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28 de out. de 2021

O Jardim de Cimento: duro e cruel como a solidão

Tudo começa com uma narrativa de um pré-adolescente de catorze anos. Revela seu relacionamento familiar; fala sobre o irmão e irmãs, a difícil convivência e o primeiro diálogo com o pai, peripécias escolares e seus primeiros experimentos sexuais. Assim, o premiado escritor britânico Ian McEwan, inicia seu ótimo e estonteante romance O Jardim de Cimento.

Esta é uma obra muito difícil de comentar sem tropeços em spoilers, o que procurei evitar neste escrito, esperando não ser muito árido. O texto curto da obra – apenas 136 páginas - evolui de forma dramática e intrigante, provocando imenso assombro, enquanto evidencia a transformação da família e, de forma crua e direta, expõe o início do forçado amadurecimento das crianças e dos pré-adolescentes.

O ingresso na solidão e responsabilidade familiar, com profundas contrariedades, irá marcar esses personagens para sempre. Uma família unida, pela ingenuidade e pela dúvida, mas absolutamente em farrapos. Assim, o enredo apresenta um lar inteiramente desgovernado mediante as regras de comportamento social e de higiene, sendo a lógica superada pela conveniência e dominada por instintos.

McEwan, numa narrativa visceral, explora a introversão gerada por essa solidão num crescente desespero inconsciente – inclusive do leitor -, com um sentimento de tragédia e muita tristeza. Lançadas numa vida absolutamente livre, em plena fase de profundas mudanças da puberdade e da infância, essas quatro crianças enfrentam seus medos, desejos e contrariedades de forma bastante autêntica, com o livre arbítrio dominando até as necessidades. E sempre com a mãe como eixo de tudo.

A entrada de mais um personagem na história – o namorado da filha mais velha – inicia mais uma etapa de mudanças, agitando e mexendo com o psicológico de todos.

Apesar de parecer uma história comum, singular, suas excrescências comportamentais levam o leitor a um crescente assombro, com um crepúsculo turbulento finalizado com um forte soco no estômago de quem lê. Um final surpreendente, brusco, forte e inesperado; que vale muito a pena sua leitura e consequente reflexão. 

Valdemir Martins

26.10.2021

Fotos: 1. Capa do livro; 2. O jovem narrador; 3. A mãe doente  ; 4. Os irmãos; 5. Ian McEwan


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13 de out. de 2021

Cthulhu: um chamado distante

Consagrado como um dos grandes escritores estadunidenses do século XX, H. P. Lovecraft foi pioneiro em fantasiar o horror, sendo O Chamado de Cthulhu – uma coletânea de contos – considerada sua obra principal, fato que me levou à sua leitura.

Apesar de ser apenas um texto comum na atualidade, em função da enormidade de produções literárias de fantasia e horror a partir da segunda metade do século passado, Lovecraft é imensamente criativo. Sua escrita chega a ser surpreendente, se considerarmos que estudou apenas até o ensino médio. Mas, teve em seu avô um grande incentivador de sua inata vocação, pois aos pródigos seis anos criou suas primeiras poesias.

Os demônios, psicopatas, alienígenas e semideuses que prevalecem neste livro – um deles, o Cthulhu do título – não nos levam propriamente ao horror, mas causam-nos incômodo constante pela presença inerente do Mal. E é deslumbrante como Lovecraft parte de situações sempre banais para descrições horrendas, de forma progressiva e em ritmo crescente e até acelerado.

Monstros marinhos, possessões musicais, artistas demoníacos, uma igreja de cultos satânicos, fantasmas, monstros espaciais e pessoas depressivas fazem parte dos enredos cativantes para quem curte o gênero. São oito textos totalmente diferentes, com enfoques distintos e em lugares díspares, com uma narrativa de forte apelo visual. E a criatividade de Lovecraft é tão contaminante que estimula o leitor aos mais fantásticos cenários e a supor os seres mais horripilantes e gosmentos. Prova disso é a fabulosa quantidade de criaturas e estruturas imaginadas por ilustradores quando se faz uma busca pela internet. Vale à pena.

