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29 de jan. de 2025

Salvar o Fogo com lirismo e magia.

Felizmente, para a literatura brasileira e para nós, leitores, uma importante evolução literária de Itamar Vieira Junior pode ser constatada ao se iniciar a leitura de sua mais recente obra, Salvar o Fogo, ganhadora como Melhor Romance Literário  do Prêmio Jabuti de 2024. Fato que não me surpreendeu, uma vez que Itamar já havia conquistado com seu romance de estreia Torto Arado, nada menos que quatro premiações: o primeiro Jabuti de sua carreira  (2020), além dos internacionais Oceanos (20200,  Leya (2018) e Montluc Rèsistance et Liberté (2024).

Seu texto já antes claro e sucinto, traz-nos, a princípio, a história de um verdadeiro moleque – indesejado no rico preâmbulo que principia o livro – refutado por sua irmã tutora. Suas peripécias na infância e sua pureza bem retratam a instabilidade de muitas pessoas adultas.

A insegurança infantil em um lar desintegrado pela pobreza, pela educação capenga, pela falta de liderança paterna e pela interferência da religião é explorada por Vieira como definidor da vida e da personalidade dos personagens integrantes dessa família, nas quais, com certeza, muitos leitores irão se identificar. Fugir da “vidinha ordinária, rasteira, da penúria” é algo bastante comum, senão corriqueiro, por este Brasil afora.

Com uma excelente técnica narrativa, sua obra bem estruturada é muito bem escrita, criativa, com um enredo simples que dá muitas voltas sem sair do lugar, como num jogo de tabuleiro mudando apenas as peças de lugar e gerando encantamento. No entanto, o lirismo e a qualidade literária são excelsos e de uma beleza fluida. O diálogo quase ilógico, por exemplo, de duas senhoras, uma ex-prostituta e uma devota auto anulada, é de uma riqueza exuberante. Outro destaque fica por conta da narrativa, às vezes com viés de realidade mágica, o que enobrece sobremaneira sua qualidade literária.

Juntando os pedaços de uma família ao redor de um leito de um hospital humilde, Vieira constrói um mosaico de emoções dos personagens, poucas vezes encontrado em nossa literatura. Assim, introduziu na narrativa a terceira protagonista, nada menos que o liame ao seu primeiro livro, com uma incrível história.

A escancarada crítica à religião e suas regras retrógradas se faz permanente ao longo do texto. Personagens extremamente religiosos criticam – e põem em dúvida – atitudes dos monges, seus costumes, suas cobranças e seus sermões. Também não escapam de sua condenação os abusos dos poderosos sobre os humildes e necessitados, os preconceitos gratuitos e as superstições; igualmente os políticos ordinários são expostos. Tudo numa severa denúncia originária dos abusos colonialistas principalmente aos índios e aos escravos, entranhados inexoravelmente em nossa história.

Portanto, a injustiça social, para não falar na divina - uma vez que o caos, a corrupção e a violência são frutos do Homem, mesmo os sagrados-, faz-se presente com muita força, representando o protesto e a denúncia que marcam intencionalmente as obras do autor. E, segundo ele, este é o segundo livro de uma trilogia (iniciada com Torto Arado) sobre os que vivem da terra, sempre ligando seus personagens como Maria Cabocla e Bibiana, colocando, assim, ênfase e força nas figuras femininas.

Além das denúncias e protestos velados, cumprindo a saga da miséria na literatura nordestina brasileira, de Rachel a Amado, de Cabral a Suassuna, passando por Graciliano, o contemporâneo Vieira faz jus e honra até Castro Alves e Aluisio Azevedo com sua obra em contínua evolução. Bons ventos o trouxeram e outros tantos espalharão sua obra para que todos a conheçam. Que assim seja!

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Valdemir Martins

14.12.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Moleque brincando no rio Paraguaçu (BA); 3. Lateral do mosteiro da vila; 4. O rio e a floresta; 5. A irmã tutora Luzia lavando no rio; 6. As ruinas do mosteiro; 7. Torto Arado, o primeiro livro da trilogia; 8. O autor Itamar Vieira Junior.

6 de jan. de 2025

A eterna vida do falecido e incomparável Pedro Páramo.

