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19 de nov. de 2018

O que o Sapiens não conhece da sua própria história


A pessoa que se propõe a ler Sapiens – Uma Breve História da Humanidade (Companhia das Letras), do professor e historiador israelense Yuval Noah Harari, com certeza é instruída. Uma obra monumental escrita de forma fluente, de fácil leitura e assimilação, Sapiens é uma deliciosa proposta de completar seus conhecimentos e surpreende o leitor ao mostrar quanto ele não sabe. Claro, a não ser que ele seja também um expert como Harari.


A leitura é aderente e não se consegue largá-la com facilidade. Tem-se a sensação de estar lendo algo sempre relativamente familiar no geral, mas os liames científicos, históricos, culturais e religiosos são permanentemente surpreendentes e muito esclarecedores. E uma das qualidades da obra é alertar leitores despreparados para entender e aceitar rompimentos de tabus culturais e religiosos, principalmente estes que via de regra estão fortemente inoculados na mente e na tradição – ou na cultura, como se refere Harari – da maioria das pessoas.


Queiram ou não Adão e Eva, a vida principia-se há cerca de 3,8 bilhões de anos, a partir de simples moléculas e depois micro-organismos aquáticos que se tornaram hoje complexos seres cheios de crenças e conhecimento e não sabem muito bem distinguir o que é um e outro. Quem respira as crenças impele a cultura e a história para trás. Quem evolui com o conhecimento, está mais para destruidor inconsciente (ou não) da cultura, das crenças e da vida como a conhecemos.


O autor é convincente o suficiente para nos mostrar que o dinheiro não existe. Está apenas na mente das pessoas que, assim, com essa crença, sustentam os mercados, os bancos, os governos e as nações. Aqui se entenderá também o porquê de as civilizações ameríndias permutarem ouro por bugigangas, certas e conscientes de que faziam trocas vantajosas. Entenda por que os poderosos impérios ruíram em batalhas na antiguidade e na paz na história recente (como o inglês e o francês). O macaco é realmente nosso ancestral? E qual o papel do Neandertal nessa transmutação?

Perceba e assimile a destruição gradativa de nossa naturalidade com a evolução tecnológica que tende a nos escravizar em sua dependência quase que total. Ou você vive hoje sem um smartphone, um satélite, um automóvel, um medicamento, um computador ou um chip? Ou não vai depender da evolução das tenebrosas pesquisas genéticas? Já parou para ponderar que o remédio para a cura do Alzheimer pode trazer consigo a fantástica e perigosa evolução e aperfeiçoamento da mente humana que pode vir a subjugar seus semelhantes. Imagine um instrumento da inteligência artificial, no futuro, fazendo o backup do seu cérebro e rodá-lo num PC para qualquer outro fim.


Assustado? Já deu para perceber que o livro é muito sério, não é mesmo? E tudo é tratado com embasamento histórico e científico. O máximo que o autor se aproxima da ficção está em suas considerações e projeções das consequências das evoluções da tecnologia. Para sua própria reflexão, considere que o título do epílogo do livro é: “O animal que se tornou um deus”.


Harari é considerado hoje um dos grandes pensadores do século 21. E trata o leitor não como um ignorante das coisas, mas considera que você sabe e entende muito, mas talvez não perceba e não sopese o contexto e o conjunto dos fatos que conhece. Daí seu empenho de certa forma didático em analisar a história da humanidade de forma simples e objetiva, o que torna o livro um prazer de leitura. É um daqueles raros livros que você fecha no final com satisfação e sabendo que mais cedo ou tarde voltará a folheá-lo.

Valdemir Martins
20/10/2018

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25 de jul. de 2018

O mundo que (ainda) não terminou (3).


