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6 de mai. de 2020

Como um bom vinho no primeiro gole *****


Como um bom vinho no primeiro gole, ler Um Cavalheiro em Moscou, do novelista norte-americano Amor Towles, pode enganosamente parecer-nos, em princípio, um pouco adstringente. Seu primeiro quinto desenrola-se vagaroso e a seguir começa a pegar o ponto, como se diria na culinária. Mas o vigoroso esplendor que se segue num crescente marca esta obra como uma das mais importantes da literatura deste começo do século XXI.


Towles escreve como um verdadeiro cavalheiro literário, com elegância, idéias e colocações refinadas, farta demonstração cultural, dramaticidade contida, fina ironia e riqueza de situações e personagens marcantes e inesquecíveis. Mas, para se ler este romance literário é importante que se tenha alguma noção da história do começo do século passado, em especial na Rússia; de gastronomia e enologia clássicas, etiqueta à mesa, moda, mobiliário, cinema, literatura e música da época.

Entrada e recepção do hotel
Hotel Metropol Moscow
O palco desta deslumbrante história é o lendário Hotel Metropol, uma joia de cinco andares da art-nouveau em Moscou, local onde desfilaram as maiores celebridades e personalidades do século 20. Situado próximo à Praça Vermelha, em frente ao glamouroso Teatro Bolshoi, foi construído por um industrial e mecenas na virada do século passado. Nele o leitor passa a conviver com o protagonista, o incomparável Conde Aleksandr Ilitch Rostov, condenado a lá viver em prisão domiciliar pelos burocratas do então regime revolucionário comunista.

Lobby do hotel
O flagrante abismo entre a cultura aristocrática russa czariana e os rudes e rudimentares atos e costumes bolcheviques é por ele explorado de forma a valorizar cada lado na sua forma superlativa. A fascinante Moscou em transição mostra que seus monumentos e cultos criados por gestores, artistas e agentes culturais refinados são tão valorosos que nem a brutalidade camponesa e inculta de seus novos dominantes consegue destruí-la.

Elevadores e escadaria
A suite da Mme. Salgueiro
Contracenam com o Conde, de modo fluente e dinâmico, duas intrigantes e inteligentíssimas meninas, escritores, diplomatas, músicos, jornalistas, os dedicados e fiéis funcionários do Metropol, atrizes e bailarinas, camaradas do novo regime e um gato zarolho.

Restaurante Piazza
Num rico colóquio entre o protagonista e um simples operário em cima de um telhado mereceria um quadro emoldurado por nobre material, se numa página coubesse.  Nele, sem duvida, consegue-se saborear um delicioso pão preto com mel e café fresco. Nada escapa à intensa criatividade de Towles, desde os nativos cães borzóis, às quarenta variedades de maçãs soviéticas e a delicadeza das flores dos Lilases das praças moscovitas. Por outro lado, não deixa de protestar, nas entrelinhas, contra o Prêmio Pulitzer de Jornalismo atribuído ao americano Walter Duranty (NY Times), que relatava “apenas rumores” de fome na URSS enquanto 32 milhões de pessoas morriam de inanição, massacradas pelas ações de coletivização do campo por Stálin, na Grande Fome de 1932/33, principalmente na Ucrânia.

Hall do Restaurante Boyarskiy
Towles atravessa o tempo revelando o isolamento e a estagnação cultural, tecnológica básica e de costumes da União Soviética, chegando a uma brilhante conversa de cama onde põe em cheque também a evolução humana uma vez que o povo soviético, quase na década de 1960, desconhece o aspirador de pó e a máquina de lavar roupas enquanto seu governo apenas reinventa o comum, produz armas modernas e uma usina atômica. Demonstra, ainda, que de nada serve uma vasta cultura pessoal se o individuo não acompanha o novo, seja nas artes, na ciência, na vida ou na política. Além de surpreendentemente nos ensinar o valor universal da companhia de uma criança: “...lembre-se que ao contrário dos adultos, as crianças querem ser felizes. Por isso, ainda têm a capacidade de tirar grande prazer das coisas mais simples.”

Como um autêntico romance moderno, Um Cavalheiro em Moscou tem uma construção dinâmica, nem parecendo um romance de formação, graças ao uso inteligente e agradável de flash backs muito bem encaixados que vão intermitentemente, sem alterar o ritmo da obra, apresentando a vida do protagonista. Diferentemente de livros tradicionais e até consagrados, Towles amarra-nos à sua narrativa sem floreios ou volteios, fazendo com que a leitura evolua prazerosamente, sem os aborrecimentos de descrições cansativas e detalhes desnecessários ou sensacionalistas.

