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24 de mar. de 2024

O Ruído do Tempo e da História.

Confusão é o sentimento de que Julian Barnes impregna o início de sua consagrada obra O Ruído do Tempo, em função de sua proposital fragmentação narrativa. Cabe ao leitor, no seu deleite, ir juntando as peças e informações para descobrir a formação inicial de um brilhante texto.

Confusa também é a sofrida história do músico russo Dmitri Dmitriyevich Shostakovich, compositor e pianista da era soviética que se tornou internacionalmente conhecido em 1926 após a estreia de sua Primeira Sinfonia, composta aos 19 anos, e foi considerado ao longo de sua vida como um grande compositor. Barnes fala da infância complicada do protagonista que o obrigou a ser o “homem da casa” logo cedo, aos 16 anos. Mas, com todo o seu talento, nesses tempos já era um talento precoce e brilhava nos palcos de Moscou. Mas apesar disso e mesmo após a consagração, sempre se sentiu um menino perdido.

Teve uma relação extremamente complexa e crítica com o regime comunista. Quando estava ainda no Conservatório, a Associação Russa de Músicos Proletários iniciava então uma campanha contra a hegemonia das elites nas artes, na qual Shostakovich estava incluído, pregando que “os trabalhadores tinham que ser treinados para se tornar compositores, e toda a música viria a ser instantaneamente compreensível e agradável às massas”. Além de utópico, isso contrariava frontalmente sua formação iniciada com a mãe ao piano desde os nove anos.

Além do azar de Stálin não ter gostado de sua sinfonia, teve que enfrentar o Estado que acabou assumindo também as tarefas das artes e os burocratas do Regime passaram a controlar a produtividade também dos músicos, não importando sua qualidade. Sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, consagrada até internacionalmente recebeu crítica positiva do Pravda por ser uma conquista internacional soviética, mas quando os humores políticos internos mudaram, o mesmo Pravda destruiu e ridicularizou a obra por se tratar de uma expressão depressiva da burguesia.

E, como delata Barnes, o controle das artes passou a assumir um nível de censura política e social de forma radical e absurda, por pessoas absolutamente ignorantes e brutais. Daí a patente queda das artes soviéticas, principalmente russas, enquanto durou o bolchevismo. Dali para frente na história, as manifestações artísticas em regimes social-comunistas basicamente deixaram de existir, em função do baixíssimo nível do que era produzido para manipular as massas ignorantes e rústicas. O que perdura até hoje nesses padrões de regimes quase sempre totalitários.

Mas, por diversos motivos, Shostakovich foi sobrevivendo, submetendo-se na maioria das vezes aos caprichos dos líderes comunistas e aos censores. Sua potente e grandiosa Quinta Sinfonia em Ré menor, opus 47, de 1937 – sua primeira obra dentro das novas regras governamentais – traz uma poderosíssima crítica imperceptível ao regime e o consagra internacionalmente. E assim, com muita inteligência, esperteza e competência foi conduzindo sua vida e obra sob permanente coação e intimidação. E é nas reflexões do protagonista onde Barnes desfila toda a ironia, questionamentos e paixões de Shostakovich com relação ao regime soviético, seus líderes e tiranos em geral.

Sua música expressa o colorido orquestral da escola russa e a diversidade de uma enorme produção em todos os gêneros. Apesar de criticado por sua forçada adesão política, era admirado por compositores da grandeza de Bela Bartok e respeitado por contemporâneos como Stravinsky e Prokofiev. Mas, a qualidade de sua obra se impôs e se mantém nos programas de todas as salas de concerto da atualidade.

E sua música, como praticamente a completude delas, sobreviveu ao totalitarismo. As obras de Shostakovich superaram o ruído do tempo e da história.

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Valdemir Martins

28.01.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Shostakovich pela FineArt America; 3. Cena da ópera Lady Macbeth; 4. Shostakovich compondo; 5. Capa da revista Time; 6. Recebendo a notícia da doença fatal; 7. Julian Barnes.