Eternidade por um Fio
Com a Europa dividida em Oriental e Ocidental, ou capitalista e comunista, como resultado do espólio político da Segunda Guerra Mundial, iniciam-se as aventuras de mais uma geração das cinco famílias que deram início a esta saga na trilogia O Século, do competente Ken Follett. Desta vez, em Eternidade por um Fio, terceiro livro da série, esses protagonistas vão contracenar com alguns ícones históricos da segunda metade do século XX, como John e Bobby Kennedy, Martin Luther King, Lyndon Johnson, Brejnev, Kruchev, Gorbachev, McCarthy, Reagan, Nixon, Carter, Bush, Lech Walesa, Dubcek, Jaruselsky, Willy Brandt, entre outros, também astros em uma nova peleja, denominada Guerra Fria, iniciada logo após a Segunda Guerra. Aqui apenas os Estados Unidos e a URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas disputam a hegemonia política, econômica, tecnológica e militar no planeta, embate que durou de 1945 a 1991 com as duas potências tentando implantar em outros países os seus sistemas políticos e econômicos.
Encerrando a II Guerra em maio de 1945, os russos invadiram Berlim, a capital da Alemanha nazista, um átimo antes dos aliados ocidentais capitaneados pelos EUA. Acabaram conquistando também nações satélites como Polônia, Checoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária tornando-as igualmente comunistas. A Alemanha e consequentemente Berlim – como uma ilha – foram divididas com os norte-americanos, que liberaram sua parte para que se tornassem independentes e democratas, ao contrário do que ocorreu com o lado soviético.
A URSS, composta por 15 repúblicas, ocupando um território de cerca de 22 milhões de km² e 290 milhões de habitantes se tornou, então, a segunda maior potência econômica e militar do mundo. Destacou-se também na corrida espacial e na produção de armas nucleares, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, principal adversário e líder do modelo capitalista. Com governos centralizadores, ditatoriais, conservadores e retrógrados, os países do bloco socialista, incluindo a própria Rússia, abiscoitaram uma grave crise econômica na década de 1980. A falta de concorrência, os baixos salários e a falta de produtos causaram um flagelo econômico e social jamais pensado pela sobrepujada população. A falta de democracia também gerava uma grande insatisfação popular. Em 1985 o então presidente da União Soviética, o renovador Mikhail Gorbachev, começou a implementar a Glasnost (reformas políticas priorizando a liberdade) e a Perestroica (reestruturação econômica). Estavam assim preparando-se para deixar o socialismo, rumo à economia de mercado capitalista, com mais abertura política e democrática. Na sequência, os países satélites e algumas repúblicas soviéticas foram retomando sua independência política. A queda do afamado Muro de Berlim em novembro de 1989 pôs fim à Guerra Fria e, em 1991, foi dissolvida oficialmente a URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Imaginem os bastidores dessa história vivida pelos personagens da obra. O gênio literário de Ken Follett transforma toda a tensão dos desdobramentos históricos dessa época em episódios de suspense e expectativa de forma brilhante. De pronto, com narrativas intensas tanto em Washington como em Moscou, ele nos coloca em meio às provocações e negociações da crise dos mísseis em Cuba, um dos eventos mais emblemáticos do livro e o que mais se aproximou de um real fim do mundo pelo risco de uma guerra nuclear como nunca houve até a atualidade. Segue-se a construção do Muro de Berlim e seus dramas principalmente locais com episódios inerentes de fugas e da separação comovente de famílias.  Os inúmeros fatos ocorridos durante a luta pelos Direitos Civis nos EUA enredam-nos com os protagonistas em linchamentos de negros por radicais brancos sulistas e pelo Ku Klux Klan, em diálogos e passagens brilhantes com Martin Luther King, John Kennedy e seu irmão Bobby e, posteriormente, nos similares e previsíveis assassinatos dos três líderes por ativistas brancos radicais.
Destaque para a banda musical criada por um medíocre estudante inglês que se torna sucesso mundial – padrão The Beatles e Rolling Stones, “seus contemporâneos” - e em cujas aventuras podemos vivenciar os dramas das drogas, novidade na época dos hippies; a explosão maior do rock’n roll; a liberação feminina; o sexo livre; a Guerra do Vietnã e, posteriormente, até a queda do muro. Outros personagens de relevo na obra revelam-nos o perfil de trabalho da imprensa à época, quando então eclodiu o escândalo do Watergate e o consequente impeachment do incompetente presidente Nixon; e o papel da TASS - agência oficial de notícias soviética. Do lado de lá, um jovem russo consegue tornar-se assessor e braço direito dos principais dirigentes soviéticos influenciando, para o bem ou para o mal, suas decisões. Sua irmã gêmea consegue enviar para o Ocidente livros de sucesso mundial escritos por um dissidente prisioneiro na Sibéria (não citado, mas certamente uma referência a Alexander Soljenítsin, autor de Arquipélago Gulag). Além de passagens pela Primavera de Praga, pelo forte movimento sindicalista Solidariedade na Polônia, pelos movimentos políticos de massa, pelas terríveis polícias políticas Stasi e KGB da Alemanha Oriental e da URSS respectivamente.
Neste encerramento da trilogia Follett não comete ousadias formais. A leitura é extremamente envolvente, principalmente para quem já superou os cinquenta anos de idade e, portanto, foi de alguma forma testemunha dos fatos históricos do livro. Por outro lado, além do entretenimento, aos mais jovens a obra pode transformar-se também numa animada aula de história como jamais se pode aprender numa sala de aula, dada a dinâmica e a seriedade das profundas pesquisas, forte marca nas obras de Ken Follett.
Esta é uma obra literária da compaixão por todas as vítimas inocentes do século vinte, sejam as milhões, sejam as efêmeras, pois a elas o autor dedicou textos e talento com a profundidade da verdade e do sentimento; sem lamúrias, mas com pesar. Pois só aqueles que conhecem ou vivenciaram a história podem ter a comiseração pelos que deram suas vidas, voluntária ou involuntariamente, pelo bem comum de um companheiro (a), da família, da pátria e da humanidade.
Valdemir Martins
20/07/2018.
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18 de jul. de 2018

O mundo que (ainda) não terminou (2).