Deles, atraíram-me com especial anseio “O assombro das trevas” e “A música de Erick Zann”, mas, como nos demais, ficou-me a frustração de finais mais densos e comprometidos com a fantasia de terror.  “O chamado de Cthulhu”, em especial, na minha expectativa ficou devendo para sua fama. Os demais contos são Dagon, Ar Frio, O que a Lua traz Consigo e O Modelo de Pickman.

Na verdade, o texto que acabei gostando muito foi o derradeiro “Carta a R. Michel”,  onde o autor, numa escrita brilhante, conta a um amigo sua interessante e tumultuada biografia. Para quem não curte o gênero, a obra vale para conhecer o autor e o porquê de sua fama.

 Valdemir Martins

12.10.2021


Fotos: 1. Capa do livro; 2. A imagem do Cthulhu mais conhecida; 3. O castelo submarino do monstro ; 4. Uma ameaça à navegação; 5. H. P. Lovecraft.

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2 de set. de 2021

A Ocupação: todo homem é a ruína de um homem?

Nada como ler por prazer. E isso me levou ao livro A Ocupação, do paulistano Julián Fuks, escolhido para leitura por recomendação do site literário português Wook. Fico eufórico quando adentro ao contexto de uma obra e esta me dá mais prazer pelo linguajar mágico e magnífico do escritor do que propriamente pelo enredo.

Não fossem o lastro e rastro ideológico que permeia o texto, poderíamos considerá-la uma obra de ótima qualidade literária. Fucks escreve fácil, com muita elegância, poesia e objetivamente, sem arabescos linguísticos, apesar de suas permanentes figurações que ilustram drasticamente sua exiguidade descritiva.

Muitas obras, inclusive clássicas e consagradas, passam pelo contexto político apenas narrando-o, sem a necessidade óbvia de críticas ou de ser opinativa, tarefas que, no meu entendimento, cabem unicamente ao leitor. Não é o caso de A Ocupação, onde o autor procura infiltrar e até escancarar seus posicionamentos ideológicos em alguns trechos do livro.

 A vitimização é seu estratagema na personificação do protagonista: os ancestrais morreram no holocausto, o pai sofre longamente no hospital, o cachorro de estimação também incorporou o sofrimento, as pessoas com as quais convive e compactua no hotel abandonado e por elas ocupado, são todas vítimas reais do destino e das mãos de outros homens, que promovem a guerra, o policiamento rigoroso, a esperteza nos negócios. Ou, como ele prefere, são vítimas da sociedade.

Aplicando aqui as palavras do próprio autor em outro contexto, “haveria afinal alguma virtude na simples condição de vítima?”. Claro que há essa virtude na ficção quando bem encaixada no enredo e não como linha condutora e ainda politizada.

Enfim, considero a leitura aborrecida pelo relatado e por repisar as mesmices do noticiário cotidiano. Como o próprio Fuks assume, “estou escrevendo um livro sobre a dor do mundo, a miséria, o exílio, o desespero, a raiva, a tragédia, o absurdo (...)”. E nele, apesar da excelente escrita do autor, ele não se permite ficcionar com criatividade e sua elegância e poesia perdem-se num infeliz panfleto político.

Valdemir Martins

31.08.2021 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Prédio ocupado; 3. A morte do cachorro de estimação ; 4. O pai hospitalizado; 5. Julián Fuks.

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19 de ago. de 2021

1984: um mundo dominado por utópica opressão absoluta

Li a distopia “1984”, do britânico George Orwell nos meus dezessete anos. Portanto, ainda antes desse ano e durante o governo militar. Devido à pouca idade e experiência de vida, a obra pareceu-me um pouco aborrecida, principalmente no seu primeiro quarto. No seu contexto, nada vi de semelhante ao sistema de governo que havia na época e, assim, nada absolutamente semelhante ao teor do livro, como muitos gostavam (ou ainda gostam) de ressaltar.

Hoje, numa releitura, reitero a opinião principalmente sobre o quarto inicial, apesar de ter agora a sensibilidade de perceber a necessidade da maçante ambientação inicial para se entender o terror do sistema político totalitário apresentado por Orwell. A partir daí, como desde o início, continuamos a ler à sombra, como é a sensação que o texto do autor nos proporciona. Algo lúgubre, como toda ditadura, nos oprimindo o prazer da leitura até o fim. É o toque mágico de Orwell.