 

15 de mar. de 2024

Nove Noites para um suicídio e duas gerações.

O livro começa complexo, pesado. E aos poucos o leitor vai montando o enredo diante das informações que vai assimilando em Nove Noites, mais um trabalho característico do jornalista, talentoso e premiado romancista brasileiro Bernardo Carvalho. Apesar de seu texto objetivo, sua fragmentação narrativa exige maior atenção do leitor, uma de suas características principais. Nesta obra, este início torna-se um exercício de perseverança para o leitor mais interessado em leituras fáceis.

A trama se inicia na cidade sul maranhense de Carolina, na divisa com Goiás (hoje Tocantins). Um enfoque em etnologia e antropologia, ciências nas quais o protagonista e demais personagens estão envolvidos, marcam a base de veracidade deste romance sobre fatos e pessoas reais. Narrado em dois tempos, a obra revela dois protagonistas: o etnólogo americano Buell Quain e o narrador-autor brasileiro Bernardo de Carvalho.

Ao relatar as viagens de estudo e contatos ou relacionamentos, o narrador revela costumes indígenas pouco conhecidos, bem como as interações com nomes importantes como Lévi-Strauss, Ruth Benedict e os irmãos Villas-Bôas. O protagonista vai sendo revelado como uma figura extremamente problemática, apesar de rica, jovem - porém vivida – e inteligente.

As descrições sobre a região do Xingu, as fazendas, os indígenas e as aventuras de um pai maluco enriquecem sobremaneira e dão uma boa suavizada na leitura que deixa de ser tão densa. Por aí, descobrimos que o Vaticano tem terras extensas na região e a denúncia de que nas terras marginais às reservas indígenas vive a escória do Brasil, tipo degenerado de brasileiros que se influenciam negativamente e exploram os indígenas.

Enfim, para contar a história infeliz do norte-americano no Brasil no final da década de 1930, Carvalho, com sua ótima veia jornalística, faz excelentes explanações sobre as regiões, comunidades e costumes que envolveram o ianque quando aqui viveu. Além de que o livro torna-se também um laboratório de psicologia ao analisar culpas, dúvidas, influências, atitudes e responsabilidades.

São na realidade duas histórias contadas paralelamente, sendo uma o fulcro da outra. Misto de ficção e fatos reais, Carvalho viveu pessoalmente os fatos que relata no crepúsculo do romance. E o narrador vai de sua infância à maturidade – como num romance de formação - para contar sua fantástica história em busca de revelar outra história que o despertou em um artigo de uma antropóloga num jornal. E o resultado é este romance que cresce, cresce como um bolo a cada página para se transformar numa saborosa narrativa.

Por seu valor de teor jornalístico, este livro tornou-se leitura obrigatória na Fuvest e em diversos cursos de Comunicação pelo Brasil.

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Valdemir Martins

Capa: 1. Capa do livro; 2. A região indígena; 3. Bernardo criança e o índio Xingu; 4. Buell Quain; 5. O prédio em Nova Iorque; 6. Bernardo de Carvalho.

17.01.2024

6 de mar. de 2024

A leitura branda de O Lugar

A maioria das pessoas já passou pelo agastamento de um funeral familiar. Descrevê-los, nem pensar. Mas a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2022 (entre outros), a francesa Annie Ernaux enfrentou o desafio e reviveu, em detalhes, a morte e os funerais do pai de sua protagonista no livro O Lugar. É de uma tristeza e de uma realidade incomparável.

Desta forma principia seu romance familiar, uma vez que a protagonista é ela mesma neste seu trabalho autobiográfico ou autossociobiográfico como prefere a Fósforo Editora. Debruça-se na história do pai, com ricos detalhes e considerações sociais e psicológicas, e pleno de nostalgia.