Inverno do Mundo
Com o título extremamente adequado ao contexto do segundo livro da trilogia, Ken Follett mantém o ritmo de sua narrativa colocando em cena os descendentes das cinco famílias como principais protagonistas, ao lado de personagens históricas como Stalin, Churchill, Hitler, Roosevelt, Patton, De Gaule e Mussolini entre outros.
Como consequência do Tratado de Versalhes que sacramentou o fim da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha – sucedida pela República de Weimar – foi colocada como a grande perdedora e principal responsável por todos os delitos cometidos no conflito e suas consequências sociais, políticas e econômicas. A caracterização da nação dos kaisers como grande vilã nesse drástico tratado de paz despertou tamanho ódio no ex-soldado nacionalista e antissemita Adolf Hitler que o levou a fundar o partido nazista, ascendendo ao poder na então nova Alemanha, como o Terceiro Reich, e a apenas vinte anos da assinatura daquele tratado eclodiu a Segunda Guerra Mundial. Agora envolvidos, além dos países do primeiro conflito armado, a Espanha, a Itália e o Japão.
Todos os bastidores dessa tragédia maior da humanidade estão ricamente detalhados por Follett em mais esta espetacular obra que entremeia a ficção à história, como também os ícones históricos aos personagens ficcionais. Fatos surpreendentes e pouco conhecidos como a atuação dos camisas negras britânicos, leva-nos a reconhecer neles os radicais camisas pardas do nazismo. É um livro em grande parte chocante – como o foi a própria realidade –, com muitos trechos de tensão e suspense, abrandados pelas belíssimas passagens e dramas de amor, de paixão e de comiseração. Os bondosos fictícios e reais felizmente são maioria, contrastando com a grande quantidade de carrascos, como é sobejamente conhecido por todos, os quais geram no livro, com frequência, sentimentos de revolta e indignação nos leitores.
Follett não foge à sua talentosa escrita de espionagem e a linha descritiva elegida por ele nos proporciona, a partir de 1933 até 1945, conhecer detalhes sórdidos das tropas, milícias e polícias ideológicas, com especial destaque para os requintes sádicos principalmente dos espanhóis, alemães e russos nos diversos momentos de seus domínios em terras alheias e junto às populações inocentes e indefesas, não importando a idade. Os dramas não marcaram presença somente nos campos de batalha, mas igualmente nas cidades, com grande profundidade e extensão. O Estado policialesco, coercitivo e repressor era o proprietário de tudo.
Por outro lado, o autor bem demonstra a franca recuperação dos Estados Unidos à depressão de 1929; o início da discreta aceitação do homossexualismo; o desenvolvimento tecnológico alemão e americano – sempre invejado pelos retrógrados bolcheviques soviéticos -; e a alegria das produções cinematográficas dos judeus de Hollywood (E o vento levou... e os musicais, por exemplo) e das performances das brilhantes orquestras, como a do major da aeronáutica Glenn Miller.
Assim, deste devastador embate restou-nos a estimativa de cerca de 47 milhões de pessoas mortas. Os soviéticos foram os que mais tiveram baixas com cerca de 26 milhões de mortos. O Holocausto é o tenebroso título para o extermínio étnico gratuito de seis milhões de indefesos civis judeus europeus de todas as idades e sexo nas cidades e campos de concentração, número somente superado pelo governo bolchevique de Stálin que consegui aniquilar onze milhões de camponeses ucranianos em nome da mentirosa reforma agrária para sustentar a elite dominante do comunismo russo.
A segunda guerra foi onde mais pessoas morreram em toda história da humanidade. Restou, então, um mundo dividido em Ocidente dominado pelos americanos e Oriente com predominância soviética, dando início à chamada Guerra Fria que marcou o restante do século XX.
Valdemir Martins
18/07/2018.

Veja o comentário sobre o tervceiro volume em https://contracapaladob.blogspot.com/2018/07/o-mundo-que-ainda-nao-terminou-3.html

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12 de jul. de 2018

O mundo que (ainda) não terminou (1).


O Homem demorou milhões e milhões de anos para surgir e se desenvolver até o inadmissível estágio atual de inacreditavelmente começar a se autodestruir, arrastando consigo o generoso habitat que o gerou e o criou. Excetuando-se as civilizações mais unidas e argutas - como a japonesa, a americana, a canadense e algumas europeias -, o restante das civilizações do mundo, conscientemente ou não, está em plena degeneração.

Não causa estranhamento que precursores dessa previsível hecatombe, cujo processo teve o início de sua intensificação no século passado com as guerras e revoluções que exterminaram dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo, tenham hoje papel fundamental em defesa da salvação ou preservação do planeta. Assim demonstram, enquanto civilizações, que aprenderam alguma importante lição com seus ambiciosos desvarios políticos do passado.