Amor Towles
O bostoniano Towles torna-se, assim, uma agradável surpresa literária contemporânea. Este seu livro ficou mais de quarenta semanas como mais vendido nos EUA e foi consagrado o livro do ano (2016) pela crítica ianque. Recomendo sua leitura, com persistência na parte inicial como quem estivesse lendo a obra de um consagrado escritor russo. Logo a seguir, o leitor terá que acompanhar o dinâmico texto e frenética história de um protagonista russo escrito por um talentoso e promissor escritor americano.

Valdemir Martins
09.04.2020

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6 de abr. de 2020

Primo Levi sempre nos limites da morte. ***


O escritor italiano Primo Levi inicia o que é considerado um dos mais importantes trabalhos memorialísticos do século XX às vésperas da sua morte. Só que, para seu gaudio – e de seus  milhões de leitores – no livro É Isto um Homem? (Se questo è um uomo) seu destino real é inúmeras vezes adiado, fazendo com que a obra desenrole-se permanentemente nos limites da morte.

Tive a oportunidade de ler trabalhos brilhantes sobre os holocaustos judeu e ucraniano, onde esses genocídios aniquilaram em onze anos, seis milhões de judeus por ordens de Hitler e, em apenas dois anos - no chamado Holodomor -, doze milhões de ucranianos famélicos por ordem de Stálin. Os judeus, arrancados de seus lares e jogados em guetos, campos de concentração e extermínio; os ucranianos, impiedosamente massacrados em seus próprios lares e quintais.

Stálin: tão cruel quanto Hitler
Obras como Treblinka (Jean-François Steiner), Mila 18 (Leon Uris), A lista de Schindler: A verdadeira história (Mietek Pemper), A Menina que Roubava Livros (Markus Zusak), As Mulheres do Nazismo (Wendy Lower), A Noite (Elie Wiesel), A Fome Vermelha (Anne Applebaum), muito bem descrevem esses tétricos episódios da história humana. Mas poucos deles são tão memoriais e sensíveis quanto o texto brilhante de Levi.

Auschwitz
Sua escrita é sentimental, apreende as nuances do bem e do mal demandadas pelas mentes cativas e as dominantes. Descobre e revela poesia em meio ao caos, à bestialidade e ao aniquilamento. Sua escrita, assim como ele, sobrevive, resfolega, brota em arranjos plenos de humanidade em meio à crueldade. Supera o simples e engaja-se liricamente no intrincado meandro de mentes egoístas, poderosas, frígidas e violentas.

Primo Levi
Ler "É Isto um Homem?" é ingressar no sentimento objetivo e claro do autor: “Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos.”

Uma obra para se aperfeiçoar a história e o conhecimento sobre o humano, onde nada é bíblico nem fábula. Esta é a história real que todo ser humano, apesar da evolução, tem que conhecer e admitir em sua idade adulta, já que é inconcebível conhecê-la na idade escolar. Afinal, é um aprendizado sobre a que extremos o homem pode chegar no tratamento a seu semelhante.

Valdemir Martins
17/02/2020.

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29 de jan. de 2020

O Monumento Literário de Delia Owens. *****

Se você definir o livro Um Lugar Bem Longe Daqui, da norte-americana Delia Owens, como sua próxima leitura, escolheu uma belíssima obra. Na lista dos mais vendidos há dois anos no ranking ianque, com mais de 3,5 milhões de exemplares vendidos somente por lá, este romance de formação* narra a jornada sofrida e solitária de uma menina de seis anos em busca de sobrevivência num lugar inóspito.

Um livro surpreendente escrito por uma cientista especializada, mas de uma sensibilidade, uma criatividade e uma inteligência fenomenais, com o requinte de entremear poesias intrínsecas ao contexto da obra. Uma narrativa dolorosamente bonita com texto suntuoso nos relatos plenos de solidão, de amor, de solidariedade e de convivência com a poesia silente da natureza. Um verdadeiro manifesto adverso ao preconceito, à destruição da natureza, à usurpação, à irresponsabilidade e ao egoísmo.

Owens conta-nos uma história de crescimento com muitas nuances de profunda emoção. O flerte pré-adolescente, o amor platônico, o despertar e a calada necessidade sexual estão presentes nestas surpreendentes narrativas que leva-nos à convivência inescapável com a natureza. As aventuras permeiam o texto também com bastante emoção. A narrativa da luta da menina contra as violentas correntes marítimas é de tirar o fôlego. E suas descrições bucólicas e encantadoras de praias, brejos, rios e lagoas; bandos de lindas aves e inúmeros e delicados insetos são os fios dourados entremeados num texto brilhantemente criativo.