Além do seu excepcional conteúdo político - fonte de análise para estudos de regimes totalitários e ditatoriais e inspiração para inúmeros movimentos políticos de esquerda, progressistas e globalistas na atualidade -, o livro fica devendo em termos de valor literário propriamente dito. Trata-se de um texto muito bem estruturado, com situações bastante criativas e diálogos inteligentes e muito bem elaborados. Mas, apesar de poucas situações emocionantes, apresenta trechos deslumbrantemente dramáticos como o roubo de um pedaço de chocolate, nas reminiscências do protagonista, ou de suspense como o enfrentamento de uma gaiola com ratos.

A obra foi concluída em 1948 e publicada no ano seguinte, e seu título traz os dois dígitos finais invertidos. Era uma forma de o autor alertar que a distopia descrita não seria uma ameaça distante. Estava, então, Orwell vivenciando o totalitarismo reinante na União Soviética bolchevique, após seu líder, o genocida Stálin, ter dado golpe de poder em seus companheiros de Revolução (Trotski e Lenin), e implantando uma ditadura comunista radical sem precedentes. Como no livro, deveria prevalecer sempre a palavra do Grande Irmão, no caso, Stálin.

Em meados do livro, num precioso remate teórico, Orwell nos faz uma elucubração marcante sobre o futuro das nações num suposto livro de um líder contrarrevolucionário. Aqui, dá uma demonstração espetacular de sua criatividade consciente e de especulação muito bem embasada. Como todo o teor de seu livro – como excelente profissional do jornalismo -, demonstra estar plenamente informado sobre o que ocorria tanto nos altos escalões do poder como junto à ralé nas duas grandes ditaduras da época: a Alemanha nazista e, principalmente, a União Soviética comunista.

Então, premonitoriamente, Orwell alerta para o que hoje se chama “Nova Ordem Mundial” (https://contracapaladob.blogspot.com/2021/03/introducao-nova-ordem-mundial-um.html), movimento progressista e globalista efetivo e em pleno desenvolvimento em nossos dias, contrário ao capitalismo e à democracia, e comandado por oligarquias políticas e financeiras. Este trecho bem exemplifica isso:

"Havia um bom tempo sabia-se que a única base segura para a oligarquia é o coletivismo. Riqueza e privilégio são defendidos com grande eficácia quando possuídos conjuntamente. A assim chamada “abolição da propriedade privada”, ocorrida nos anos intermediários do século, na verdade significara concentração da propriedade num número muito menor de mãos: mas com a diferença de que os novos proprietários eram um grupo, e não uma massa de indivíduos. Nenhum membro do Partido possui nada individualmente, com exceção de bens pessoais insignificantes. Coletivamente, o Partido possui tudo o que há na Oceânia, pois controla todas as coisas e dispõe dos produtos como bem entende. Nos anos que se seguiram à Revolução, teve oportunidade de ocupar essa posição de comando praticamente sem oposição, pois o processo como um todo era representado como um ato de coletivização. Sempre se acreditara que se a expropriação da classe capitalista ocorresse, o socialismo adviria daí: e inquestionavelmente os capitalistas haviam sido expropriados. Fábricas, minas, terras, casas, transporte — tudo lhes fora confiscado: e visto que essas coisas haviam deixado de ser propriedade privada, concluía-se que com certeza agora eram propriedade pública. O Sistema, que emanara dos primórdios do movimento socialista e que dele herdara sua fraseologia, na verdade conseguira concretizar o que havia de mais importante no programa socialista; com o resultado, antecipadamente previsto e pretendido, de que a desigualdade econômica se tornara permanente.”

Com todos esses vislumbres e assertivas, a obra tornou-se referência mundial sempre que a verdade é agredida ou adulterada. Ou mesmo quando se viola o poder, como acontece hoje com a atuação constitucionalmente desvirtuada do STF - Supremo Tribunal Federal do Brasil; e também quando se malsina a linguagem como tentam hoje criar, sem necessidade e por ideologia, a figura da linguagem neutra, inexistente e absolutamente desnecessária na grande maioria das línguas ocidentais.

Retratando um mundo dominado por uma utópica opressão absoluta, antes do seu término o livro 1984 traz, na sua apoteose, um extenso trecho de terror e de repugnância. No meu ver, uma obra de leitura desagradável, mas de importância fundamental em seu contexto político e psicossocial.