E esses desatinos estão muito bem retratados de forma, apesar de romanceada, veridicamente históricas na trilogia literária do escritor britânico Ken Follett intitulada O Século, composta pelos livros Queda de Gigantes, Inverno do Mundo e Eternidade por um Fio.

A trilogia acompanha o destino de cinco famílias de nacionalidades britânica (uma inglesa e uma galesa), alemã, russa e americana, ao longo do século XX, durante seus principais fatos e com seus mais espetaculares protagonistas históricos. O toque de genialidade de Follett está em conseguir estabelecer diálogos e convivências entre personagens reais e fictícios de forma extremamente natural e sem constrangimentos. Daí a necessidade de o leitor jamais se posicionar como lendo uma obra de História, apesar da pesquisa seriíssima do autor para expor os fatos históricos entremeados ao seu enredo. Seus relatos envolvem também uma expressiva riqueza de descrições sobre costumes, moda, mobiliário, transportes, movimentos sociais, músicas, economia, política, locais e personalidades prevalentes à época dos momentos da obra.

Reflexos da Revolução Industrial que invadiram o início do Século XX acirraram disputas territoriais e políticas na Europa, despertaram a defesa dos direitos femininos e indispuseram a força trabalhadora contra a sua exploração pela aristocracia.

No primeiro livro, corretamente intitulado Queda de Gigantes, as cinco famílias são convenientemente posicionadas nos principais países protagonistas da Primeira Guerra Mundial: Reino Unido, Alemanha, Rússia e Estados Unidos. Seus membros, oriundos de diversificadas classes sociais e culturais e diferentes correntes ideológicas, convivem e circulam num contexto pré-guerra e pré- revolucionário proporcionando-nos um conhecimento apropriado da conjuntura social, política e econômica da época. Nessa atmosfera histórica, com narrativa que cobre de 1911 até 1924, o autor consegue envolver-nos de forma rica e precisa na complexidade de acontecimentos que geraram esses conflitos armados. E leva-nos à indignação de constatar que a Primeira Guerra foi efetivada por absoluta intransigência pessoal, indecisão e acovardamento de líderes políticos - principalmente da Inglaterra - que trataram divergências de opinião de forma irresponsável, quando o conflito poderia ter sido evitado apenas nas negociações.

Além da admirável luta pela implementação do voto feminino na Grã Bretanha, da guerra em si, do Tratado de Versalhes, da Liga das Nações, das descrições de personalidades como Lênin e Trotsky, do desenvolvimento de tecnologia bélica primária e do uso desumano de lança-chamas e gazes mortais, Follett arrasta-nos à também sanguinária revolução bolchevique na Rússia, revelando com espetacular crueza as barbaridades com a população antes e depois da derrubada do regime czarista. O Império Austro-húngaro e o Império Otomano, as principais batalhas ocorridas, as tentativas de paz, os avanços e recuos nos atrozes combates de trincheira, a frágil participação da França – como vítima – e a decisiva participação dos Estados Unidos ao entrar na conflagração, constroem um monumental romance onde, como sempre, fica assinalado que nas guerras não existem vencedores. Não só a narrativa vibrante, cheia de surpresas, perigos, paixões e sensualidade prende-nos à leitura, mas também a capacidade que o autor tem de envolver-nos na torcida por alguns personagens em especial.

Com uma linguagem ágil e direta Ken Follett nos proporciona entender esta passagem histórica complexa, principalmente aqui no Brasil onde esse sórdido episódio é muito mal estudado nas escolas. Mas o principal, além do entretenimento e da preciosa aula de história, é que ele nos faz entender de forma definitiva que a violência, o radicalismo, o preconceito e a intolerância somente causam-nos perdas irrecuperáveis.


Veja o comentário do segundo volume em https://contracapaladob.blogspot.com/2018/07/o-mundo-que-ainda-nao-terminou-2.html

Valdemir Martins
12/07/2018.
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12 de mar. de 2018

Do nada brotou o Geovani, menó.




O alarido difundido pela Companhia com o livro O Sol na Cabeça, do novato e morador carioca Geovani Martins, abarcou até seis páginas de Jeronimo Teixeira na Veja, rasgando o verbo pra elogiar o garoto. Botaram até frases do Moreira Salles e do Chico Buarque como se um deus tivesse nascido, papo reto. Resolvi comprar o bagulho e o li, inteiro, num só tranco, neste domingo.

Assim como Rachel, Graciliano e João Cabral nos desvendaram os sertões nordestinos, Geovani escancara-nos os morros do Rio de Janeiro, despejando através de sua impiedosa e surpreendente escrita, o ambiente, a realidade e a vida da molecada, dos adolescentes e de suas famílias nas favelas. E de forma magnífica, revela as realidades acobertadas nas frequentes matérias da imprensa e jamais registradas pelo público leitor, ouvinte ou telespectador. Nada lhe escapa – o narcotráfico, os nóias, a polícia corrupta, a macumbeira, os evangélicos, a inocência, a violência, o amor, as drogas (todas), a linda borboleta, a família, as novinhas, a amizade, a penúria, o trabalho, a escola – pois ele é fruto desse reino.