Foto Editora Intrínseca

Como se não bastasse esse contexto, a criativa Owens escreve em paralelo o relato de um estranho crime, despertando no leitor, de forma crescente, uma ansiedade e suspense por seu desfecho, uma vez que envolve importantes personagens da trama. O final é prá lá de surpreendente, como se toda a obra fosse despejada, de forma arrebatadora, num único funil apoteótico.

Esta história da Menina do Brejo - como é chamada a protagonista - é sem dúvida uma das melhores e mais completas estreias literárias contemporâneas. Nesta sua obra pioneira no romance, Owens demonstra um talento literário que me leva a complaná-la à sua já consagrada compatriota Donna Tartt (O Pintassilgo), ao falecido catalão Agustín Goméz Arcos (Ana-não) e ao Nobel britânico Kazuo Ishiguro, por exemplo. Com setenta anos, dedicou dez a este livro que se tornou um fenômeno editorial nos Estados Unidos, dominando os tops por mais de quarenta semanas. Com certeza, pela riqueza de seu texto e pelas nuances líricas, esta não é uma obra para se assimilar via audiolivro, esta aberração contraditória do mercado livreiro.

Delia Owens
Delia Owens é coautora de três livros de não ficção, sucessos de vendas internacionalmente reconhecidos, sobre a sua experiência como cientista da vida selvagem na África. Venceu o John Burroughs Award para artigos sobre Natureza. Foi publicada em várias revistas de referência na área da ecologia e da vida selvagem.

A obra teve os direitos de adaptação cinematográfica negociados e o filme será produzido pela Fox 2000. Para quem quiser ver a sinopse, sempre com o risco de spoilers, pode acessar informações sobre o livro no site da editora Intrínseca: https://www.intrinseca.com.br/livro/906/ .

Em nosso país, onde os quinze livros mais vendidos no último ano não registram sequer uma obra de cunho literário, os números norte americanos referentes a Um Lugar Bem Longe Daqui nos faz refletir seriamente sobre a nossa precária evolução cultural, hoje mais preocupada, sem necessidade, com os geeks, o racismo, o feminismo e a homofobia, além da chatice das discussões inócuas sobre qualidades políticas da direita ou da esquerda.

Valdemir Martins
Em 26/01/2020

* obra literária em que é exposto, de forma pormenorizada, o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado adulto.

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15 de dez. de 2019

O intimista e surpreendente Sobre os Ossos dos Mortos ****


Para nós brasileiros que praticamente não conhecíamos a escritora polonesa Olga Tokarczuk, recém-laureada com o Nobel de Literatura e o Man Booker International Prize, lê-la converte-se numa agradabilíssima surpresa. É uma brilhante contadora de histórias com simplicidade sofisticada.

Cartaz do filme holandês
Em 2014 foi editado no Brasil, em uma tiragem limitada pela Tinta Negra, seu romance fragmentário Os Vagantes, que se encontra esgotado. Agora, em função das premiações, a Editora Todavia lançou “Sobre os Ossos dos Mortos”, obra selecionada pelo jornal britânico The Guardian como um dos 100 melhores livros do século 21; foi adaptado para o cinema no filme holandês Rastros e levou o Urso de Prata no Festival de Berlim de 2017.

A obra, muito bem estruturada e com uma escrita moderna, inovadora, é um diferenciado suspense, não convencional, cuja história se passa na atualidade numa remota e gélida vila polonesa. Sua protagonista, Janina, uma ex-engenheira e professora de inglês aposentada, costuma se dedicar ao estudo da astrologia, à poesia do inglês William Blake, à manutenção de casas de veraneio e a sabotar armadilhas visando impedir a matança de animais silvestres.

Ela, em primeira pessoa, é a narradora do enredo, misturando thriller e humor, numa reflexão permanente sobre a condição humana e a natureza. O leitor (a) viaja com a cabeça de Janina, uma vez que ela descreve ricamente os fatos e simultaneamente faz reflexões filosóficas e divagações astrológicas sobre os fatos narrados, seus conviventes, suas moléstias e sua solidão: “A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo – envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares – os sentidos – sucumbem à apoptose. A apoptose é a morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria.”.