Valdemir Martins

18.08.2021 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. As teletelas; 3. Primeira edição ; 4. O contexto ; 5. O casal protagonista; 6. O Grande Irmão; 7. Manifestação do Partido; 8. George Orwell.

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27 de jul. de 2021

Um oceano de emoções até o final do livro

Como é bom iniciar uma leitura com reminiscências da infância, no desenrolar de aventuras e agruras infantis, na maioria das vezes comuns a todo adulto. E o escritor britânico Neil Gaiman brinda-nos com maravilhas desse teor em sua exuberante obra O Oceano no Fim do Caminho. Um livro leve, muito bem estruturado e extremamente envolvente.

Sonhos, desejos, temores e crendices infantis são pinceladas na consagrada prosa do autor de forma delicada. Crendices da imaginação infantis e alguns fatos e cenas da meninice de Gaiman tornam-se realidade para construir esta fábula de forma muito criativa, usando até inclusões de interessantes diálogos e reflexões sobre a memória, a vida, a história e o tempo.

Uma bela obra de fantasia infanto-juvenil - com muitas lições para adultos -, onde um menino de sete anos, amigo de uma menina encantada de onze, coloca-se na posição de antagonista aos adultos por ser castigado por seu pai sob a influência de uma nefanda e aterradora governanta. Mas, uma vizinha família imortal, como super-heróis, intercede num protagonismo fantástico tornando a obra ainda mais brilhante.

Muitos leitores vão se sentir impactados por algumas cenas, pois vão trazer de volta reminiscências de sua infância, principalmente com relação a castigos, ameaças, brincadeiras e até desafios e brigas de forma simbólica, mas sempre perturbadoras. São aqueles fragmentos do início da vida que os adultos acabam deixando adormecidos, quase esquecidos, em função do amadurecimento que os leva a outras realidades e preocupações, calando a beleza e a pureza fantasiosas da inocência da época.

Como escreveu Renata Arruda no site O Grito: “O oceano no fim do caminho é uma história juvenil, contada por um adulto com o olhar de uma criança. E é uma delícia.”



Valdemir Martins

23.07.2021

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Os protagonistas; 3. O oceano no fim do caminho; 4. As aves predadoras ; 5. Neil Gaiman.

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14 de jul. de 2021

A Barba Ensopada de Sangue e de muita água.

Atraído pelos inúmeros elogios e boas avaliações do romance Barba Ensopada de Sangue, do paulistano – quase gaúcho - Daniel Galera, entrei na dança e viajei à pequena cidade litorânea catarinense de Garopaba, juntamente com o autor e o protagonista da obra que não tem nome.

Não sem motivo o inominável protagonista é assim assentado por Galera na obra. Um personagem à procura de si mesmo e do avô paterno por todo o enredo. Sua deficiência em reconhecer rostos (prosopagnosia) é uma tirada incrível do autor para reforçar a indefinição do protagonista consigo mesmo.

Uma obra grudenta que te impulsiona à leitura incessante, apesar do enredo desenvolvido por espasmos criativos. Não se deixe levar pela sensação de uma obra comum que remete a script de telenovela, pois você foi fisgado pela progressiva preparação que Galera faz para encaminhar suas emoções para um dramático apogeu.


No inverno praiano catarinense você vai experimentar ficar enregelado até os ossos. Num trecho com dias seguidos de chuva você vai sentir-se encharcado, tamanha a força descritiva da narrativa que sincronicamente transforma-se num ápice dramático, e sempre mais dramático. Um feito literário notável do autor que leva-nos incontrolavelmente a não parar de ler. Um primor misto de tragédia, terror e surpresas assustadoras.

Um romance onde não só a barba fica ensopada seja com água das chuvas, da piscina  e do mar, seja de sangue de um protagonista tão recluso em si mesmo que não consegue perdoar, como muito bem tratado pelo autor no final do livro.

Não li ainda outras obras do Daniel Galera, mas percebo neste livro um grande escritor brasileiro, com estilo próprio, um competentíssimo e sério trabalho de pesquisa, incrível elaboração de dinâmicos diálogos, sendo detentor de excelente capacidade de construção de personagens e um texto muito bem estruturado. Um livro para encucar. Recomendo a leitura.