O livro, enfim, apesar de suave, é impactante e marca o nascimento de potencial grande escritor caso venha a se preparar culturalmente para isso. Nesta obra de estreia ele usa da oralidade popular com a coragem de criar contos inteiros no linguajar dos “moradores”, como ele designa quem reside na favela – em nenhum momento fala em “comunidade” como a imprensa hipócrita costuma usar -, fazendo-nos vivenciar o real, o autêntico diálogo e dialeto local. Conto seguinte, volta ele ao português convencional, porém com muito estilo.

De origem humilde, Geovani tem o talento e soube aproveitá-lo na composição desta obra superlativa. Seu texto vai de uma situação para outra, mesmo no conto curto, como numa montanha-russa. Sai do suspense para a violência e pá, está no lirismo. Nesta obra claramente autobiográfica, ele consegue narrar cenas atrozes presenciadas e situações de pressão e terror sem qualquer ranço de revanche ou vingança, o que bem demonstra a maturidade do autor apesar de sua pouca idade. Ou seja, é habilidade nata.

Geovani está longe ainda de Machado, Graciliano, Rachel e Cabral, mas tem tudo para ser mais um grande escritor brasileiro: talento, sensibilidade; conta com o apoio de uma excelente editora e, agora, o ambiente carioca em ebulição envolvendo integral e diretamente os morros cariocas, palco e manancial dos dramas e das histórias para novos trabalhos do autor.

Sob a influência da escrita do autor desatei a escrever este artigo. E assim, mano, acabei usando expressões por ele ditas pro bonde.

Valdemir Martins
12/03/2018.

27 de fev. de 2018

Donna Tartt sempre surpreende quem gosta de trama densa.


Fico muito cansado lendo Donna Tartt. Esgotado. Porém muito, muito feliz. Ela consegue enlaçar-nos em seu texto através de liames antecipados de situações, criando ansiedade e suspense. Num texto intensamente bem construído, ainda nos contempla oportunamente com uma boa história além de referências históricas ou técnicas do que está envolvido na trama. E nada melhor, pelo menos para mim, que o intenso prazer de uma boa leitura. Arrefece qualquer cansaço.

Longe de ser uma romancista de formação, como um Thomas Mann, a controversa Donna Tartt aproxima-se dele num viés moderno e contemporâneo, versão bem norte-americana. Nada de importante e crucial – seja em detalhe ou não - escapa à sua construção de escrita exuberante. Com uma dinâmica narrativa extremamente funcional, arquiteta romances monumentais como é o caso também do seu aclamado “O Pintassilgo” (The Goldfinch), de 2013, ganhador do Prêmio Pulitzer de Ficção em 2014 ( veja comentário  no blog Contracapa/LadoB http://contracapaladob.blogspot.com.br/2017/03/uma-monumental-montanha-russa.html ). E, não por acaso, muito críticos comparam seu estilo ao de Charles Dickens.

Neste “A História Secreta”, seu romance de estreia em 1992, o que poderia ser uma aborrecida história de um grupo de estudantes de grego numa gélida universidade em Vermont, no interior norte-americano, transforma-se numa maratona de situações não tão acadêmicas. Apesar de um pouco pesado no início, o romance segue num crescendo ritmado, com graves e agudos, passando por uma inusitada bacanal dionisíaca e um dramático complô assassino e subsequentes situações de suspense e desespero, como numa tragédia grega. A construção competente de personagens leva-nos até os complexos perfis psicológicos praticamente de todos os participantes da trama em primeiro e segundo níveis. E Tartt lida muito bem com seus egos, proporcionando que o leitor participe das situações exatamente por conhecer como pensam e agem suas principais criaturas. E para eles, simplórios ou sofisticados, não há limites para o consumo de álcool e até de drogas, exalando forte espírito de uísque por suas páginas.

Não sou editor, mas – como se já o fosse – eliminaria alguns trechos de discussões do grupo de alunos e de seu distinto professor sobre construção de textos em grego, Platão, Homero, Dionísio, a Ilíada e a Odisseia e por aí afora. Não que deixe de ser importante, mas inadequado e dispensável no seu excesso. Os leitores não são hermeneutas e Tartt poderia ser um pouco parcimoniosa na transmissão de seus conhecimentos da língua e da cultura grega antiga. Mas a construção da obra no todo é de grande qualidade literária e leva-nos, por exemplo, em determinado capítulo, a quase congelar no rigoroso inverno de Vermont ao lado de um dos protagonistas. Põe em ação, progressivamente, um perfeito personagem sádico arrivista, promotor de recorrentes diatribes, que incomoda propositalmente o leitor, fazendo-o vivenciar com intensidade e participar, assim, involuntariamente, da absorvente trama. A própria autora assim o descreve no texto: “Era pior quando ele escolhia para vítima uma pessoa específica. Sua sobrenatural perspicácia lhe dizia em qual nervo tocar, e em que momento exato, para ferir e provocar o máximo de indignação”.

