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12 de mar. de 2018

Do nada brotou o Geovani, menó.




O alarido difundido pela Companhia com o livro O Sol na Cabeça, do novato e morador carioca Geovani Martins, abarcou até seis páginas de Jeronimo Teixeira na Veja, rasgando o verbo pra elogiar o garoto. Botaram até frases do Moreira Salles e do Chico Buarque como se um deus tivesse nascido, papo reto. Resolvi comprar o bagulho e o li, inteiro, num só tranco, neste domingo.

Assim como Rachel, Graciliano e João Cabral nos desvendaram os sertões nordestinos, Geovani escancara-nos os morros do Rio de Janeiro, despejando através de sua impiedosa e surpreendente escrita, o ambiente, a realidade e a vida da molecada, dos adolescentes e de suas famílias nas favelas. E de forma magnífica, revela as realidades acobertadas nas frequentes matérias da imprensa e jamais registradas pelo público leitor, ouvinte ou telespectador. Nada lhe escapa – o narcotráfico, os nóias, a polícia corrupta, a macumbeira, os evangélicos, a inocência, a violência, o amor, as drogas (todas), a linda borboleta, a família, as novinhas, a amizade, a penúria, o trabalho, a escola – pois ele é fruto desse reino.

O livro, enfim, apesar de suave, é impactante e marca o nascimento de potencial grande escritor caso venha a se preparar culturalmente para isso. Nesta obra de estreia ele usa da oralidade popular com a coragem de criar contos inteiros no linguajar dos “moradores”, como ele designa quem reside na favela – em nenhum momento fala em “comunidade” como a imprensa hipócrita costuma usar -, fazendo-nos vivenciar o real, o autêntico diálogo e dialeto local. Conto seguinte, volta ele ao português convencional, porém com muito estilo.

De origem humilde, Geovani tem o talento e soube aproveitá-lo na composição desta obra superlativa. Seu texto vai de uma situação para outra, mesmo no conto curto, como numa montanha-russa. Sai do suspense para a violência e pá, está no lirismo. Nesta obra claramente autobiográfica, ele consegue narrar cenas atrozes presenciadas e situações de pressão e terror sem qualquer ranço de revanche ou vingança, o que bem demonstra a maturidade do autor apesar de sua pouca idade. Ou seja, é habilidade nata.

Geovani está longe ainda de Machado, Graciliano, Rachel e Cabral, mas tem tudo para ser mais um grande escritor brasileiro: talento, sensibilidade; conta com o apoio de uma excelente editora e, agora, o ambiente carioca em ebulição envolvendo integral e diretamente os morros cariocas, palco e manancial dos dramas e das histórias para novos trabalhos do autor.

Sob a influência da escrita do autor desatei a escrever este artigo. E assim, mano, acabei usando expressões por ele ditas pro bonde.

Valdemir Martins
12/03/2018.

27 de fev. de 2018

Donna Tartt sempre surpreende quem gosta de trama densa.


Fico muito cansado lendo Donna Tartt. Esgotado. Porém muito, muito feliz. Ela consegue enlaçar-nos em seu texto através de liames antecipados de situações, criando ansiedade e suspense. Num texto intensamente bem construído, ainda nos contempla oportunamente com uma boa história além de referências históricas ou técnicas do que está envolvido na trama. E nada melhor, pelo menos para mim, que o intenso prazer de uma boa leitura. Arrefece qualquer cansaço.

Longe de ser uma romancista de formação, como um Thomas Mann, a controversa Donna Tartt aproxima-se dele num viés moderno e contemporâneo, versão bem norte-americana. Nada de importante e crucial – seja em detalhe ou não - escapa à sua construção de escrita exuberante. Com uma dinâmica narrativa extremamente funcional, arquiteta romances monumentais como é o caso também do seu aclamado “O Pintassilgo” (The Goldfinch), de 2013, ganhador do Prêmio Pulitzer de Ficção em 2014 ( veja comentário  no blog Contracapa/LadoB http://contracapaladob.blogspot.com.br/2017/03/uma-monumental-montanha-russa.html ). E, não por acaso, muito críticos comparam seu estilo ao de Charles Dickens.

Neste “A História Secreta”, seu romance de estreia em 1992, o que poderia ser uma aborrecida história de um grupo de estudantes de grego numa gélida universidade em Vermont, no interior norte-americano, transforma-se numa maratona de situações não tão acadêmicas. Apesar de um pouco pesado no início, o romance segue num crescendo ritmado, com graves e agudos, passando por uma inusitada bacanal dionisíaca e um dramático complô assassino e subsequentes situações de suspense e desespero, como numa tragédia grega. A construção competente de personagens leva-nos até os complexos perfis psicológicos praticamente de todos os participantes da trama em primeiro e segundo níveis. E Tartt lida muito bem com seus egos, proporcionando que o leitor participe das situações exatamente por conhecer como pensam e agem suas principais criaturas. E para eles, simplórios ou sofisticados, não há limites para o consumo de álcool e até de drogas, exalando forte espírito de uísque por suas páginas.