Janina é uma excêntrica senhora ateia que subverte o corriqueiro na vida das pessoas. Até suas convicções sobre a morte chegam a beirar a comicidade. Aliás, o cômico, é algo que espreita muitas das situações vividas por ela. Baseado em suas narrativas, o livro torna-se intimista, com devaneios sobre tudo, até sobre o que as pessoas pensam quando estão em silêncio na igreja.

Olga Tokarczuk
Perturbador, algo macabro, abordando temas como o mundo natural e a civilização, este livro é um romance instigante sobre temas como loucura, injustiça contra indivíduos marginalizados e direitos dos animais, causa da qual Olga é ativista.

O livro extrapola a história de crimes e investigações convencionais, sua espinha dorsal, para se tornar um belo suspense existencial. Com um final surpreendente, tem tudo para ser uma bela fantasia, mas é de um realismo irretorquível.

Valdemir Martins
em 14/12/2019.

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19 de nov. de 2019

O Instituto, de Stephen King: um prodígio em criatividade e talento no suspense. ****


O norte americano Stephen King é um monstro. Insuperável em seu campo literário na atualidade, assim como o foram Shakespeare, Dostoievski, Agatha Christie, Rimbaud, Faulkner e Saramago, entre outros, nos seus.

Sua mais recente obra publicada no Brasil, O Instituto, é o ápice dessa afirmativa. O mestre aqui é bastante parcimonioso na fantasia, mas prodigaliza criatividade e talento no suspense. A leitura desse livro torna-se um grude, sendo muito difícil interromper sua leitura e tirá-lo da memória enquanto fazemos outras coisas.

Aqui ele desenvolve um protagonista incrível no qual todos apostam suas fichas. E perdem. O jogo é brutal e outro protagonista e diversos personagens fortes começam a participar da trama e a proporcionar ondas de suspense, revolta e emoção nas 544 páginas da obra.
 
Este seu 61º livro envolve mais uma vez diversas crianças e, neste caso, com dotes sobrenaturais, raptadas de seus lares e levadas para um local onde serão estudadas por uma organização inescrupulosa e King mais uma vez transforma crianças em heróis da sua história. Com sua maestria, ele nos envolve num mundo de suspense, ansiedade e horror onde o bem às vezes é vencido pelo mal.

Alguns personagens vão marcar-nos com suas lições importantes como o valor da amizade, da sinceridade, da coragem e da não submissão às injustiças, enquanto a equipe dessa organização é sinistra e não tem limites aos maltratos, à falsidade, dando oportunidade excepcional para o autor explorar as mentes e comportamentos de líderes e comandados sociopatas.

King mais uma vez traz um alerta para seu trauma de catástrofes globais, sempre potencialmente comandadas por mentes humanas distrofiadas. A convivência aparentemente pacífica entre as distrofias, sociopatias e os defensores do bem estarão sempre se contrabalançando. Fica aí mais um clamor de alerta do genial Stephen King.

Valdemir Martins
01/11/2019.

23 de out. de 2019

Um inesperado e exótico romance glacial ****


Desde sempre os Homens aprenderam a sobreviver e acabaram por dominar a inóspita e cruel região do círculo polar ártico. Civilizações remotíssimas por lá estiveram a partir de 5 mil a.C., seguidas por vikings e mais recentemente, a partir do século XIX, com modernas embarcações e até balões, o Homem Branco frustra-se e não sobrevive às rigorosas intempéries e impensáveis condições de sobrevivência glacial. Foram inúmeras as expedições fracassadas, com muitas tragédias, enfrentadas por eles que, por mais que se organizassem, não tinham um mínimo de preparo e de conhecimento do que realmente é viver à média de 70 graus negativos no inverno e a dias e noites que duram até seis meses.

Cena do filme
Somente os Homens - como se intitulam os Esquimós - conseguiram essa proeza, lá vivendo desde tempos imemoriais e desenvolvendo uma cultura própria, inacreditável, inaceitável e rigorosamente difícil para a civilização moderna. A partir de fatos reais, o ítalo-americano Hans Ruesch escreveu um dos mais estranhos e fascinantes romances de nossos tempos: Sangue sobre a Neve (Top of the World), já imortalizado também em filme por Anthony Quinn e Peter O’Toole em 1960.

Primeiro contato com brancos
Traduzido para mais de vinte idiomas e com um grande número de edições, esta obra alcançou sucesso e popularidade. É um romance emocionante que não só tem o apelo e charme do exótico. Através de suas páginas, vivemos as aventuras e desventuras de uma pequena família de esquimós naquelas extensões intermináveis ​​de gelo e na longa noite glacial.