E a obra termina como o derretimento da neve que tanto a caracteriza. Lenta e gradualmente, trazendo consigo, em seus gélidos resíduos, a obsessão de manter um segredo, vigiada pelo permanente fantasma da marcante personalidade do membro dominante da turma.

Valdemir Martins, em 26/02/2018.

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9 de fev. de 2018

O gigante não enterrado, mas esquecido.

Apesar de Ishiguro repudiar a classificação desta sua brilhante obra “O Gigante Enterrado” (The Buried Giant) como romance de fantasia, a mestra da fantasia e da ficção científica Ursula Le Guin a considerou uma fábula adulta (“Isso é fantasia, e sua recusa em colocar o rótulo é evidência de que o autor se sente superior a isso.”), com o que concordo. O atual Prêmio Nobel provavelmente está ponderando todas as implicações subliminares do livro, desconsiderando seu formato ou estilo. E ele, com certeza, como criador, está correto, pois somente ele sabe exatamente a fórmula engendrada para transmitir suas mensagens e dar o seu recado.

E deu. Comecemos com o fato de que o gigante enterrado não existe, limitando-se a uma citação inicial de que seria a causa de uma elevação no relevo; uma colina. E aí, as inúmeras montanhas da obra, galgadas com enorme esforço pelos personagens, tomam conta das paisagens, principalmente em seu terço final. Outra figura nessa simbologia do gigante é a memória, enterrada por uma dominante névoa emanada pelo bafo de uma dragoa – provavelmente simbolizando a religião – que causa a perda de memória nas pessoas.

Não li ainda outras obras do britânico Kazuo Ishiguro. Acredito que meu première foi acertado nesta magnífica obra onde são entrelaçados elementos históricos do século oito na Grã Bretanha com suas lendas e mitologia grega. A crendice domina a obra e predomina nos desígnios de vida dos seus protagonistas, dois simpáticos e cativantes idosos que só transmitem amor e bondade. Mesmo nas piores circunstâncias o casal tem sempre uma pergunta ou uma colocação que indica o lado bom das situações ou mostram um novo caminho. Ajudam e são ajudados. É sempre o bem compensando o bem.

Outra conjuntura simbólica é frisada pela ideia fixa dos anciães Axl e Beatrice em visitar o filho em sua aldeia que eles não veem há anos, tão saudoso quanto um defunto querido ou tão distante quanto a vela (ou a luz) que eles não podem ter. A não admissão da perda de algo que muito se ama ou se necessita marca obsessivamente não só a história, como também os principais personagens. O texto registra muitas perdas: históricas, materiais, pessoais e de memória. E as compensações são adquiridas de forma singela, quase natural, mostrando aqui o autor que não se deve extrapolar nas tentativas ou na recuperação de perdas importantes. Existem maneiras simples e leves de se apaziguar o coração e a alma.

Um velho guerreiro descendente do rei Arthur – e seu garboso cavalo -, um jovem competente e impetuoso guerreiro – e sua égua manca –, compreensivelmente antagonistas, convivem tolerantes por solidariedade aos velhos. E um rapazote marcado fisicamente pelo mal e vítima de perseguições, além de um bando de frades do bem e do mal completam as principais figuras dramáticas desta magnífica história.

Como declarou o próprio Ishiguro, esta não é sua principal obra – ele destaca sempre “Os Vestígios do Dia” -, mas com certeza é sua mais profunda reflexão escrita sobre o esquecimento, o respeito e o amor.

Por Valdemir Martins

Em 30 de janeiro de 2018.

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23 de jan. de 2018

Boneco de Neve entrando numa fria.

A narrativa incógnita dos atos e dos perfis dos suspeitos de ser um psicopata cruel levam a dúvidas, apostas e certezas do leitor sempre derrubadas pela competente prosa do norueguês Jo Nesbo.  Seu texto é de uma fluidez desconcertante, ideal para os apreciadores de romances policiais de suspense e de terror. Texto sucinto e objetivo com os mesmos efeitos só encontrei nos livros do best-seller norte americano James Patterson, tido como um dos autores de livros policiais mais vendidos no mundo.

Nesta história eletrizante denominada Boneco de Neve, Nesbo nos traz um suspense envolvente como numa corrida de revezamento onde um suspeito vai passando o bastão para o outro. Tudo para conseguir parar um serial killer cujas vítimas têm sempre uma ligação real ou sugestiva com bonecos de neve que chegam até a levar traumas às equipes policiais. E Nesbo consegue revelar o culpado contando, inesperadamente, toda história e trauma desse personagem faltando ainda cerca de quinze por cento de texto para terminar o livro. Mas a obra continua com toda uma tensa caçada prendendo o leitor até o fim.


