investigativo, mantendo um bom suspense e aquela consequente vontade de não parar a leitura. Com um bom ritmo, o texto flui na medida em que aumenta a ansiedade do leitor.

Aqui se descobre fatos pitorescos e pouco conhecidos do berço da religião católica, em especial sobre Jesus e seus discípulos, João Batista e a onipresente Maria Madalena, além de Leonardo da Vinci, os Dominicanos e os mecenas de obras sacras. A mixagem de elementos reais e ficcionais usada por Sierra de maneira tão estimulante e envolvente consegue conduzir o leitor como partícipe da trama.

Acredito ser uma obra muito mais envolvente para quem aprecia e tem algum conhecimento de arte pictorial. A base de sua narrativa faz eclodir as inúmeras facetas e enigmas que envolvem não só a obra de Leonardo Da Vinci, mas especificamente o Cenacolo ou Santa Ceia, ou ainda A Última Ceia, como é conhecida sua polêmica obra prima, um afresco pintado numa parede do refeitório do convento da igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão.

O livro é narrado na primeira pessoa, pelo próprio protagonista, de forma bastante casual e informal, o que torna a leitura mais cativante. E não vejo uma forma de leitura de sucesso sem o acompanhamento constante de visualizações da pintura ao lado do livro, entendendo-se assim as interessantíssimas contendas sobre a obra.

A “teoria da conspiração” contra a Igreja Católica – já batida com sucesso em O Código Da Vinci, de Dan Brown, e no livro O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, de Michael Baigent -,
reaparece nesta obra de forma bastante enfática e envolvente, principalmente pelo fato de Sierra contextualizar seu trabalho no século XV, num cuidadoso trabalho de pesquisa. Ele é um grande cientista em simbologia e códigos antigos, como também estudioso profundo do esoterismo, pelo qual é muito respeitado.

Os cátaros (katharos que significa “puros” em grego) membros de uma facção religiosa da Idade Média que repudiava a igreja católica apostólica romana – e bem pouco conhecida pelo público – torna-se o cerne desta trama repleta de simbologias e códigos secretos. E, assim, promovendo mais polêmicas à sua obra, Sierra leva-nos até os conceitos enunciados nos chamados Evangelhos Gnósticos, descobertos no Nag Hammadi, no norte do Egito em 1945, tidos, então, como “livros perdidos da Bíblia”.

Todos os personagens desta obra e a maioria dos fatos ali relatados existiram e são históricos, o que confere ao livro A Ceia Secreta, principalmente aos religiosos cristãos, uma excelente oportunidade de engordar seus conhecimentos sobre o assunto como também de refletir mais profundamente sobre suas crenças.

Aos admiradores de Leonardo da Vinci fica a certeza reescrita de sua genialidade artística, científica e humana, uma vez que tudo no texto de Sierra tem fundamentos em rigorosas e respeitadas pesquisas. Diferente e muito superior ao de Dan Brown, este é um livro a ser lido, refletido e, com certeza, admirado e recomendado.

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Valdemir Martins

13.09.2023

Fotos: 1. capa do livro; 2. O refeitório da Igreja de Santa Maria della Gracie; 3. A pintura original; 4. A pintura no refeitório; 5. A polêmica tela refeita da Madona da Pedra; 6. O evangelho gnóstico; 7. Javier Sierra.