Não sou editor, mas – como se já o fosse – eliminaria alguns trechos de discussões do grupo de alunos e de seu distinto professor sobre construção de textos em grego, Platão, Homero, Dionísio, a Ilíada e a Odisseia e por aí afora. Não que deixe de ser importante, mas inadequado e dispensável no seu excesso. Os leitores não são hermeneutas e Tartt poderia ser um pouco parcimoniosa na transmissão de seus conhecimentos da língua e da cultura grega antiga. Mas a construção da obra no todo é de grande qualidade literária e leva-nos, por exemplo, em determinado capítulo, a quase congelar no rigoroso inverno de Vermont ao lado de um dos protagonistas. Põe em ação, progressivamente, um perfeito personagem sádico arrivista, promotor de recorrentes diatribes, que incomoda propositalmente o leitor, fazendo-o vivenciar com intensidade e participar, assim, involuntariamente, da absorvente trama. A própria autora assim o descreve no texto: “Era pior quando ele escolhia para vítima uma pessoa específica. Sua sobrenatural perspicácia lhe dizia em qual nervo tocar, e em que momento exato, para ferir e provocar o máximo de indignação”.

E a obra termina como o derretimento da neve que tanto a caracteriza. Lenta e gradualmente, trazendo consigo, em seus gélidos resíduos, a obsessão de manter um segredo, vigiada pelo permanente fantasma da marcante personalidade do membro dominante da turma.

Valdemir Martins, em 26/02/2018.

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9 de fev. de 2018

O gigante não enterrado, mas esquecido.

Apesar de Ishiguro repudiar a classificação desta sua brilhante obra “O Gigante Enterrado” (The Buried Giant) como romance de fantasia, a mestra da fantasia e da ficção científica Ursula Le Guin a considerou uma fábula adulta (“Isso é fantasia, e sua recusa em colocar o rótulo é evidência de que o autor se sente superior a isso.”), com o que concordo. O atual Prêmio Nobel provavelmente está ponderando todas as implicações subliminares do livro, desconsiderando seu formato ou estilo. E ele, com certeza, como criador, está correto, pois somente ele sabe exatamente a fórmula engendrada para transmitir suas mensagens e dar o seu recado.

E deu. Comecemos com o fato de que o gigante enterrado não existe, limitando-se a uma citação inicial de que seria a causa de uma elevação no relevo; uma colina. E aí, as inúmeras montanhas da obra, galgadas com enorme esforço pelos personagens, tomam conta das paisagens, principalmente em seu terço final. Outra figura nessa simbologia do gigante é a memória, enterrada por uma dominante névoa emanada pelo bafo de uma dragoa – provavelmente simbolizando a religião – que causa a perda de memória nas pessoas.

Não li ainda outras obras do britânico Kazuo Ishiguro. Acredito que meu première foi acertado nesta magnífica obra onde são entrelaçados elementos históricos do século oito na Grã Bretanha com suas lendas e mitologia grega. A crendice domina a obra e predomina nos desígnios de vida dos seus protagonistas, dois simpáticos e cativantes idosos que só transmitem amor e bondade. Mesmo nas piores circunstâncias o casal tem sempre uma pergunta ou uma colocação que indica o lado bom das situações ou mostram um novo caminho. Ajudam e são ajudados. É sempre o bem compensando o bem.

Outra conjuntura simbólica é frisada pela ideia fixa dos anciães Axl e Beatrice em visitar o filho em sua aldeia que eles não veem há anos, tão saudoso quanto um defunto querido ou tão distante quanto a vela (ou a luz) que eles não podem ter. A não admissão da perda de algo que muito se ama ou se necessita marca obsessivamente não só a história, como também os principais personagens. O texto registra muitas perdas: históricas, materiais, pessoais e de memória. E as compensações são adquiridas de forma singela, quase natural, mostrando aqui o autor que não se deve extrapolar nas tentativas ou na recuperação de perdas importantes. Existem maneiras simples e leves de se apaziguar o coração e a alma.

Um velho guerreiro descendente do rei Arthur – e seu garboso cavalo -, um jovem competente e impetuoso guerreiro – e sua égua manca –, compreensivelmente antagonistas, convivem tolerantes por solidariedade aos velhos. E um rapazote marcado fisicamente pelo mal e vítima de perseguições, além de um bando de frades do bem e do mal completam as principais figuras dramáticas desta magnífica história.

Como declarou o próprio Ishiguro, esta não é sua principal obra – ele destaca sempre “Os Vestígios do Dia” -, mas com certeza é sua mais profunda reflexão escrita sobre o esquecimento, o respeito e o amor.