O livro em si não tem lá um grande valor literário. É muito bem escrito; é envolvente; é todo muito bem embasado em dados científicos não suscitando dúvidas sobre alegações e situações citadas. Apenas as situações de ação finais são, na minha modesta percepção, um tanto forçadas. Mas aí você já está nas páginas finais e acaba aceitando o vale-tudo.

Por Valdemir Martins
Em 23/01/2018.

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21 de dez. de 2017

E assim vocês foram criados, neste imenso universo.



Eis-me aqui lendo novamente Dan Brown. Apenas pela curiosidade gerada por um comentário solto sobre o livro “Origem”. Neste, Langdom torna-se Superman apenas uma vez. E para quem for seu fã, é desestimulante. Mas, dessa figura pode-se esperar principalmente conhecimento. E nisso, o livro é pródigo.



Apesar da história medíocre, com espasmos de brilhante, valeu a leitura porque consegui aprender mais sobre informática, o revolucionário catalão Gaudì e sua obra e sobre o magnífico Museu Guggenheim, além de um pouco mais sobre física, química e biologia. E até um pouco sobre Barcelona.


Obra de baixa qualidade literária, sua leitura vale sobretudo para quem fizer sérias reflexões sobre o que está lendo, colocando os leitores em cheque com suas crenças e seus conhecimentos, fazendo-os pensar com rigor sobre o que nos espera no futuro. E, aqui sim, qualifico o livro como essencial. Ignoro outras obras populares que nos levem a refletir, desta forma,  sobre a origem de tudo – e principalmente da vida - fora da confortável aceitação das diversas imposições religiosas. Este é um livro essencialmente agnóstico, assim como seu autor, cujas demais obras também são balizadas pelo frequente constrangimento de/ou desvirtuar ou dar ênfase a idiotias relacionadas principalmente ao cristianismo e seus escritos.

Até onde a tecnologia é uma benesse? A partir de quando se torna prejudicial à humanidade? E as crendices e as religiões, podem ser avaliadas da mesma forma? Eis aqui o cerne do enredo conduzido em sua maior parte por um programa de computador humanizado e super desenvolvido, colocando o nosso conhecido Hal, do filme 2001, Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke) na sola do chinelo. Cada coisa no seu tempo, afinal estamos já em 2018.

Enfim, trata-se de um livro que tanto nos meios acadêmicos e científicos como nos religiosos deve tornar-se razão de eventuais comentários, com certeza grotescos. E para que o meu também não o fique, paro por aqui. Realmente não há mais o que falar sobre esta obra.

E para quem ficar (bem ou mal) impressionado com Origem, recomendo a leitura de A Questão Vital - Por que a vida é como é? , de Nick Lane, da Editora Rocco, uma instigante viagem que começa quatro bilhões de anos atrás, quando uma célula sofisticada surgiu de progenitores bacterianos, e mostra que toda forma de vida complexa na Terra – de seres humanos a árvores e abelhas – compartilha de um único ancestral comum. Um evento que nunca mais se repetiu na história.

Todavia, não posso deixar de recomendar também a leitura dos dois best sellers da atualidade, pesquisados e escritos pelo dedicado professor israelense Yuval Noah Harari: Sapiens: Uma breve história da Humanidade e Homo Deus: Uma breve história do amanhã.


Por Valdemir Martins
Em 18/12/2017.
Revisado em 18/01/2018.

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7 de dez. de 2017

Bovary: a madame que corre com os lobos


Desde o primórdio dos tempos a mulher costumava ser secundária. Nem Charles Darwin – ou mesmo Freud - conseguiria explicar satisfatoriamente esta distorção comportamental do ser humano, não fosse o fanatismo cristão. Muitas teorias foram desenvolvidas, inclusive religiosas e cientificas. Pode-se atribuir à predominância da força física do macho, à condição feminina mais delicada pela maternidade, aos instintos naturais ou ao que mais se aproximar à realidade de cada um. Mas, independentemente das condições de guerreiras, deusas, fadas, caçadoras, rainhas, atletas, bruxas, santas, educadoras, policiais ou executivas, ainda hoje o ranço da hegemonia machista se faz presente, e de forma inescrupulosa em sociedades patriarcais e de preeminência religiosa.

Atravessando o tempo, um livro essencial, em particular, registra, em meados do século XIX, de forma magistral a colocação da mulher no secundário. Falo de “Madame Bovary”, a magnífica obra prima de Gustave Flaubert, onde a bela protagonista Emma, afogada na sua condição de mulher, antes filha, depois esposa, mãe e, finalmente, amante, submete-se aos martírios lhe impostos pelos algozes da sociedade rural machista daquele tempo.

Emma foi uma mulher forte para a época. Sabia exatamente o que queria; era decidida, corajosa e fogosa. Mas, no lar, egoísta, nunca soube conquistar seu marido como homem e seu relacionamento com ele era apenas como mãe e dona de casa. Graças a um esposo acomodado – um médico provinciano medíocre -, retrógrado e com muito pejo, Emma precisou ser mulher fora de casa. Tudo isso, descrito de forma bastante realista por Flaubert, sem retoques românticos e já com alguns leves toques parnasianos. Com o surgimento do discurso indireto livre de Flaubert, onde a personagem ocupa, com certeza, o lugar do tradicional narrador na literatura, Emma passa à sua condição real de mulher. Uma mulher em busca de vida.