Numa linguagem simples, sem arroubos literários, neste seu primeiro livro Ernaux desfia os hábitos, os costumes e a sociedade na região de Le Havre, no norte da França – provavelmente na cidade de Yvetot -, principalmente no período da Segunda Guerra e no pós-guerra. É também uma história simples, até corriqueira, de uma família, suas comunidades, segredos, sofrimentos e alegrias. Ali nasceu e cresceu a menina Ernaux, que apesar das dificuldades tornou-se escritora.

A obra desperta reminiscências nos leitores, o que a torna atraente para a leitura. Mas não prende o leitor pela ansiedade de se saber a próxima ação do livro. Pois, trata-se de um texto brando sobre a vida real numa época ultrapassada.

Aos dezessete, ocupada com as necessidades e vontades intrínsecas da idade, vivia sendo recriminada pelo pai que pouco aceitava a evolução e o progresso. Às mudanças dos tempos. Um homem que disse a ela “Os livros e a música são bons para você. Eu não preciso de nada disso para viver”. Um ser vivendo em seu próprio mundo.

Após largar a universidade no meio do curso, Ernaux foi viver a própria vida em Londres e depois voltou para estudar Letras. Após o casamento, o genro distante, o neto e a velhice dos pais. O pai doente. Talvez não sobrevivesse à leitura que ela fazia de Os Mandarins, da Simone de Beauvoir. E daqui, retornamos ao funeral.

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Valdemir Martins

Capa: 1. Capa do livro; 2. O funeral; 3. Yvetot quando ela nasceu; 4. Annie estudante; 5. A autora na atualidade.

11.01.2024 

27 de fev. de 2024

Andando Por Lugares Devastados

Quase toda a ruína que uma guerra propicia pode ser observada no livro (e filme) O Menino do Pijama Listrado, do escritor irlandês John Boyne, cujo enredo, desenvolvido de forma brilhante pelo autor, traz ao leitor as devastações causadas pelos nazistas na vida de todos os envolvidos. Tanto nos soldados e suas famílias, como nos prisioneiros e nas áreas físicas afetadas, mas, principalmente, na mente humana.
Para Boyne, sua história, apesar de muito bem contada, ficou incompleta. Faltava contar as consequências da guerra nos sobreviventes e seus descendentes. O espólio e o rescaldo do maior flagelo humano dos tempos modernos. E aqui está o autor com a continuação – escrita durante a pandemia - da sua obra mais famosa, lançando Por Lugares Devastados, onde nos apresenta o drama das mentes e as culpas num intenso romance de pós-guerra.

A protagonista é nada menos que Gretel, a filha do chefe do campo de concentração de Auschwitz e irmã de Bruno, o protagonista do primeiro livro. E sua história, a partir do fim da guerra, é contada em dois tempos simultaneamente, entre os 15 e os 91 anos. Deslumbrante até o final e tão ilusório quanto os banhos nos campos de concentração.

Neste ínterim, Boyne volta-se para o interregno entre essas idades da protagonista, cujos traumas evidenciam-se acentuadamente fazendo de sua vida uma verdadeira montanha russa de emoções. E mesmo refugiando-se a 17 mil quilômetros da Europa, Gretel continua encontrando fantasmas da guerra. Mas, no final, ela vai mesmo é defrontar-se com assombrações, perspectivas obscuras e terror em seu próprio quintal aos 91 anos.

É comum encontrarmos na internet e até na mídia uma enxurrada de críticas nefastas a estes dois livros de Boyne. Todas de cunho pessoal e nenhuma delas de caráter literário. Esse fato denota quanto muitas pessoas hoje em dia estão mais preocupadas em criticar aspectos políticos, ideológicos, psicológicos e sociais de uma obra. Não têm o mínimo de senso crítico para perceber que se trata de arte e, como tal, merecem apenas, neste caso, as críticas específicas de especialistas em literatura. A analista do jornal Folha de S. Paulo Juliana de Albuquerque chega ao absurdo de considerar o livro como infanto-juvenil (sic) e a declarar que caso não tivesse que fazer uma resenha do livro jamais o teria lido, numa demonstração claramente preconceituosa para uma “jornalista” metida à crítica literária. Isto, para citar apenas um caso que considero grave.