Para quem “começou a escrever para combater a solidão” – como insistia em dizer -, o mexicano Juan Rulfo galgou estágios de sucesso literário jamais por ele imaginado, tornando-se um dos mais importantes escritores latino americanos de todos os tempos. Sua obra prima Pedro Páramo rodou o mundo e foi traduzida para trinta e dois idiomas. E, como afirmam os historiadores literários, serviu de cartilha para grandes escritores contemporâneos.

Dele nasceu o Realismo Mágico latino americano, onde beberam Gabriel García Márquez, Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Juan Carlos Onetti e  Carlos Fuentes, entre outros. E a obsessão de Rulfo pelas releituras e cortes levou suas obras a uma concisão e objetividade tão marcantes como as de Graciliano Ramos no Brasil. É contido no uso de adjetivos e cortou cerca de cem páginas deste trabalho antes de editá-lo. Mas, infelizmente, Rulfo deixou-nos apenas dois livros, este romance Pedro Páramo e a coletânea de contos Chão em Chamas. Duas obras suficientes para enriquecer a literatura tão fortemente que poucos autores contemporâneos o conseguiram igualar, segundo os estudiosos.

O protagonista desta obra é um órfão e chama-se Juan – assim como o autor – em busca de um pai e, a pedido da mãe, sai em busca de suas origens. E o que ele encontra é fantástico, literalmente. E logo de início extasiamo-nos com um texto deslumbrante, onde a leitura prazerosa corre solta em surpresas constantes. Múltiplos personagens inconfundíveis invadem nossa leitura. Um mais rico e surpreendente que o outro, passando como fantasmas.

Seu texto lírico e profundo envolve-nos como num sonho: “Ouvia de vez em quando o som das palavras, e notava a diferença. Porque as palavras que havia ouvido até então, e só então fiquei sabendo, não tinham nenhum som, não soavam; sentiam-se; mas sem som, como as que se ouve durante os sonhos.”

Estamos no mundo dos mortos, embaixo da terra onde eles conversam e reclamam. Outros estão em cima e contam suas histórias. E Rulfo no embalo conta tudo sobre a vida e a morte deles. E nada lúgubre ou fantasmagórico. Apenas um romance em cidade pequena, um povoado, que apesar de morto mantém viva suas memórias. Uma riqueza literária desse estirpe como ainda não havia lido.

Usando das mais primorosas técnicas literárias, Rulfo enleva-nos em sua explosão literária, fugindo dos enredos solenes e lineares, e colocando-nos frente a um palavreado lúdico que obriga-nos a construir com ele o que quisermos para, inescapavelmente, chegarmos ao protagonista do título através dos inúmeros figurantes que seu filho encontra antes de encontrá-lo. Sua narrativa não é um prêt-à-porter. Você precisa ajudá-lo, absorvendo sua criatividade e sentindo o êxtase de suas explanações.

Enfim, um livro para quem realmente aprecia qualidade literária de primeiríssima grandeza. Único e incomparável. Uma obra que celebra a vida através dos mortos. Brilhante!

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Valdemir Martins

21.11.2024

Obs: Após a leitura deste livro, recomendo assistir à minissérie do mesmo título na Netflix. Trata-se de outra obra prima, agora, cinematográfica.

Fotos: 1, Capa do livro; 2. A pequena cidade paterna; 3. O filho Juan Preciado: 4. O pai Pedro Páramo; 5. Personagens da obra; 6. o autor Juan Rulfo; 7. A excelente minissérie no Netflix.

18 de dez. de 2024

A Vegetariana brotou do nada e virou uma árvore.

No meu conceito literário, toda obra escrita sobrevive, sobressai e obtém êxito ao coadunar qualidade literária, um bom texto e um ótimo enredo, seja ela um romance histórico ou de ficção ou mesmo um ensaio. E com certeza, meu humilde conceito não se alinha aos da Academia Sueca, outorgante do Prêmio Nobel de Literatura. Dos últimos dez premiados, tenho sérias restrições à qualidade literária dos três mais recentes: a simplória Annie Ernaux, o repetitivo e aborrecido Jon Fosse e, agora, a feminista Han Kang.