Por Valdemir Martins

Em 30 de janeiro de 2018.

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23 de jan. de 2018

Boneco de Neve entrando numa fria.

A narrativa incógnita dos atos e dos perfis dos suspeitos de ser um psicopata cruel levam a dúvidas, apostas e certezas do leitor sempre derrubadas pela competente prosa do norueguês Jo Nesbo.  Seu texto é de uma fluidez desconcertante, ideal para os apreciadores de romances policiais de suspense e de terror. Texto sucinto e objetivo com os mesmos efeitos só encontrei nos livros do best-seller norte americano James Patterson, tido como um dos autores de livros policiais mais vendidos no mundo.

Nesta história eletrizante denominada Boneco de Neve, Nesbo nos traz um suspense envolvente como numa corrida de revezamento onde um suspeito vai passando o bastão para o outro. Tudo para conseguir parar um serial killer cujas vítimas têm sempre uma ligação real ou sugestiva com bonecos de neve que chegam até a levar traumas às equipes policiais. E Nesbo consegue revelar o culpado contando, inesperadamente, toda história e trauma desse personagem faltando ainda cerca de quinze por cento de texto para terminar o livro. Mas a obra continua com toda uma tensa caçada prendendo o leitor até o fim.


O livro em si não tem lá um grande valor literário. É muito bem escrito; é envolvente; é todo muito bem embasado em dados científicos não suscitando dúvidas sobre alegações e situações citadas. Apenas as situações de ação finais são, na minha modesta percepção, um tanto forçadas. Mas aí você já está nas páginas finais e acaba aceitando o vale-tudo.

Por Valdemir Martins
Em 23/01/2018.

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21 de dez. de 2017

E assim vocês foram criados, neste imenso universo.



Eis-me aqui lendo novamente Dan Brown. Apenas pela curiosidade gerada por um comentário solto sobre o livro “Origem”. Neste, Langdom torna-se Superman apenas uma vez. E para quem for seu fã, é desestimulante. Mas, dessa figura pode-se esperar principalmente conhecimento. E nisso, o livro é pródigo.



Apesar da história medíocre, com espasmos de brilhante, valeu a leitura porque consegui aprender mais sobre informática, o revolucionário catalão Gaudì e sua obra e sobre o magnífico Museu Guggenheim, além de um pouco mais sobre física, química e biologia. E até um pouco sobre Barcelona.


Obra de baixa qualidade literária, sua leitura vale sobretudo para quem fizer sérias reflexões sobre o que está lendo, colocando os leitores em cheque com suas crenças e seus conhecimentos, fazendo-os pensar com rigor sobre o que nos espera no futuro. E, aqui sim, qualifico o livro como essencial. Ignoro outras obras populares que nos levem a refletir, desta forma,  sobre a origem de tudo – e principalmente da vida - fora da confortável aceitação das diversas imposições religiosas. Este é um livro essencialmente agnóstico, assim como seu autor, cujas demais obras também são balizadas pelo frequente constrangimento de/ou desvirtuar ou dar ênfase a idiotias relacionadas principalmente ao cristianismo e seus escritos.

Até onde a tecnologia é uma benesse? A partir de quando se torna prejudicial à humanidade? E as crendices e as religiões, podem ser avaliadas da mesma forma? Eis aqui o cerne do enredo conduzido em sua maior parte por um programa de computador humanizado e super desenvolvido, colocando o nosso conhecido Hal, do filme 2001, Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke) na sola do chinelo. Cada coisa no seu tempo, afinal estamos já em 2018.

Enfim, trata-se de um livro que tanto nos meios acadêmicos e científicos como nos religiosos deve tornar-se razão de eventuais comentários, com certeza grotescos. E para que o meu também não o fique, paro por aqui. Realmente não há mais o que falar sobre esta obra.

E para quem ficar (bem ou mal) impressionado com Origem, recomendo a leitura de A Questão Vital - Por que a vida é como é? , de Nick Lane, da Editora Rocco, uma instigante viagem que começa quatro bilhões de anos atrás, quando uma célula sofisticada surgiu de progenitores bacterianos, e mostra que toda forma de vida complexa na Terra – de seres humanos a árvores e abelhas – compartilha de um único ancestral comum. Um evento que nunca mais se repetiu na história.

Todavia, não posso deixar de recomendar também a leitura dos dois best sellers da atualidade, pesquisados e escritos pelo dedicado professor israelense Yuval Noah Harari: Sapiens: Uma breve história da Humanidade e Homo Deus: Uma breve história do amanhã.


Por Valdemir Martins
Em 18/12/2017.
Revisado em 18/01/2018.