Valdemir Martins

13.07.2021 

Fotos: 1. Capa do livro; 2. Vista de Garopaba; 3. Baleia franca próxima à praia; 4. A piscina de três raias ; 5. O autor em Garopaba.

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29 de jun. de 2021

O Desassossego da Noite invade também os dias.

Familiarizar-se com a família conservadora e extremamente devota. Esta é a primeira tarefa na leitura de O Desassossego da Noite, brilhante livro de estreia da já premiada jovem holandesa Marieke Lucas Rijneveld (29 anos), de texto extremamente elaborado com rico teor literário. Um drama estonteante que quase nos faz chegar às lágrimas e nos arranja ansiedade e profunda tristeza já no primeiro capítulo.

Vencedor do International Booker Prize* de 2020, esta obra moderna, de forte linguagem poética, atravessa-nos emocionalmente, mesmo estando tão distantes dos costumes da área rural dos Países Baixos. É lá que se passa este romance contemporâneo de evocação terna e visceral de uma infância presa entre a vergonha e a salvação.

A partir de um fato assaz marcante, a vida da família altera-se peremptoriamente. E um fantasma passa a pesar e a marcá-la constantemente. Os pais, com seus afazeres e suas crenças, profundamente conservadores e carolas, preocupam-se com quem se foi e deixam de dar atenção aos seus filhos. Estes, por sua vez, se vão afastando lentamente da família para encontrar, no abandono a que foram deixados, estratégias que lhes permitam lidar com a tragédia e sobreviver ao luto, mesmo que isso implique muitas vezes violência e desassossego.

Rijneveld, através de sua protagonista - uma menina de doze anos -, alfineta crítica e sistematicamente, às vezes até com sarcasmo, as considerações religiosas, cobrando sempre resultados dos costumes e mesmices dos crentes, entre eles seus pais e o próprio pastor. Usa com inteligência a argumentação infantil para expressar suas convicções, críticas e pontos de vista sobre os costumes e a sociedade, como o relato de uma criança na voz de um adulto.

Carregado de metáforas e “pensamentos sábios”, como reflete a protagonista, o livro leva-nos a conjecturar sobre as situações cotidianas que vivenciamos. Bule com nosso passado infantil, como uma colher a mexer numa panela, fazendo-o também com nossas crenças, manias e preferências. “As pessoas precisam de problemas pequenos para se sentirem maiores” é um dos exemplos que nos leva à reflexão.

Uma obra para quem aprecia um bom texto e não apenas uma boa história. Um texto muito bem estruturado, que leva à reflexão, às vezes poético, às vezes sarcástico e até necessariamente vulgar, mas com excelência de qualidade literária. Parte de estereótipos infantis para mostrar a importância de se valorizar e apoiar as pessoas e suas fraquezas, as quais, por vezes, levam-nos a atos extremos. Um livro que parte do dramático, passa até pelo cômico e deixa o leitor surpreso, indignado, enojado e muito ansioso.

Este O Desassossego da Noite não tem ainda, até esta data, uma edição brasileira. Li-o numa publicação portuguesa, cujo e-book adquiri pela internet, por recomendação do excelente site literário lusitano Wook. Mas, de qualquer forma, fica aqui minha forte recomendação de leitura.

Valdemir Martins

29.06.21

O International Booker Prize é um laurel que homenageia (e premia com 50 mil Libras) autores e tradutores por uma mesma obra de ficção traduzida para o inglês e publicada no Reino Unido e Irlanda. Neste caso, a tradutora premiada foi a também holandesa Michele Hutchison.

** Se alguém quiser o arquivo do livro em PDF, basta clicar em "Seguir" este blog e solicitar em Contato, no pé desta página.

Fotos: 1. Capa edição portuguesa; 2. Salvamento tardio; 3. Vacas leiteiras; 4. Gado sacrificado devido a aftosa ; 5. Rãs da protagonista ; 6. Marieke Lucas Rijneveld.

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16 de jun. de 2021

As Memórias do Livro são vários livros.

A premiada escritora australiana Geraldine Brooks consegue a façanha de, com uma série de “contos”, formar um grande romance. Em As Memórias do Livro ela engenhosamente narra a história quase verídica – pois é baseada em pesquisas de inúmeros fatos reais – de uma Hagada (narrativa), obra única em sua essência, pois reconta a história do êxodo e relata a sequência de rituais que devem ser feitos na noite do Pessach, a Páscoa dos judeus.