Os costumes, os mitos, a atmosfera íntima do iglu, as corridas vertiginosas nos trenós, a caça, enfim, toda a vida familiar dessas pessoas simples e cordiais está neste romance emocionante e doloroso.

Iglu típico da região polar
Esta realista história de Ernenek, a formação de sua família, as agruras por que passam, o difícil relacionamento com os brancos que invadem seus territórios e desrespeitam sua cultura, e suas tradições nada costumeiras para nós, torna-se uma dramática e reveladora novela. Numa linguagem objetiva, célere e contundente, Ruesch escancara a degradação de uma cultura pura, enraizada nas mais dramáticas e primitivas técnicas de sobrevivência, nas quais qualquer ser humano da atualidade jamais conseguiria viver.

Meio de transporte único
O povo esquimó, na época de ambientação do livro, tem características distintas do homem branco. Eram analfabetos, com valores, crendices, técnicas, conhecimentos, hábitos diferenciados das demais civilizações, com maneiras caracterizadas de se relacionarem com o mundo e com a sua comunidade. Por isso, a maioria das passagens da obra é surpreendente, trazendo muito suspense, escatologia, situações tristes e outras vezes cômicas, mas sempre mantendo aquilo que deveria ser um mantra na sociedade moderna: alegria, ingenuidade, honestidade e solidariedade.

Sabe-se que os esquimós enxergam mais de 30 tipos de branco (cor), ele não nasce com essa capacidade, ele a adquire, ele a aprende. Isto significa que não é necessário ser filho biológico de um Esquimó para conseguir enxergar os 30 tipos, basta que desde criança seja ensinado por um adulto.

Vila esquimós e brancos
Mas, como habitual, o Homem Branco chega para deteriorar tudo, com suas armas, suas bebidas, seus costumes e, nefandamente, com seu credo. Como acontece na atualidade, os pregadores religiosos confundem, aterrorizam, ameaçam e exploram os ignorantes, os puros e os ingênuos. “As regras do Homem Branco, que ao invés de trazer algo de útil, que sirva para alguma coisa, e que esteja em falta, como mulheres, os homens trouxeram suas leis, que para os Esquimós não servem para nada, apenas para gerar discórdia e conflito”, disse Ernenek. É o que retrata este dinâmico romance.

Hans Ruesch
Com certeza, por causa desses líderes religiosos e da ganância da civilização, hoje os esquimós estão praticamente extintos ou radicalmente modificados.

No entanto, este é um livro para ser guardado para o entretenimento, a cultura e principalmente como guia de sobrevivência do Homem Branco – ou quem o suceder – quando vier a nova Era Glacial insistentemente apregoada pelos cientistas do mau tempo e os catastrofistas de sempre. Guarde o seu exemplar. Vai que eles estão certos... Este livro lhe será muito útil.

Valdemir Martins
07.10.2019           

19 de set. de 2019

O espírito retrógrado das novas radionovelas


Quando criança escutava, por curiosidade ou acidentalmente por estar no recinto onde mãe, tia e avó ouviam o rádio, as populares radionovelas. Esses dramas radiofônicos tornaram-se um hábito brasileiro, principalmente para as mulheres acentuadamente a partir da década de 1940. E o grande sucesso veio em 1950 com a adaptação da cubana “O Direito de Nascer”.

Telenovela O Direito de Nascer
Nessa mesma década a televisão em preto e branco começava a proliferar nos lares brasileiros. Claro que o seu primeiro grande sucesso foi a adaptação dessa consagrada história radiofônica, tornando-se, assim, a telenovela um tremendo sucesso que domina os índices de audiência até a atualidade e ditam moda, fazendo a cabeça da população.

Dentre outros tantos fatores mais e menos graves, este representa o mais visível e descarado como causa da falta do hábito de leitura dos brasileiros. É muito mais cômodo por a bunda na poltrona e, como numa mágica, ver e ouvir as peripécias e artimanhas dos personagens, os cenários, as paisagens, as músicas envolventes, sem ter o trabalho de imaginá-las, criá-las.

Assim esse povo sofrido se descontrai e torce por seus heróis, assimilando os enredos de baixíssimo nível cultural e as mensagens subliminares de interesse das emissoras e de seus patrocinadores. Assistir televisão é um vício enraizado em gerações e tão maléfico quanto os smartphones. Seu conteúdo é predominantemente danoso ao bom senso e ao livre arbítrio desde que influencia os neurônios a admirar, respeitar e temer aquilo que a indústria televisiva patrocinada e politizada determina.