Porém, John Boyne é um excelente contador de histórias. Um dos melhores. E a descrição direta de cenas alegres e principalmente as de tensão extremamente tristes são simplesmente brilhantes, emocionantes e fluídas. Um grande romancista deixa, como ele, as grandes surpresas, jamais esperadas, para o fim. Seu suspense é lírico e envolvente. Seu romance é sobre culpa. A nossa, a dos outros, e as dos que nos são caros.

Fica a minha recomendação enfática para a leitura sequencial de O Menino do Pijama Listrado e Por Lugares Devastados, ambos pela Companhia das Letras.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Gretel com a mãe e o irmão; 3. Torturada pela Resistência Francesa; 4. Aos 91 anos; 5. O prédio em Mayfair; 6. John Boyne.

06.01.2024 

16 de fev. de 2024

Tudo é Rio: elogiar é plágio.

Elogiar Carla Madeira é plágio. Todos o fazem. Até os críticos mais rigorosos. Seu livro de estreia Tudo é Rio, de 2014, é uma obra de qualidade literária reconhecida com atraso. Estreou e não brilhou, por conta da editora da época que não investiu no seu talento. Jornalista e publicitária mineira, Madeira mudou de editora e em 2021 teve sua obra revisada e relançada pela Record e o sucesso, tão grande, levou-a a ser a escritora brasileira mais lida naquele ano, perdendo só para o fenômeno Itamar Vieira Júnior e seu Torto Arado (veja análise em https://contracapaladob.blogspot.com/2021/01/ver-os-homens-derramando-sangue-para.html ).

Em sua linguagem direta, crua e sucinta, Carla inicia esta obra chocando. No ambiente, no clima, no relacionamento, no sexo excitante e na religião desacreditada. Na perda da inocência. E, como um rio, tudo passa ligeiro e indelével. Suas metáforas são brilhantemente colocadas enriquecendo o texto e a compreensão de toda uma situação - até complexa – numa única frase.

Delicadamente Carla passa a expor a amizade, o amor e a família; afrontosamente Carla desenrola o terrível ciúme, o casamento; tudo bordado com os costumes de uma época. E assim ela desenvolve o enredo costurando vidas pregressas – como no vestido da noiva - para nos entranharmos, ansiosamente, nas tramas do livro.

E os desafios, desaforos, dão lugar ao intenso sofrimento. Triplo. Como escreveu a própria Carla “a dor vicia enquanto mantém a gente vivo”. E em meio a um intenso sofrimento de morte e desencontro, ela abre espaço para um discurso sobre Deus, para consolo ou raiva de quem quer apegar-se a Ele. O julgamento vazio, inconsequente, arrebentando pessoas bondosas e extraordinárias é outra linha crítica no cinzelado texto da autora. Mas a justiça, divina ou não, sempre se faz presente.

Esta obra-prima não trata de um triângulo amoroso como algo simplório e corriqueiro como faz crer o divulgado pela editora e propalado nos sites de livrarias. Trata-se de um belíssimo caso de amor atravessado por uma puta. Enquanto o casal tem muito amor, apenas suspenso por uma tragédia, a mundana tem tão somente paixão e tesão, e efêmeros, como um verdadeiro desafio que foi superado. 

Esse é o fulcro deste esplendoroso romance escrito como se confeitado. Poético às vezes, agressivo com frequência, mas fluido com leitura fácil e agradável. Carla consegue usar linguagem simples, popular, sem ser vulgar. Pelo contrário, enriquecendo as narrativas com o que lhe é imensamente adequado.

São aqui muitas vidas, muitas feridas e muitas felicidades. Dor e alegria. Assim a vida corre, arrasta, envolve, revira e deságua. Assim, tudo é rio.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. A carpintaria; 3. A família feliz; 4. O bordel; 5. Final feliz; 6. Carla Madeira.

30.12.2023 

5 de fev. de 2024

New York: uma sequência de erros portugueses.