No entanto, trata-se de uma obra sacrílega, pois viola seriamente as leis religiosas ao conter iluminuras, características de livros cristãos. Por ser um trabalho artístico maravilhoso e um opúsculo sagrado medieval, é considerada uma raridade. E o que é mais intrigante, sobreviveu à Inquisição Espanhola, ao regime nazista, à guerra civil na Bósnia e, enfim, a séculos de antissemitismo na Europa. Por último, foi salva, estranhamente, por um muçulmano em Sarajevo. Além de conter um enigma: por que e por quem foi elaborado?

Uma competente conservadora de documentos australiana, com sérios problemas de relacionamento com a mãe – uma respeitada neurologista que sonhava com a carreira médica para a filha – recebe a incumbência da ONU de recuperar o livro. Em seu trabalho acaba envolvendo-se amorosamente com um bibliotecário bósnio e emocionalmente com o filho dele, em estado vegetativo em decorrência da guerra local.

Brooks leva-nos a uma fascinante viagem no tempo para acompanhar a vida dos personagens responsáveis pela história da Hagada em diversas épocas. São histórias independentes, como contos, que basicamente se sustentam e mantêm um liame que no final vai amarrar todo o romance. Impossível parar de ler, pois se aprende muito – e de maneira breve – sobre o judaísmo, a conservação de documentos, culinárias típicas, a censura da Inquisição e sobre os tratamentos médicos no século XVIII.

Brooks comentou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, por ocasião do lançamento do livro (2008), que trabalhou como se fosse repórter para descobrir detalhes saborosos de épocas passadas, como o sabor do vinho, o cheiro do sal e a cor dos cabelos das mulheres. A pesquisa de campo incluiu ainda traçar o perfil da sociedade Bósnia contemporânea, uma vez que Sarajevo é o centro da história.

O resultado, sem dúvida, é este excelente livro que demonstra o talento de Brook para narrativas ricas, envolventes e misteriosas que, apesar de densas, estimulam a leitura contínua também por sua qualidade literária.

Valdemir Martins

16.6.2021

Fotos: 1. capa 1ª edição; 2. o haganá; 3. Conservação de livros; 4. Sarajevo durante a guerra; 5. Geraldine Brooks.

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2 de jun. de 2021

Matéria Escura: nossas escolhas irreversíveis

Tudo começa muito ameno. A tradicional e feliz família norte-americana; o drink no bar com o velho amigo e, de repente, o terror. Assim começa a intrincada ficção científica contemporânea da obra Matéria Escura, do roteirista e escritor americano Blake Crouch, festejado pela crítica principalmente por sua trilogia Wayward Pines, que foi adaptada para a série de televisão pela Fox em 2015.

Uma obra breve, dinâmica, com fatos se sucedendo velozmente. Quando terminar o primeiro quarto do livro Crouch conseguirá deixá-lo tão confuso e atordoado quanto estará o protagonista. Mas aí será tarde. O livro o terá engolido e você não conseguirá se livrar dele. Estará lendo compulsivamente, sem vontade de largar, uma trama brilhante.

Neste momento em que é lançado o computador quântico, celeríssimo, que vai tornar os atuais PCs obsoletos, pois usa a base teórica da mecânica quântica - um território da ciência habitado por partículas subatômicas -, nada mais oportuno que ler esta obra. Este thriller, também célere e de muitas reviravoltas, exige do leitor algum conhecimento científico. Trechos falam de física quântica e multiespaço e não devemos nos intimidar se não entendermos o que estamos lendo por que, a seguir, aos poucos o próprio enredo vai esclarecendo todas as nossas dúvidas. E o livro volta à sua dinâmica.  E, assim, o espaço-tempo passa a dirigir a história, surpreendendo-nos a cada espaço de tempo. 

Uma obra que nos faz refletir sobre os valores da vida, conforme a personalidade de cada leitor. Cada indivíduo atribui valores diferentes de outros às mesmas coisas, aos mesmos objetos e às mesmas situações e circunstâncias. E são valores individualmente incontestáveis, dado que cada um tem sua individualidade; sua forma de ver, interpretar e sentir. E assim, cada um tem sua realidade, seu padrão, suas escolhas. Seu mundo.