Onde não há consciência cultural, os interesses financeiros, claro, conduzem as trilhas das emoções para o campo dos próprios interesses econômicos. Só há concessões quando estes atuam também no meio cultural. E raríssimas vezes – como no atual folhetim Bom Sucesso, da Globo, conduz-se as atenções para os livros, mas ainda assim sem o puro intuito de se difundir o hábito de ler, sua importância e implicações.

Não bastasse a força da TV, dos gadgets, da internet; da falta de programas governamentais; da demolição cultural sofrida recentemente por nossas escolas e universidades usadas para moldar politicamente a cabeça de nossas crianças e jovens, surge um novo monstro na lagoa intitulado “audiolivro”. Sim, um “livro” que você ouve e não lê! Como nas radionovelas de nossas avós, porém em equipamentos e sistemas extremamente modernos.

Ouvir não é ler!
A menos que eu seja um néscio, tenho comigo que livro é algo produzido para se ler. Seja por prazer, para distração, para estudar, como entretenimento e enriquecimento cultural, a prática da leitura desenvolve e apura o vocabulário com grafia correta das palavras e sentenças, tornando fácil e aprimorando qualquer escrita. A leitura dinamiza o raciocínio, agiliza a memória e facilita a interpretação lógica e emocional. A leitura é um ato de grande importância para a aprendizagem do ser humano, a leitura, além de favorecer o aprendizado de conteúdos específicos, aprimora o raciocínio.

Nada contra os audiolivros, técnica naufragada há alguns anos e que agora é ressuscitada graças ao desenvolvimento tecnológico e que comparece ao mercado para auxiliar no faturamento das editoras. Mas a comunicação e o marketing de suporte a essa tecnologia não pode confundir o consumidor e ludibria-lo a ponto de afirmar e reforçar esse conceito absurdo de que ouvir é ler. Em recente entrevista ao Publishnews (24/7/2019) Camila Cabete, gerente sênior de relações com os editores da Kobo no Brasil, afirmou sobre audiolivro de sua empresa: “Num país onde a briga é por leitores, o áudio vem para nos ajudar nesta luta". Como assim, se a briga é por leitores e não por ouvintes? Que me desculpem os que compartilham desse conceito, mas ouvir não é ler, definitivamente.

Obvio que ouvir algum tipo de livro – técnico, de estudo, para reforço de memória, para entreter crianças que não lêem, para deficientes visuais, etc. - tem seus benefícios, mas absolutamente é coisa de preguiçoso se usado com fins literários. E esse é o grande perigo e minha demanda. Não se pode incentivar as pessoas a trocar a leitura de um Madame Bovari, um Crime e Castigo ou ainda um O Pintassilgo, em livro físico ou e-book, por ouvir essas obra primas como se fossem radionovelas. Duvido que alguém consiga “ouvir”, para citar um exemplo, a obra de intensa profundidade psicológica do consagrado norte americano Daniel Keyes intitulada Flores para Algernon (https://contracapaladob.blogspot.com/2019/05/a-vida-por-tras-de-uma-janela.html). É perder desastrosamente toda a riqueza literária da obra, por sua revolucionária grafia, e despejar seu valor no lixo.

Os maravilhosos livros infantis
E mais catastrófico ainda – e por que não dizer até pecaminoso – é colocar um audiolivro nas mãos de uma criança alfabetizada. Estes pequenos seres que se projetam como o futuro garantido do mercado livreiro e editorial se trabalhados adequadamente para formar novas gerações de leitores, sustentarão o futuro do livro. Audiolivro para crianças não alfabetizadas é muito interessante e revela-se um novo grande negócio, mas se dirigido para as que já leem, torna-se um tiro no pé para as editoras.

Assim, afirmo: definitivamente ouvir uma obra de importância literária não é o mesmo que lê-la. E ensinar uma criança a escutar um livro ao invés de incentivá-la a lê-lo é um crime contra a cultura, a indústria do livro e ao desenvolvimento intelectual do petiz. E, com isso, seguir essa tendência seria colocar em pauta novamente os atos nazistas e bolcheviques de queima de livros ou o enredo de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, destruindo-se livros agora não pelo fogo, mas pela tecnologia e o desespero de se recuperar um mercado que muitos não tiveram a competência de desenvolver adequadamente.

Valdemir Martins
12/9/2019.