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7 de dez. de 2017

Bovary: a madame que corre com os lobos


Desde o primórdio dos tempos a mulher costumava ser secundária. Nem Charles Darwin – ou mesmo Freud - conseguiria explicar satisfatoriamente esta distorção comportamental do ser humano, não fosse o fanatismo cristão. Muitas teorias foram desenvolvidas, inclusive religiosas e cientificas. Pode-se atribuir à predominância da força física do macho, à condição feminina mais delicada pela maternidade, aos instintos naturais ou ao que mais se aproximar à realidade de cada um. Mas, independentemente das condições de guerreiras, deusas, fadas, caçadoras, rainhas, atletas, bruxas, santas, educadoras, policiais ou executivas, ainda hoje o ranço da hegemonia machista se faz presente, e de forma inescrupulosa em sociedades patriarcais e de preeminência religiosa.

Atravessando o tempo, um livro essencial, em particular, registra, em meados do século XIX, de forma magistral a colocação da mulher no secundário. Falo de “Madame Bovary”, a magnífica obra prima de Gustave Flaubert, onde a bela protagonista Emma, afogada na sua condição de mulher, antes filha, depois esposa, mãe e, finalmente, amante, submete-se aos martírios lhe impostos pelos algozes da sociedade rural machista daquele tempo.

Emma foi uma mulher forte para a época. Sabia exatamente o que queria; era decidida, corajosa e fogosa. Mas, no lar, egoísta, nunca soube conquistar seu marido como homem e seu relacionamento com ele era apenas como mãe e dona de casa. Graças a um esposo acomodado – um médico provinciano medíocre -, retrógrado e com muito pejo, Emma precisou ser mulher fora de casa. Tudo isso, descrito de forma bastante realista por Flaubert, sem retoques românticos e já com alguns leves toques parnasianos. Com o surgimento do discurso indireto livre de Flaubert, onde a personagem ocupa, com certeza, o lugar do tradicional narrador na literatura, Emma passa à sua condição real de mulher. Uma mulher em busca de vida.

Uma mulher forte como protagonista e fraca como heroína. Uma mulher que correu atrás do que realmente queria. Ambiciosa, superou obstáculos sociais, familiares, religiosos e físicos. Na realidade, superou-se para ser mulher não importando quem estava a subjugar. E, por isso, pagou muito caro por seus desmandos em todos os sentidos.


Um dos clássicos mais famosos e polêmicos da literatura mundial, Madame Bovary traz o realismo para a literatura de forma definitiva, graças ao talento maiúsculo de Gustave Flaubert. Alcançou um nível de texto fabuloso para transformar o que poderia ser uma simples história piegas numa das principais obras da literatura mundial, um dos marcos do fim da escola romântica. Flaubert, por retratar fielmente uma época, não teve condições de suplantar os resquícios do ainda forte machismo então predominante. Mas soube superar arquétipos e colocar a madame a correr com todos os seus lobos, lembrando aqui a importante obra da psicanalista junguiana estadunidense Clarissa Pinkola Estés, intitulada “Mulheres que Correm com os Lobos”, dento da qual esta história de Emma também se ajustaria perfeitamente.

Por Valdemir Martins em 07/12/2017.

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17 de nov. de 2017

Coito interrompido


O mestre do terror consegue, mais uma vez, construir uma atmosfera opressiva de medo em sua obra It – A Coisa. As cenas dramáticas e assustadoras descritas por Stephen King na morte principalmente de crianças e nas descrições de enfrentamentos à Coisa proporcionam inquietantes situações de suspender o fôlego, de entesar os músculos e alterar a respiração. E a personagem aterradora do Mal é a alegre, debochada e extremamente mal cheirosa figura predominante de um palhaço, ora lobisomem, ora múmia, ora outra coisa, dependendo do garoto que se deparava com ela e seus antecedentes de figuras aterradoras.

Isso tudo num livro. Não quero aqui entrar no mérito do filme, mas no de um livro de 1.104 páginas; sem música tenebrosa e outros efeitos sonoros e visuais, é uma magistral consumação do medo, digna de um catedrático no assunto. E, apesar disso, King consegue apresentar-nos belíssimos sete protagonistas, crianças pré-adolescentes, que desenvolvem e expõe o real sentido da amizade, do amor, da confiança absoluta e, claro, do medo.


Some-se ainda a forma narrativa (objetiva e subjetiva), com a alternação da ordem temporal - usando a anisocronia; a construção dos protagonistas e dos demais personagens e antagonistas; os locais, as situações predominantemente tensas, os acontecimentos surpreendentes, as ocorrências que extrapolam os limites da violência, as apavorantes perseguições (e não são poucas), as reviravoltas, os dados históricos e geográficos, e até o lirismo de algumas situações, tudo banhado em muita insegurança, sangue e medo. Aqui, nada é previsível e tudo é inusitado. Quem gosta do gênero e do estilo de King não conseguirá largar o livro.