Longe de me considerar um expert literário, emito apenas uma opinião pessoal por me reconhecer uma pessoa culta, de bom senso e de bom gosto. E ninguém é obrigado a concordar ou discordar do que penso. Assim, assumo o direito de criticar a Academia, uma vez que ignorou talentos e escritores fabulosos como Liev Tolstói, Marcel Proust, James Joyce, Virginia Woolf, Jorge Luis Borges, Paul Valéry, Philip Roth, Vladimir Nabokov, Mia Couto, Chinua Achebe e Paul Auster, entre outros.

Defendida com toda a energia pelas feministas de plantão, a obra A Vegetariana, da mais recente premiada da Academia, a sul coreana Han Kang, não passa de um livro simples, com um texto chocante, que trata de uma mulher neurótica e radicalmente vegana, que eventualmente é apenas usada por seu marido e pelo cunhado. Assim como acontece em centenas (ou milhares) de outras obras, sem qualquer crítica efetiva da inócua cultura woke.

Li este livro após o êxtase de ler Baumgartner, do incomparável Paul Auster. Talvez este tenha sido o meu erro, pois não foi como descer uma escada, mas como sofrer uma queda violenta. A Vegetariana é construído a partir de personagens perdedores, fracos, com mútua exploração. Talvez seja esse o mérito da obra, o qual não valorizo, principalmente por não conter qualidade literária.

Um boçal escolhe a esposa por não ser atraente e inteligente, para não ter problemas no casamento. A esposa deixa-se dominar por uma paranoia e altera a sua vida e a de todos os que estão ao seu redor, principalmente familiares. A autora explora profundamente esse aspecto, ora em episódios de violência física, ora psicológica. Cenas cruéis e devastadoras, de várias formas, são aqui também exploradas, culminando com abordagens sexuais sui generis e marcantes.

Desespero, angústia e reveses apoderam-se da obra de forma surpreendente e de ótima construção pela autora. E como leitores, participando da obra, impacientamo-nos diante das obsessões dos personagens que rodeiam a poderosa protagonista vegetariana radical. Uma conquista brilhante de Kang, envolvendo-nos sobremaneira neste curto e agoniante romance que lhe valeu, já em 2007, o Man Booker Prize.

Nesta narrativa psicológica, os personagens são negativistas: nunca pensam e refletem sobre o melhor, o positivo. Mas, sempre sobre culpas e atos negativos. E prevalece então a resignação. E tudo nos faz refletir sobre a vida; a nossa vida. Onde perdemos tempo em relacionamentos e reveses ou onde o ganhamos, como prêmios, também em relacionamentos e conquistas. Vivemos ou perdemos tempo e oportunidades na vida? Tudo isso, no crepúsculo da obra – sua terceira parte -, onde a autora consegue trazer-nos uma boa melhora no nível literário.

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Valdemir Martins

17.11.204 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Prato vegetariano; 3. O espancamento do pai; 4. O flagrante do marido; 5. A internação no sanatório; 6. Tornou-se uma árvore; 7. A autora Han Kang.

1 de dez. de 2024

2041 – Como a Inteligência Artificial vai Mudar sua Vida.

A aceitação de novas tecnologias pela sociedade passa inescapavelmente pela sua compreensão e assimilação pelos seus principais difusores, como os responsáveis pelos meios de comunicação através da mídia, do cinema, das artes e das redes sociais, entre outros. Sua má compreensão e difusão incorreta pode causar estragos inimagináveis na utilização das tecnologias, podendo até condená-las.

A Inteligência Artificial (IA) é a bola da vez, já está em nossas vidas e veio para ficar, aceite ou não a sociedade. Mesmo com as limitações das ideologias pré-fabricadas e das narrativas superficiais inconsequentes expondo essa tecnologia como algo maléfico – sob o efeito das crenças sociais embasadas há tempos em mitos e embustes religiosos (como diz Yuval Noah Harari em seu novo best-seller Nexus) -, “os apregoados monstros ou robôs dominadores de mentes,  os criadores de desemprego e os humanos que querem dominar o mundo” nada poderão fazer diante da realidade que se apresenta na atualidade e no futuro.

Há de se considerar, portanto, que embora os humanos não tenham a capacidade da IA de analisar uma enorme quantidade de dados ao mesmo tempo, as pessoas têm uma habilidade única de utilizar experiências, conceitos abstratos e senso comum para tomar decisões, capacidades hoje impossíveis pela IA.