A trama, de forma crescente, fica mais complicada para o protagonista, tendo, permanentemente, de fazer escolhas. E aí, começam a prevalecer seus valores morais e seu amor pela família, o que vai ajudá-lo em suas grandes dificuldades. E aqui a obra nos revela forçosamente que reflitamos sobre a importância de nossas escolhas, sempre. E sobre as escolhas que fizemos: “Não posso deixar de pensar que somos mais do que a soma total de nossas escolhas e que todos os caminhos que poderíamos ter trilhado influem de algum modo na matemática de nossa identidade”, proclama o protagonista.

Claro que o livro não é uma maravilha literária, pois sobram pontas soltas ou ausentes. Mas cumpre sua função de fornecer conhecimentos e entretenimento, e de nos fazer pensar e refletir. E, assim, encontrei o encantador mundo da reflexão sobre minhas próprias escolhas. Seriam histórias tão fascinantes e incríveis que eu poderia escrever um livro. O que talvez eu faça.

Valdemir Martins

01.06.2021

Fotos: 1. capa; 2. Drink antes do terror; 3. Injetar para viajar; 4. Um ponto de chegada; 5. O autor Blake Crouch.

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18 de mai. de 2021

Klara e o Sol: talvez todos os humanos sejam solitários.

Em sua mais recente obra Klara e o Sol, o Nobel inglês Kazuo Ishiguro escasseia. Depois de ler seus brilhantes e monumentais O Gigante Enterrado e Os Vestígios do Dia, sente-se que sua caçula carece de Ishiguro e de seus méritos literários.

Numa distopia contemporânea, o livro versa sobre a vida de uma robô, Klara, mais propriamente uma humanoide com inteligência artificial em meio a uma família. Explora o autor essa convivência, apresentando as linhas de pensamento, ações e reações dos seres humanos em diversas circunstâncias e situações, contrapondo às singelas e racionais reações da humanoide a tudo isso em suas vidas em comum, num mundo onde as relações são rasas e descartáveis.

Estará a mediocridade humana – que se acentua a cada década – preparada e capacitada e entender, acompanhar e conviver com as obras da inteligência artificial, resultado do acelerado desenvolvimento tecnológico produzido pelos gênios humanos? Neste livro Ishiguro destaca exatamente as facetas dessa vida em comum, demonstrando que os robôs com inteligência artificial, por não conterem sentimentos, são muito mais assertivos do que os humanos. Em especial, sua protagonista Klara.

Exatamente no início do terço final da obra, o enredo dá uma reviravolta positiva, saindo de um certo marasmo e da simplicidade rotatória de construção da trama, e surpreende-nos com novos personagens e novas e fluentes situações, encaminhando-nos ao crepúsculo do livro. É nesse trecho que descobrimos dois personagens coadjuvantes – mãe e filho – literariamente muito mais ricos que as outras pessoas, por serem absolutamente mais autênticos e compassivos. Também é nesse trecho que um robô faz uma oração por uma menina, fato deslembrado para um humano em todo o enredo, apesar dos inúmeros problemas que enfrentam.

Numa de suas deduções – sempre lógicas – Klara perscruta e conclui que “talvez todos os humanos sejam solitários. Ou pelo menos possam se tornar.” É a premonição comum, até em nossos dias, do que espera o futuro das novas gerações humanas. No caso deste livro futurista, crianças e adultos são realmente solitários. Por modificações genéticas, chamadas elevações, as crianças e jovens acabam necessitando da companhia de robôs, os AAs (Amigos Artificiais) para se desenvolverem.

Finalizando, segundo minha percepção, um livro aborrecido em muitos trechos, inclusive de carente estruturação textual e de baixa qualidade literária. Segundo a crítica Isabella Siqueira, “Ishiguro conduz com muita graça a trajetória de uma humanoide mais humana do que muitos por aí sonham em ser.” Enfim, trata-se de um bom romance sobre a complexidade das emoções humanas e de suas criações tecnológicas, mas indigno de um autor premiado com o Nobel de Literatura em 2017.

Valdemir Martins

18.05.2021

Fotos: 1. capa do livro; 2. drone pássaro de um personagem; 3. o crepúsculo que inspirou Klara; 4. Kazuo Ishiguro.

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