Todo esse crescente terror a buscar um ápice na apoteose da obra, presume-se, em seu quinto final, onde, inevitavelmente o Bem enfrentará o Mal de forma decisiva. E aí? O Bem vencerá o Mal? Ou tudo se converterá naquela babaquice de que algo sobre para um retorno do Mal numa próxima aventura? Aí não seria King.

Mas, por incrível que possa parecer, apesar da continuidade de todas as qualidades aterrorizantes descritas anteriormente até o fim da narrativa, King tropeça. E a sensação é a mesma de um coito interrompido por uma circunstância esdrúxula. Você começa a brochar e resta apenas continuar curtindo o texto, sempre muito bom do autor, até o final, por que o enredo foi comprometido.



O encontro apoteótico do Bem com o Mal decepciona. Era de se esperar algo mega-assustador. E o que se encontra é medíocre diante do brilhantismo das situações anteriores já descritas. King partiu para uma solução metafísica e foge totalmente do âmago da obra, saindo do clima aterrorizante para entrar numa atmosfera fantasiosa, com situações meramente forçadas, sem brilho, descrições cansativas e, o pior, sem o apreciado terror kinguiniano, sem a múmia, sem o lobisomem e sequer o esperado embate com o palhaço, ícone ilustrativo de todo o Mal da obra que se transforma numa ridícula e imensa aranha coadjuvada por uma milenar e filosófica tartaruga.



Enfim, é uma obra artística e como tal deve ser respeitada. E com toda minha reverência por Stephen King, acredito que esta crítica positiva é cabível, pois ele é o único responsável pelo que transmite ao leitor. E ninguém é perfeito. Nem eu, que me atrevi a escrever esta crítica.

Por Valdemir Martins
Novembro de 2017.

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19 de ago. de 2017

A história essencial da grande celebridade musical

Afinal, o que é música para você? Talvez aquele som agradável, rítmico, cantado ou não, que o (a) faz dançar, cantar e lhe traz alegria, tristeza, recordações; ou então outro som harmonioso, gerado por um, poucos ou muitos instrumentos e/ou vozes, com características e variações técnicas que mexem com seu âmago, seus sentimentos, transmitindo-lhe as mais diversas sensações, como alegria, tristeza, suspense, flutuação, sonhos, uma história.

Seja música popular ou erudita, ambas são incrivelmente benéficas para nós. Mas apesar de a música erudita – que nos faz bem à alma – não ter a preferência da maioria, tem popularmente o nome destacado de compositores como Bach, Beethoven, Chopin e Mozart pelo fato de algumas de suas obras serem mais utilizadas midiaticamente em eventos, filmes, televisão e até em comerciais. Algumas até caíram no gosto popular, seja por sua beleza, seja pela repetição. Mas, excetuando-se os estudiosos, poucos sabem quem é ou o que representa o genial e brilhante maestro Liszt para a música de verdade.

Seja como for, para ler “Rapsódia Húngara”, do escritor húngaro Zsolt Harsányi, completamente ignorado por aqui, você vai precisar conhecer um pouquinho sobre música e, principalmente, gostar dos assuntos música clássica e história. Trata-se de um livro de rara beleza estética, pois nos insere numa reflexão a respeito da beleza sensível e do fenômeno artístico, assim como um fato filosófico, gerado por consagrados compositores do século XIX, época de ouro da música erudita. E, para não parecer radical, confesso que o livro pode ser lido também pelos que gostam de biografias, romances de amor ou simplesmente de história, mesmo sem embasamento musical. Aliás, este foi o livro favorito de Anne Frank em seu cativeiro, fato que me levou a lê-lo.

A obra leva-nos à biografia de Franz Liszt. E, como Liszt, seu autor era húngaro e, apesar de desconhecido no presente, criou um livro muito bem escrito, com grande valor literário e histórico. Harsányi ressuscita o grande músico, pintando-o com carinhosa naturalidade, fazendo-o viver com todas as suas humanas virtudes e fraquezas. Afinal Lizt foi um dos mais importantes compositores e singular virtuose do piano de todos os tempos. A vida de Liszt é um verdadeiro romance e Zsolt soube recriá-lo em toda sua pulsante realidade, como um psicólogo de arguta penetração.