E é disso que trata a obra 2041 – Como a Inteligência Artificial vai mudar sua Vida nas Próximas Décadas, do taiwanês Kai-Fu Lee e do chinês Chen Qiufan, preocupados em difundir de maneira realística, clara e objetiva a verdade sobre essa importante e (hoje) fundamental tecnologia.  Sua estratégia  para que o livro não seja mais um daqueles teóricos pesados e que a assimilação dos conceitos e das utilidades da IA seja natural, foi transmiti-los de forma simples, direta e agradável através de contos.

Existem inúmeros cenários em que a IA pode melhorar profundamente a nossa sociedade, pois tem como uma das principais consequências a geração de riqueza suficiente para ajudar a reduzir a fome e a pobreza no mundo. E com certeza esta é a forma bastante adequada para que até os leigos entendam o que já está acontecendo via IA e o que vem por aí.

A tática de usar contos onde o emprego da IA está presente nos enredos facilita muito a compreensão da tecnologia. Engenhosamente, ao final de cada conto os autores inserem uma análise mostrando como a IA agiu em cada caso e como tecnicamente isso foi possível aplicado aos dias atuais. Comparavelmente, seria o equivalente a ensinar aspectos da ciência a crianças via historinhas em desenhos animados e numa linguagem bastante adequada. Nem por isso os autores deixam de fazer alertas importantes sobre os perigos de você – inconscientemente – ser manipulado.

E a intenção dos autores é proporcionar conhecer de forma correta esta tecnologia que já está mudando o status quo do mundo. E as pessoas precisam ter essa constatação de forma positiva no seu dia-a-dia, uma vez que a IA é irreversível e está aí há alguns anos participando de nossas vidas sem que a reconheçamos ou percebamos obviamente. A grande maioria das pessoas, crianças, jovens e idosos, navegam pelo Facebook e pelos sites da Amazon, por exemplo, sem que saibam como estão sendo observados ou influenciados.

Lee foi vice-presidente da poderosa Google chinesa e um dos principais desenvolvedores da Inteligência Artificial desde sua origem há décadas, e Qiufan é um consagrado escritor de ficção científica moderno. A união dessas duas competências, com profundo conhecimento de seus cabedais, leva-nos a uma obra extremamente leve, fácil e útil para quem tem o interesse e/ou a necessidade de conhecer essa tecnologia – principalmente os jovens - sendo ou não da área de informática.

E ao contrário do que se projeta nas distopias de futuros de fim de mundo e de terra arrasada, os autores nos apresentam as imensas possibilidades de vida e sobrevida com a utilização da IA. Da descoberta de novos fármacos e cura de doenças às novas formas biológicas de se produzir alimentos e combater a fome; da redução de custos na produção e venda de manufaturados à rapidez e eficiência nos serviços domésticos e nos transportes públicos e individuais, entre outras benfeitorias, são e serão o resultado desse novo mundo administrando lógica e celeridade pela IA.

Sim, um novo mundo que daqui a vinte anos mudará completamente a vida de todos e ensejará que as crianças de hoje vivam num mundo real que para nós hoje não passa de ficção científica.

Esta obra deveria ter sua leitura obrigatória nas escolas de nível médio e universitário. Mas como neste país a educação está entregue a um governo e a grupos ideológicos que pouco se interessam pelo futuro (e mesmo pela educação), recomendo a leitura de 2041 – Como a Inteligência Artificial vai mudar sua Vida nas Próximas Décadas para todos aqueles que têm sob sua responsabilidade ou interesse afetivo pessoas próximas e familiares jovens que ainda têm um futuro pela frente.

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Valdemir Martins

30.09.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Os canais de mídia; 3. A tecnologia do futuro; 4. Os contos peculiares deste livro; 5. A horta tecnológica; 6. A medicina e a cura via IA; 7. Os serviços domésticos automatizados; 8. O futuro da integração humana e tecnológica; 9. Kai-Fu Lee; 10. Chen Qiufan.

13 de nov. de 2024

Baumgartner, um escritor descrito por um arquiteto.