Para quem ama a cidade de Nova Iorque - ou tem vontade de conhecê-la - e não sabe sua história, faz-se importante recomendar que em sua próxima (ou primeira) viagem visite a Peter Minuit Plaza, no ponto mais meridional da ilha. Ou, se preferir, ler a excelente obra Arrancados da Terra, do premiado escritor e jornalista brasileiro Lira Neto.

Não se trata de uma história qualquer. Ela começa na Idade Média, quase um século após as descobertas das Américas. E mais uma vez com o sofrido povo judeu. Aqui, Lira insere-nos na radical e absurda Inquisição portuguesa, apresentando detalhes de um processo inquisitório que nos faz acreditar ser o princípio inspirador dos métodos nazistas, tamanha é a crueldade praticada pela Igreja Católica. Resultado: êxodo dos judeus, os novos-cristãos portugueses, para países livres da Inquisição.

Enquanto porcamente os portugueses colonizavam o Brasil, pois não sabiam o que fazer com tanta terra, nas Províncias Unidas (Holanda) calvinistas o Banco de Câmbio e a Bolsa de Valores eram organizações fundamentais a uma sociedade essencialmente urbana, com o grau de alfabetização mais elevado do continente europeu e a maior média salarial paga a funcionários públicos e privados no mundo. Lá os então cristãos-novos fugitivos encontraram liberdade cultural, econômica e religiosa. E sucesso.

Entra em cena, então, a Companhia das Índias Ocidentais (CIO) criada pelos holandeses exclusivamente para prejudicar o inimigo reino espanhol que, por razões familiares e de herdeiros, governava também Portugal. Assim, em 1621 todas as rotas comerciais ibéricas passam a ser controladas pelos holandeses. Invadir o Brasil, uma colônia indefesa e rica produtora de açúcar, tabaco e pau-brasil torna-se uma meta da Companhia, uma poderosa empresa, híbrido de força militar e companhia comercial.

A um forte e bem sucedido ataque da grande esquadra holandesa a Salvador, surge mais uma teoria da conspiração culpando cristãos-novos portugueses refugiados na Holanda. Na Espanha, prevaleceu a ideia de que os grandes responsáveis pela queda de Salvador teriam sido os judeus. Embora não houvesse nenhuma menção quanto a isso nas narrativas presenciais neerlandesas ou luso-brasileiras, persistiu em Madri a opinião de que os marranos haviam arquitetado toda aquela “trama maligna”.

Enfraquecidos por pura devassidão e desleixo, em 1625 os holandeses são expulsos da Bahia, derrotados por uma poderosa esquadra luso-espanhola. Mas, seis anos depois, muito mais organizados e em número maior de pessoas, os holandeses conquistam Pernambuco rechaçando os luso-espanhóis, E, desta vez, esquematizando-se para trazer, sob um programa de incentivos de colonização organizada, os cristãos-novos fugidos de Portugal que pela fluência da língua seriam fundamentais nesta nova conquista.

Após a aquisição, foi nomeado governador geral do Brasil o nobre protestante conde João Maurício de Nassau, de 32 anos, formação humanística exemplar e forte experiência militar. Após conquistar também Alagoas, Paraíba, Itamaracá, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão, Maurício pede e começa a receber colonos judeus com profissões diversas e investidores holandeses, abrindo o comércio à iniciativa privada. Depois de anos de sucessos no desenvolvimento da região, Nassau é obrigado pelo governo holandês e pela CIO a retornar para Amsterdam. Aproveitando-se da vacância de governo na região, nacionalistas e rebeldes luso-brasileiros formam milícias e iniciam uma guerra de libertação e reconquista principalmente da capital Recife. Com o apoio dissimulado do rei português D. Manoel IV, em janeiro de 1654 os rebeldes brasileiros reassumem Pernambuco e os holandeses restantes juntamente com os judeus são expulsos da então capital brasileira.