Nascido em Raiding no interior da Hungria, em 1811, aos nove anos Liszt já dava seu primeiro concerto e tinha catorze apenas quando escreveu para a ópera um trabalho em um ato, “Dom Sancho ou O Castelo do Amor”.  Aos 11 anos, num concorrido concerto em Viena, foi aplaudido e cumprimentado pessoalmente pelo já veterano Beethoven. Católico fervoroso, cresceu, estudou, enriqueceu e evoluiu como artista e líder viajando toda por toda Europa. Como pouco viveu na Hungria, não sabia sua língua natal. Sua base de vida maior foi Paris, onde fez grande amizade com George Sand, Victor Hugo, Lamartine e, sobretudo, com os inseparáveis parceiros Chopin e Berlioz. Foi admirado e reverenciado por inúmeros músicos, pela nobreza européia e até por monarcas de diversas nações.
Em 1847 Liszt, convidado pelos soberanos alemães, aceitou o cargo de mestre de capela em Weimar, cidade de Goethe e de Schiller. Lá criou o poema sinfônico e escreveu considerável número de obras, entre as quais seus 14 poemas sinfônicos. Empregou toda a sua autoridade para tornar conhecidas as obras de Wagner, seu idólatra, cujo “Lohengrin” fez representar pela primeira vez. Wagner o venerava e Liszt apostava nele como um revolucionário da música, promovendo, apoiando e prestigiando-o sempre que possível.

Dentre sua principais obras estão 19 rapsódias húngaras, sendo que a Rapsódia nº 2 ( https://www.youtube.com/watch?v=goeOUTRy2es ), a mais tocada delas, tornou-se muito popular até como trilha sonora de desenhos animados. De suas magníficas peças para piano destaca-se a peça nº 3, conhecida como “Liebestraum”, a qual faz parte do repertório de aclamados pianistas de todos os tempos ( https://www.youtube.com/watch?v=KpOtuoHL45Y ).

Era um cobiçado homem bonito e não resistia a uma bela mulher. Casou-se não oficialmente com três delas, lindas e de forte personalidade. A música sempre o separou de seus filhos. E, Cósima, uma de suas filhas, casou-se atribuladamente com Wagner, dando-lhe, além dos netos, inúmeros aborrecimentos. Passou seus últimos anos entre Roma, Weimar e Budapeste, festejado como nunca o fora nenhum outro músico. Morreu em  Bayreuth, na Baviera, aos 74anos.

Não há, infelizmente, novas edições para este valioso livro. Apenas as editoras Globo (RS 1944) e Melhoramentos (Coleção Caminhos da Vida, volume 28, de 1954). E por incrível que pareça, vários exemplares podem ser encontrados no site Estante Virtual, a partir de – acredite – R$ 4,00. Se você gosta de música e de história, não perca esta chance.

Valdemir Martins

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26 de abr. de 2017

Um filme da esquerda


A criança não acompanha o pai. Fica, ajoelhada, fazendo carinho na terra que acaba de cobrir o corpo da sua mãe. Esta é uma linda cena e uma das várias emocionantes deste grande filme “Colheita Amarga” que deveria ser assistido por todos os jovens e, especialmente, por todos os simpatizantes das correntes chamadas de esquerda, seja socialista ou comunista.

A Ucrânia historicamente sempre foi um competente estado agrícola. Com o assassinato do Czar pelos bolcheviques em fevereiro de 1917, no início da revolução comunista na Rússia, os ucranianos respiraram alguns anos de independência fictícia. A partir de 1920, para atender a necessidade de maiores suprimentos de alimentos e para financiar a industrialização, Stálin estabeleceu um programa de coletivização da agricultura pelo qual o Estado combinava as terras e rebanhos dos camponeses em fazendas coletivas, principalmente visando a força agrícola da Ucrânia. O processo era garantido pela atuação dos militares e da polícia secreta: os que resistiam eram presos e deportados. Ou sumariamente executados in loco. Os camponeses viam-se obrigados a lidar com os efeitos devastadores da coletivização sobre a produtividade agrícola e as exigências de quotas de produção ampliadas. Tendo em vista que os integrantes das fazendas coletivas não estavam autorizados a receber grãos até completaram as suas impossíveis quotas de produção, a fome tornou-se generalizada. Este processo histórico, conhecido como Holodomor, levou milhões de pessoas a morrer de fome e muitas enterradas ainda vivas, paralisadas pela inanição, em grandes valas comuns ou amontoadas ao relento.
O quase desconhecido Holodomor matou de sete a dez milhões de ucranianos entre 1933 e 1934, bem mais que os seis milhões do super divulgado Holocausto judeu pelos nazistas e dos demais conhecidos genocídios por Idi Amin Dada, Pol Pot, Mao Tsé Tung e dos paraguaios pelos brasileiros na Guerra do Paraguai.

Colheita Amarga é uma história de amor e fé durante esse período. O amor profundo, de infância, entre dois jovens; o amor familiar e o fraterno da coletividade. Um filme canadense rodado na própria Ucrânia, com uma fotografia e figurinos impecáveis, e com as interpretações marcantes de Max Irons, Samantha Barks e do veterano Terence Stamp. A competentíssima direção é do canadense, nascido alemão, George Mendeluk, de descendência ucraniana. A ideia do filme, além de homenagear e honrar as vítimas dessa carnificina, é também mostrar como Stalin massacrou uma população estrangeira inteira em nome do seu poder e do comunismo, fazendo-o de uma forma extremamente cruel.