Há dias que tudo começa conturbado. Algo dá errado, um esquecimento, um acidente e o inesperado, e você prefere não ter levantado da cama, pois não consegue realizar aquilo que precisa. E esse é o primeiro dia do protagonista-título Baumgartner, em mais uma grande obra – e último romance - do consagrado escritor americano Paul Auster.

Dir-se-ia que trata-se de um romance sobre o azar, tamanha a intensidade de coisas erradas sequenciais que recepcionam o leitor, não fosse uma narrativa tremendamente humana, peculiaridade forte nos textos de Auster. Com todo seu talento, ele inicia a obra, por conseguinte, traçando as características atrapalhadas de um viúvo de setenta anos enfrentando imprevistos logo pela manhã.

O texto carrega nas tintas do sofrimento, tudo para untar as páginas que vão receber o sentido luto pela esposa do protagonista. E isso começa pela leitura de um texto autobiográfico dela, que era escritora, como se ela estivesse ali relatando extremamente emocionada à viva-voz. Como ato contínuo, outra tragédia.

Auster descreve, com uma sensibilidade exacerbada, a tortura do luto para um ser extremamente apaixonado. Tudo é muito doído e belo. Emocionante, após quase vinte anos de casamento e dez de solidão. E esse luto é uma forma excepcionalmente criativa encontrada por Auster para celebrar a vida. Assim, escreve “Viver é sentir dor, disse para consigo, e viver com medo da dor é recusar viver.”. E assim, o protagonista desenvolve a teoria – em um livro em elaboração – de que um membro amputado é como a perda da pessoa amada (e vice-versa), pois “ambos estiveram intimamente ligados a um corpo vivo”. 

Então, surge a personagem que o fará afastar-se de seu luto, sem, contudo, cessá-lo: uma segunda companheira de vida, como emblematicamente profetizara a parceira original. Mas, claro, mais um desastre. E num texto magnífico, de simbologia profunda, Auster leva nosso protagonista a retornar a seus textos. Ali, reflexivamente, ele entende ser prisioneiro de si próprio. E que a solidão esfacela sua estrutura, sua condição humana; sua vida. E, com toda a virilidade de um jovem, sente-se velho. E decide, apesar de tudo, libertar-se.

Simultaneamente, tem a percepção de leves sinais de senilidade, ou como prefere encarar, “o princípio do fim”. Doces recordações da infância com a irmã e a adolescência com os amigos, as passagens marcantes em transportes e as recordações históricas com a família, como filmes, projetam-se em sua mente. Chega ao extremo de ir conhecer a terra natal do avô, em mais uma deliciosa representação de Auster, numa provável incursão familiar autobiográfica, dentre outras tantas passagens deste livro. Tudo isso, numa extraordinária análise criativa e expositiva do amadurecimento e da velhice.

Sua escrita é limpa, criativa, musicalmente absorvível, apesar da objetividade. Leve, apesar das inúmeras tragédias e contratempos. E sempre desejosamente romântica. Usa a simbologia de forma precisa, forçando o leitor a reflexões soberbas sobre o protagonista, mas enlaçando-nos e propiciando-nos a possibilidade de refletirmos sobre nós mesmos. Sobre o próprio luto, o amor e a memória. Dentre tantos outros trechos extraordinários, a descrição das deambulações de seu pai para escrever uma carta, bem como o conteúdo da missiva, é uma dos mais exuberantes textos da literatura norte-americana moderna.

Ao ler este Baumgartner de Paul Auster percebe-se claramente que não se trata de assimilar ou saborear apenas uma história, um enredo. A suprema qualidade literária que o autor imprime à obra fará felizes aqueles que apreciam a leitura de altíssima qualidade. Quem assim o faz, dar-se-á por privilegiado de ter um texto dessa magnitude em suas mãos. Um livro de despedida, digno de um arquiteto literário. Absolutamente, o imortal Paul Auster vai nos fazer permanente falta.

Paul Auster faleceu em abril deste ano, aos 77 anos, deixando um legado de mais de 30 livros, com traduções para 40 países. Boa parte da crítica considera-o injustiçado por nunca ter sido lembrado pela Academia Sueca do Prêmio Nobel de Literatura, apesar de sua consagrada obra. Dentre seus trabalhos mais importantes, destaco A trilogia de Nova York, integrada pela quixotesca Cidade de Vidro, em que personagens atravessam a escrita do autor; Fantasmas, no qual cores ditam nomes para os personagens e O Quarto fechado, narrando em torno de um artista que se apropria da criatividade alheia.