Uma mulher forte como protagonista e fraca como heroína. Uma mulher que correu atrás do que realmente queria. Ambiciosa, superou obstáculos sociais, familiares, religiosos e físicos. Na realidade, superou-se para ser mulher não importando quem estava a subjugar. E, por isso, pagou muito caro por seus desmandos em todos os sentidos.


Um dos clássicos mais famosos e polêmicos da literatura mundial, Madame Bovary traz o realismo para a literatura de forma definitiva, graças ao talento maiúsculo de Gustave Flaubert. Alcançou um nível de texto fabuloso para transformar o que poderia ser uma simples história piegas numa das principais obras da literatura mundial, um dos marcos do fim da escola romântica. Flaubert, por retratar fielmente uma época, não teve condições de suplantar os resquícios do ainda forte machismo então predominante. Mas soube superar arquétipos e colocar a madame a correr com todos os seus lobos, lembrando aqui a importante obra da psicanalista junguiana estadunidense Clarissa Pinkola Estés, intitulada “Mulheres que Correm com os Lobos”, dento da qual esta história de Emma também se ajustaria perfeitamente.

Por Valdemir Martins em 07/12/2017.

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17 de nov. de 2017

Coito interrompido


O mestre do terror consegue, mais uma vez, construir uma atmosfera opressiva de medo em sua obra It – A Coisa. As cenas dramáticas e assustadoras descritas por Stephen King na morte principalmente de crianças e nas descrições de enfrentamentos à Coisa proporcionam inquietantes situações de suspender o fôlego, de entesar os músculos e alterar a respiração. E a personagem aterradora do Mal é a alegre, debochada e extremamente mal cheirosa figura predominante de um palhaço, ora lobisomem, ora múmia, ora outra coisa, dependendo do garoto que se deparava com ela e seus antecedentes de figuras aterradoras.

Isso tudo num livro. Não quero aqui entrar no mérito do filme, mas no de um livro de 1.104 páginas; sem música tenebrosa e outros efeitos sonoros e visuais, é uma magistral consumação do medo, digna de um catedrático no assunto. E, apesar disso, King consegue apresentar-nos belíssimos sete protagonistas, crianças pré-adolescentes, que desenvolvem e expõe o real sentido da amizade, do amor, da confiança absoluta e, claro, do medo.


Some-se ainda a forma narrativa (objetiva e subjetiva), com a alternação da ordem temporal - usando a anisocronia; a construção dos protagonistas e dos demais personagens e antagonistas; os locais, as situações predominantemente tensas, os acontecimentos surpreendentes, as ocorrências que extrapolam os limites da violência, as apavorantes perseguições (e não são poucas), as reviravoltas, os dados históricos e geográficos, e até o lirismo de algumas situações, tudo banhado em muita insegurança, sangue e medo. Aqui, nada é previsível e tudo é inusitado. Quem gosta do gênero e do estilo de King não conseguirá largar o livro.

Todo esse crescente terror a buscar um ápice na apoteose da obra, presume-se, em seu quinto final, onde, inevitavelmente o Bem enfrentará o Mal de forma decisiva. E aí? O Bem vencerá o Mal? Ou tudo se converterá naquela babaquice de que algo sobre para um retorno do Mal numa próxima aventura? Aí não seria King.

Mas, por incrível que possa parecer, apesar da continuidade de todas as qualidades aterrorizantes descritas anteriormente até o fim da narrativa, King tropeça. E a sensação é a mesma de um coito interrompido por uma circunstância esdrúxula. Você começa a brochar e resta apenas continuar curtindo o texto, sempre muito bom do autor, até o final, por que o enredo foi comprometido.



O encontro apoteótico do Bem com o Mal decepciona. Era de se esperar algo mega-assustador. E o que se encontra é medíocre diante do brilhantismo das situações anteriores já descritas. King partiu para uma solução metafísica e foge totalmente do âmago da obra, saindo do clima aterrorizante para entrar numa atmosfera fantasiosa, com situações meramente forçadas, sem brilho, descrições cansativas e, o pior, sem o apreciado terror kinguiniano, sem a múmia, sem o lobisomem e sequer o esperado embate com o palhaço, ícone ilustrativo de todo o Mal da obra que se transforma numa ridícula e imensa aranha coadjuvada por uma milenar e filosófica tartaruga.



Enfim, é uma obra artística e como tal deve ser respeitada. E com toda minha reverência por Stephen King, acredito que esta crítica positiva é cabível, pois ele é o único responsável pelo que transmite ao leitor. E ninguém é perfeito. Nem eu, que me atrevi a escrever esta crítica.

Por Valdemir Martins
Novembro de 2017.

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