Não consegui descobrir se o filme entrou no circuito nacional, uma vez que foi lançado ainda em fevereiro deste ano e não há registros na internet. Mas quem quiser assisti-lo, com legendas em português e imagem HD pode entrar no link https://www.megafilmesserieshd.com/colheita-amarga/  * e ver até mesmo no computador ou via Bluetooth na TV.

Em Curitiba há o Memorial Ucraniano em homenagem à cultura ucraniana. Lá também tem uma lápide que é uma réplica da que existe em Kiev, em homenagem às vítimas do Holodomor.

Em tempos de bolivarianismo e lulapetismo, movimentos e tendências políticas inspiradas na revolução socialista bolchevique de Vladmir Lênin, tornada totalitária por Joseph Stálin, será sempre oportuno conhecer um pouco mais da realidade histórica. Não quero aqui provocar discussões doutrinárias. A História não mente. Ela está escrita, documentada e testemunhada. Só não entende quem realmente for obtuso, insensível ou mal-intencionado.




Por Valdemir Martins

26 de abril de 2017.

* Para assistir o filme, tecle Ctrl, segure e clique no link.

11 de mar. de 2017

O Pintassilgo: uma monumental montanha-russa

Acabei de ler um livro monumental. Digam o que quiserem meia dúzia de críticos que não conseguem escrever o próprio nome e precisam depreciar para pretensamente serem apreciados.

A obra-prima ‘O Pintassilgo’*, da norte americana Donna Tartt, é uma raridade literária moderna, estando a autora, para a literatura atual, como George Gershwin está para a música clássica contemporânea. A rigor, um clássico moderno. E consagrado por colegas escritores e pela nata da crítica literária internacional.

Como ‘O Pintassilgo’, há livros que nos fazem imergir em suas linhas e entrelinhas, impactando-nos imensamente com a criação de certa dependência da leitura enquanto não terminada. Comigo aconteceu com ‘O Vermelho e o Negro’, de Stendhal, ‘Servidão Humana’, de W. Somerset Maugham, ‘Crime e Castigo’, de Dostoiévski, ‘Os Pilares da Terra’, de Ken Follet, ‘A Catedral do Mar’, de Ildefonso Falcones, ‘Ana-não’, de Agostin Gomes Arcos, entre outros.

Mas o livro de Tartt é insuperável no seu envolvimento emocional, levando-nos, como sempre acontece com as obras-primas, a escrever mentalmente para o autor o que virá a seguir, segundo gostaríamos. E somos sempre surpreendidos por viradas espetaculares de situações, por refluxos de emoções e pela magistral criatividade aliada ao conhecimento técnico do que está sendo abordado. Em “O Pintassilgo” o leitor faz viagens incríveis pelo mundo da pintura, da restauração e do mobiliário clássico, das drogas e do álcool, da alta e baixa Nova Iorque, do desmoronamento de famílias, do amor e das amizades sinceras. Tudo na contemporaneidade de e-mails e celulares, banhado pelo medo, solidão, traição, profundo amor inconsciente, confiança mútua e separações. Uma leitura como num filme de suspense – por suas impecáveis descrições -, onde o leitor navega por caminhos tortuosos e retos, altos e baixos, numa permanente viagem de montanha russa.

Tudo começa quando o garoto Theo Decker, de treze anos, sobrevive milagrosamente a um acidente que mata sua mãe. Abandonado pelo pai, Theo é adotado pela família rica de um amigo. Estranho em seu novo lar na Park Avenue (NY), perseguido por colegas de escola com quem não consegue se comunicar e, acima de tudo, atormentado pela ausência da mãe, ele se apega a uma pequena, misteriosa e cativante pintura que acabará por arrastá-lo, mais tarde, ao submundo da arte. Antes disso, seu pai reaparece, mudando radicalmente sua vida ao levá-lo para Las Vegas, onde Theo conhece um menino russo que se torna seu amigo íntimo e será responsável por virar a vida do protagonista de cabeça para baixo. Já adulto, Theo circula com desenvoltura entre os salões nobres e o empoeirado labirinto da loja de antiguidades de um “amigo tutor” onde vem a trabalhar. Apaixonado e em transe, ele será lançado ao centro de uma perigosa conspiração internacional.


Em ‘O pintassilgo', Donna Tartt não se limita a contar esta história com grande qualidade literária, como por exemplo, a descrição de uma chuva torrencial ambientando uma cena no começo da obra que faz o leitor sentir-se inteiramente molhado. Mas, ela também nos leva a incríveis reflexões sobre a vida, a sociedade, as trocas e perdas, o amor e a família. Enfim, “é uma hipnotizante história de perda, obsessão e sobrevivência; um triunfo da prosa contemporânea que explora com rara sensibilidade as cruéis maquinações do destino.