Os rebeldes, na realidade, eram liderados por fazendeiros de tabaco, pau-brasil e cana e produtores de açúcar que deviam muito dinheiro aos judeus holandeses e à CIO. Assim, percebendo suas produção e vendas comprometidas resolveram expulsar seus credores, formando milícias com seus empregados, escravos e indígenas. Foram eles, na realidade, os grandes responsáveis pela expulsão dos holandeses de Pernambuco, sem medir o que essa colonização havia trazido de progresso e civilização para aquela região. Só importou egoisticamente seus próprios interesses e não os de uma futura nação.

Assim, um fato historicamente pitoresco foi o desgarramento de rota de uma das naus com os judeus holandeses e cristãos-novos, que depois de muitas atribulações, desembarcaram numa pequena e modesta ilha de possessão holandesa, denominada Nova Amsterdam, hoje região de Nova Iorque na América do Norte.

Esta obra de cunho documental histórico é recomendada aos que se interessam pelo assunto e pela história do século XVII. O Padre Antônio Vieira – personagem importante da literatura portuguesa e da História do Brasil - é figura atuante neste contexto, assim como todo um histórico de aventuras e desventuras da colônia judaica na Europa e nas Américas e toda a execrável e genocida perseguição da Inquisição da Igreja Católica. A hipocrisia e oportunismo português e luso-brasileiro em meio a todo sucesso holandês e judaico é algo também muito marcante.

Este é, além de um livro surpreendente, um manancial histórico brilhante, de prazerosa e enriquecedora leitura onde se vão entender os terríveis erros cometidos pelos portugueses. Primeiro enxotando os judeus de seu território na Idade Média e posteriormente apoiando maciçamente e de forma dissimulada os luso-brasileiros rebeldes - para não despertar a ira dos holandeses e espanhóis, então seus inimigos políticos - arrancando-os da terra de sua colônia brasileira, e empurrando-os – após extraordinárias realizações no nordeste - para desenvolver, fora de sua jurisdição, a maior cidade do globo em termos econômicos, políticos e culturais, até nossos dias.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Lisboa no século XVII; 3. Amsterdã no século XVII; 4. Tribunal da Inquisição em Portugal; 5. Tortura da Inquisição; 6. Pe. Antonio Vieira, o inquisidor brasileiro; 7. Mauricio de Nassau; 8. Ponte construída por Nassau em Recife; 9. As "cidades irmãs" Nova Iorque e Recife; 10. Lira Neto.

16.12.23

26 de jan. de 2024

Treblinka: a inacreditável sobrevivência da alma judaica.

Não há na história da humanidade um povo tão longevo, sofrido e batalhador. O povo judeu, com seus primórdios bíblicos mantém até os dias atuais a mesma sina de povo unido e vencedor. Marcado por episódios épicos como o êxodo do Egito, até aos tormentos atuais de subsistência heroica em meio a territórios antagônicos, o povo hebreu teve um ápice de sofrimento quando os nazistas determinaram a sua extinção. O histórico Holocausto nazista tem inúmeros registros em depoimentos e documentos, em livros, nas artes e em imagens mostrando quão cruel foi “a solução final” planificada por Hitler e seus asseclas.

Um dos mais importantes registros dos massacres encontra-se no livro Treblinka, do judeu francês Jean-François Steiner. Uma obra que registra diametralmente a mansidão e a surpreendente revolta avassaladora dos prisioneiros, em seus mínimos detalhes, todos históricos, pois realmente aconteceram e foram testemunhados.

Ao conquistar os territórios da Polônia, Ucrânia, Bielo-Rússia e Estados Bálticos (então pertencentes à União Soviética) a Alemanha nazista herdou uma população de milhões e milhões de judeus indesejados, por serem de “raça inferior”. Nasceu assim, para Hitler, a necessidade urgente de livrar-se deles e  foram então criados inúmeros campos de concentração naquela região. Treblinka, na Polônia, foi um dos pioneiros.