Escritor nova-iorquino típico, foi imensamente premiado na Europa – em especial na França -, o que lhe faltou absurdamente em seu próprio país.

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Valdemir Martins

22.09.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. A queda na escada; 3. Os sinais da senilidade; 4. O mundo dos livros; 5. A nova companheira; 6. A emocionante carta do pai; 7. Auster em sua biblioteca; 8. O autor Paul Auster.

22 de out. de 2024

Vento Vazio que enche todas as mentes.

Reminiscências, boas e más, são o muito que sobra para boa parte dos idosos. E nada além disso ou de uma vida inútil, dependente e estagnada. Não fossem os mais jovens, os velhos teriam sobrevivência naquele lugar? É nesse espírito que a escritora mineira Marcela Dantés principia seu romance Vento Vazio.

E, não, não desgruda depois de começada a leitura dessa linda obra. Com uma linguagem descontraída, fluente, rica e criativa, Dantés romanceia um local de ventania constante e cortante, gelada, ou um lugarejo tão árido que contamina a alma das pessoas. O que de mais novo tem – além dos nenéns -, é velho: torres eólicas há muito abandonadas. E com elas, o protagonista velho há muito tempo.

Velho e vizinho da morte e narrador mágico do lugarejo e seus personagens, vivos e mortos. A fictícia Quina da Capivara, na longínqua mineira Serra do Espinhaço, um aglomerado de oito casas, uma venda, a capela e quatro torres esquecidas.

Entram em destaque na segunda parte, duas novas protagonistas narradoras, antes personagens. Antes distantes; agora próximas, apesar de distantes. Você vai entender. Uma delas, inclusive, com o segredo de uma escavação. A outra, um pouco citadina, tida como maluca por suas reações imprevisíveis e surpreendentes.

São os capítulos das mulheres. Fortes, diferenciadas e até estranhas para a maioria de nós, também citadinos. Mulheres, assim como a autora, que contam tudo. Duas únicas famílias comparecem à obra: uma destruída pelo fogo, outra pelas tetas de uma das mulheres.

Já na terceira parte, outra mulher – também personagem anterior -  enlouquece de vez na figura de uma adolescente libertina e liberada por absoluta falta de estrutura familiar. Consequentemente, sua narrativa é desregrada e erotizada, em dosagem bem superior à das outras mulheres. E a morte, que já vinha crescendo, com ela torna-se uma ode. Uma ode à morte. Uma ode assimétrica. Uma loucura.

Como grande coadjuvante no enredo temos o vento constante que assola o lugar. Um “vento que enlouquece”, segundo a autora. O Vento Vazio que maltrata e enlouquece os moradores; participa de tudo e que ali em tudo está presente. “...só o vazio inteiro que cabe no fim do mundo, não tem ninguém, não tem mais ninguém mas continua ventando.

Desmonta figuras religiosas, cheirando assim a crença gnóstica, apesar de abusar de experiências transcendentais. Em seu estilo inovador, Dantés traz renovações literárias. Embala-nos em um ritmo narrativo deleitoso, palatável e até surpreendente. A construção tanto dos protagonistas como dos demais personagens é gradual e cativante. Cada faceta é relevante. Cada fato uma surpresa. Um romance com aroma de poema.

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Valdemir Martins

29.08.2024

Fotos: 1. Capas do livro. 2. O velho sobrevivente; 3. As velhas torres eólicas; 4. Os coronéis do sertão; 5. A muralha da Serra do Espinhaço; 6. A amante do coronel; 7. A autora Marcela Dantés.

8 de out. de 2024

Carl Sagan revela O Mundo Assombrado pelos Demônios.

O cientista planetário, astrônomo, astrobiólogo, astrofísico, escritor, divulgador científico e ativista norte-americano Carl Sagan (hoje com 90 anos) inicia um de seus mais brilhantes livros dedicando-o ao seu neto Tonio, desejando-lhe um mundo livre de demônios e cheio de luz. Sintetiza, de certa forma, o contexto da obra O Mundo Assombrado pelos Demônios.