*‘O Pintassilgo’ (The Goldfinch) é o nome de uma obra rara do pintor holandês Carel Fabritius (1654), discípulo de Rembrandt e mestre de Vermeer.

**O livro foi vencedor do Prêmio Pulitzer de 2014, categoria Ficção.

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13 de dez. de 2016

A Melhor Defesa de Deus.

Pare de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a Minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti. 


Baruch Spinoza, ou Bento Espinosa em sua língua mãe, fundador do racionalismo e da moderna filosofia, sempre foi um contestador das religiões. Não por ser ateu. Ele sempre acreditou no Criador, mas de uma forma natural, pura, sem vícios humanísticos como a prevalente nas igrejas, templos e sinagogas. Filho de família judaica portuguesa, nascido e criado em Amsterdã, favorito do rabino por sua inteligência, desde cedo começou a contestar as cerimônias da sinagoga e a dar interpretações corretas, simples e racionais aos textos religiosos. Excomungado do judaísmo holandês, viveu como artesão, professor livre de teologia e como filósofo. Por seu racionalismo, fundou o criticismo bíblico moderno. Sua definição de Deus – abaixo reproduzida - deixa bem claro o posicionamento de sua escola. O difícil, sem dúvida, é contestá-lo sem esbarrar na religiosidade e, portanto, no sentimentalismo religioso e no interpretativo fantasioso.

Esta introdução faz-se imperativa para abordarmos mais uma obra excepcional de Irvin D. Yalom intitulada “O Enigma de Espinosa”. Este escritor judeu americano, psicoterapeuta e fascinado estudioso de filosofia que escolheu estudar medicina por se sentir mais perto de Dostoievsky ou de Tolstoi, não poderia deixar de ser, assim, um grande escritor.

De fato, nesta obra adentramos nas vidas de duas personagens centrais – e reais -, por um lado temos Bento Espinosa – como dito acima - e por outro, Alfred Rosenberg, um forte ideólogo e criador de algumas das principais crenças do Nazismo, com uma estranha fascinação por Espinosa. Ambos, com o liame do grande poeta Goethe como um enigma. Os capítulos vão alternando entre as vidas dos dois protagonistas e, ao explorar a de Spinoza, nos é permitido penetrar em seus pensamentos e ideias, como também mergulhar numa época conturbada, com a inquisição perseguindo os judeus por toda a Europa, mas especialmente pelos governos ibéricos e luteranos alemães. Já na abordagem da vida de Rosenberg, é explorada a sua personalidade e pensamentos, a sua interação com Hitler, além de episódios decisivos para a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha. A forma que o autor cria diálogos ficcionais entre as personagens (que retratam pessoas reais) é credível, a narrativa explora diversos tópicos, onde podemos encontrar filosofia, psicologia, teologia, historia e política, além de termos apresentada uma dualidade de conceitos, pelo meio da narrativa, e ainda nos deparamos com fatos históricos passados no século XVII e no século XX.

Desta forma, Yalom explora a mente de dois homens separados por trezentos anos, dois homens que mudaram o rumo do mundo, as vidas interiores de Espinosa, o virtuoso filósofo secular, e de Rosenberg, o ímpio assassino de massas. Yalom tem um talento único para personificar de forma inesquecível os maiores pensadores da História. Deixa-nos fascinados e os seus livros marcam-nos para sempre, como são o caso dos best-sellers “Quando Nietzsche Chorou” e “A Cura de Schopenhauer”.


O Deus cósmico e universal de Espinosa

Em seu “Livro I da Ética e no Tratado sobre a Religião e o Estado”, Espinosa delineia a sua concepção de um Deus despersonalizado e geométrico, contrária a todas as formas de se idealizar Deus como uma espécie de entidade, oculta e transcendente, que age conforme os seus desígnios e a sua vontade suprema. Vejamos:
“Pare de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que eu fiz para ti.
Pare de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde eu vivo e aí expresso meu amor por ti.
Pare de me culpar da tua vida miserável: eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau. O sexo é um presente que eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.
Pare de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho..., não me encontrarás em nenhum livro!
Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho? Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor. Pare de me pedir perdão. Não há nada a perdoar.
Se eu te fiz, eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se eu sou quem te fez?
Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?
Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti.
Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia.
Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas.
Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro. Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.
Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho. Vive como se não o houvesse, como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei.
E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não. Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste... Do que mais gostaste? O que aprendeste?
Pare de crer em mim - crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar.
Pare de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja? Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que agradeçam. Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. Sentes-te olhado, surpreendido?... Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.
Pare de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas.
Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações? Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro... Aí é que estou batendo dentro de ti.

Baruch de Espinosa (1632-1677)

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