Diferentemente dos famosos campos de concentração de Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen, Buchenwald e Sobibór - dentre os 48 que existiram, entre concentração, seleção, guetos e eliminação -, Treblinka foi um campo de extermínio com um histórico diferenciado dos demais em diversos aspectos: era o local onde os judeus eram mais humilhados e onde a SS aplicava com mais dedicação e eficácia seu programa de despersonalização do prisioneiro e dos grupos de prisioneiros, fazendo-os perder psicologicamente sua identidade como povo ou raça, baixar a resistência e perder qualquer esperança, levando-os a encaminharem-se à morte como um rebanho de ovelhas. Afinal, era um campo de extermínio. São aspectos importantes muito bem explicados por Simone de Beauvoir no prefácio da obra, publicada em Paris em 1966.

Steiner inicia seu impecável relato abordando os pogroms soviéticos de massacre de judeus que passou a ser inteligentemente usado pelos nazistas naquela região. A seguir, a estratégia dos guetos, com o uso sistemático e eficiente dos condicionamentos psicológicos. Seus relatos são suficientemente detalhados - e, às vezes cruéis - para o entendimento eficaz desta preciosa resenha histórico.

Passa a narrar a criação do Campo de Treblinka como pioneiro dedicado apenas ao extermínio e à recuperação de bens, tudo executado, sob açoite, pelos próprios prisioneiros. A recuperação referia-se às roupas, ao dinheiro e aos demais bens portados pelos judeus para reaproveitamento; inclusive a extração de dentes e obturações de ouro dos mortos com alicates.

E neste ponto do livro, com certeza, o leitor começa a refletir horrorizado sobre o significado de todo esse mal – físico, psicológico e espiritual – impetrado pelos nazistas contra o povo judeu; jovens, idosos e crianças, sem exceção. E Steiner não economiza palavras e detalhes para descrevê-lo. E a simples e conformada aceitação da morte pelos judeus é sintetizada na frase de um personagem: “tal como fazem certas aranhas, eles ‘adormecem’ as vítimas antes de eliminá-las”.

A formação do primeiro espírito de um Comitê de Resistência surge e a alma judaica começa a formar uma união entre os prisioneiros e, simultaneamente, recrudesce a violência dos nazistas contra eles a extremos inacreditáveis. Não fosse este livro um documento de testemunhas do massacre, seria impossível aceitar os absurdos que nos são narrados.

O Comitê percebe todos os estratagemas dos alemães e dispõe-se a tramar uma rebelião. E, inacreditavelmente, inicia-se um jogo psicológico dos judeus com os alemães levando estes a acreditar na submissão total e absoluta dos prisioneiros. E o objetivo da revolta era ser um acontecimento de alcance histórico, com os evadidos servindo de testemunhas que vivenciaram aquele inferno para registro da Humanidade. Não tinha como meta simplesmente salvar vidas, pois os revoltosos, mero trapos humanos, pouco se importavam com a morte. Para os prisioneiros a revolta assumia uma dimensão extra: a destruição de um mito, a reconquista de sua condição humana.

Com idas e vindas, a revolta finalmente acontece. Mas até lá, Steiner leva o leitor a agonias e ansiedade como se fosse um prisioneiro de Treblinka, tal é o envolvimento em que consegue aprisionar seus leitores. Assim, pondo termo aos sofrimentos, brinda-nos ainda com impressionantes dados históricos de sua pesquisa. E revela, inconteste, que o histórico antissemitismo era algo muito forte àquela época, tanto que dos cerca de seiscentos fugitivos, apenas quarenta conseguiram sobreviver ao ódio dos camponeses poloneses, dos fascistas ucranianos, dos próprios alemães e de diversos grupos radicais soviéticos e europeus.

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Valdemir Martins

Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Localização; 3. Chegada ao campo; 4. Maquete; 5. Estação; 6. Hospital dissimulado para extermínio; 7. Fumaça das cremações; 8. Franz Stangl, chefe do campo; 9. Samuel Willenberg, último sobrevivente; 10. Jean-François Steiner, autor.

16.12.23