E principia este trabalho na sua infância, onde as crianças costumam questionar diversos fatos por não entenderem ainda a lógica de sua realidade. Assim, por exemplo, como saber o que é imaginação ou realidade? Ou como se podia ver o som e ouvir a luz? E assim seus pais o introduziram simultaneamente no ceticismo e no assombroso, dois modos de pensamento que são a base do método científico.

Na sequência, critica severamente o ensino das ciências exatas nas escolas, as quais não conseguem despertar a curiosidade dos alunos em formação para o que é ensinado: ”Nosso trabalho consistia meramente em recordar o que nos tinha ordenado: consegue a resposta correta, não importa que entenda o que faz.”  Já na Universidade de Chicago ele encontrou um programa de ensino no qual era impensável que um aspirante a físico não conhecesse Platão, Aristóteles, Bach, Shakespeare, Gibbon, Malinowski e Freud, entre outros.

Parte a seguir para os relatos espúrios, tão comuns hoje em dia, nos quais a grande maioria de  pessoas crédulas incautas acreditam em inúmeras balelas sem comprovação científica, como a existência de Atlântida, o poder dos cristais ou a previsão dos horóscopos, por exemplo, com a cooperação desinformada (e frequentemente a conivência cínica) de periódicos, revistas, editores, rádio, televisão, sites, produtores de cinema e similares. E escancara essa pseudociência difundida pelas fontes de informações disponíveis à população, com amplos e profundos interesses comerciais e de ativismo sócio-político.

Sempre com inúmeros exemplos, ele passa pelos momentos pretéritos da ciência, como a escuridão de dez séculos da antiguidade sem qualquer produção científica. E considera então o dom da vida e a sobrevivência como a base e inspiração do desenvolvimento científico. E conclui que os avanços na medicina e agricultura salvaram muitas mais vidas do que as que se perderam em todas as guerras da história.

Alerta, então, para mais atenção às consequências da tecnologia a longo prazo se usadas sem controle ou destinadas para o mal. E a que interesses serve a ignorância, além do progresso ininterrupto na auto desvalorização do homem causado pela revolução científica.

Baseado em seus estudos científicos, Sagan prevê que os Estados Unidos será uma economia de serviço e informação; quase todas as indústrias manufatureiras fundamentais se deslocarão para outros países; os temíveis poderes tecnológicos estarão em mãos de uns poucos e ninguém que represente o interesse público poderá se aproximar sequer dos assuntos importantes; as pessoas perderão a capacidade de estabelecer suas prioridades ou de questionar com conhecimento aos que exercem a autoridade; nós, obstinados a nossos cristais e consultando nervosos nossos horóscopos, com as faculdades críticas em declive, incapazes de discernir entre o que nos faz sentir bem e o que é certo, iremos deslizando, quase sem nos dar conta, na superstição e na escuridão.

E assim Sagan desenvolve esta sua ode à ciência e ao conhecimento, numa denúncia importante sobre o obscurantismo mascarado de entretenimento e solução, desmontando as crenças das passivas massas em superstições, credos religiosos e, principalmente, nas pseudociências.

Citando o profeta Isaías - Esperamos a luz, mas contemplamos a escuridão - Sagan deixa-nos um potente pensamento para reflexão: “Simplesmente, não há volta. Nós gostemos ou não, estamos atados à ciência. O melhor seria lhe tirar o máximo proveito. Quando finalmente o aceitarmos e reconhecermos plenamente sua beleza e poder, encontrar-nos-emos com que, tanto em assuntos espirituais como práticos; saímos ganhando.

Esta é uma obra transformadora. Com certeza, os leitores mais instruídos ficarão incomodados. Com fortes possibilidades de mudar alguns de seus conceitos. Já os menos letrados, perdidos por perdidos, com absoluta certeza não conseguirão ultrapassar os capítulos iniciais.

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Valdemir Martins

25.08.2024

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Ver o som e ouvir a luz; 3. Balelas como o horóscopo; 4. A escuridão da ciência na Idade Média; 5. O obscurantismo religioso; 6. A tecnologia na guerra; 7. O anel de galáxias e a infinitude do cosmo; 8. O autor Carl Sagan.