Para quem ama a cidade de Nova
Iorque - ou tem vontade de conhecê-la - e não sabe sua história, faz-se
importante recomendar que em sua próxima (ou primeira) viagem visite a Peter
Minuit Plaza, no ponto mais meridional da ilha. Ou, se preferir, ler a excelente
obra Arrancados
da Terra, do premiado escritor e jornalista brasileiro Lira Neto.
Não se trata de uma história
qualquer. Ela começa na Idade Média, quase um século após as descobertas das
Américas. E mais uma vez com o sofrido povo judeu. Aqui, Lira insere-nos na
radical e absurda Inquisição
portuguesa, apresentando detalhes de um processo inquisitório que nos faz
acreditar ser o princípio inspirador dos métodos nazistas, tamanha é a
crueldade praticada pela Igreja Católica. Resultado: êxodo dos judeus, os
novos-cristãos portugueses, para países livres da Inquisição.
Enquanto porcamente os
portugueses colonizavam o Brasil, pois não sabiam o que fazer com tanta terra,
nas Províncias Unidas (Holanda) calvinistas o Banco de Câmbio e a Bolsa de
Valores eram organizações fundamentais a uma sociedade essencialmente urbana,
com o grau de alfabetização mais elevado do continente europeu e a maior média
salarial paga a funcionários públicos e privados no mundo. Lá os então
cristãos-novos fugitivos encontraram liberdade cultural, econômica e religiosa.
E sucesso.
Entra em cena, então, a Companhia
das Índias Ocidentais (CIO) criada pelos holandeses exclusivamente para
prejudicar o inimigo reino espanhol que, por razões familiares e de herdeiros,
governava também Portugal. Assim, em 1621 todas as rotas comerciais ibéricas
passam a ser controladas pelos holandeses. Invadir o Brasil, uma colônia
indefesa e rica produtora de açúcar, tabaco e pau-brasil torna-se uma meta da
Companhia, uma poderosa empresa, híbrido de força militar e companhia comercial.
A um forte e bem sucedido ataque
da grande esquadra holandesa a Salvador, surge mais uma teoria da conspiração
culpando cristãos-novos portugueses refugiados na Holanda. Na Espanha,
prevaleceu a ideia de que os grandes responsáveis pela queda de Salvador teriam
sido os judeus. Embora não houvesse nenhuma menção quanto a isso nas narrativas
presenciais neerlandesas ou luso-brasileiras, persistiu em Madri a opinião de
que os marranos haviam arquitetado toda aquela “trama maligna”.
Enfraquecidos por pura devassidão
e desleixo, em 1625 os holandeses são expulsos da Bahia, derrotados por uma
poderosa esquadra luso-espanhola. Mas, seis anos depois, muito mais organizados
e em número maior de pessoas, os holandeses conquistam Pernambuco rechaçando os
luso-espanhóis, E, desta vez, esquematizando-se para trazer, sob um programa de
incentivos de colonização organizada, os cristãos-novos fugidos de Portugal que
pela fluência da língua seriam fundamentais nesta nova conquista.
Após a aquisição, foi nomeado governador geral do Brasil o nobre
protestante conde João Maurício de Nassau, de 32 anos, formação humanística
exemplar e forte experiência militar. Após conquistar também Alagoas, Paraíba,
Itamaracá, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão, Maurício pede e começa a
receber colonos judeus com profissões diversas e investidores holandeses,
abrindo o comércio à iniciativa privada. Depois de anos de sucessos no
desenvolvimento da região, Nassau é obrigado pelo governo holandês e pela CIO a
retornar para Amsterdam. Aproveitando-se da vacância de governo na região,
nacionalistas e rebeldes luso-brasileiros formam milícias e iniciam uma guerra
de libertação e reconquista principalmente da capital Recife. Com o apoio
dissimulado do rei português D. Manoel IV, em janeiro de 1654 os rebeldes brasileiros
reassumem Pernambuco e os holandeses restantes juntamente com os judeus são
expulsos da então capital brasileira.
Os rebeldes, na realidade, eram
liderados por fazendeiros de tabaco, pau-brasil e cana e produtores de açúcar
que deviam muito dinheiro aos judeus holandeses e à CIO. Assim, percebendo suas
produção e vendas comprometidas resolveram expulsar seus credores, formando
milícias com seus empregados, escravos e indígenas. Foram eles, na realidade,
os grandes responsáveis pela expulsão dos holandeses de Pernambuco, sem medir o
que essa colonização havia trazido de progresso e civilização para aquela
região. Só importou egoisticamente seus próprios interesses e não os de uma
futura nação.
Assim, um fato historicamente
pitoresco foi o desgarramento de rota de uma das naus com os judeus holandeses
e cristãos-novos, que depois de muitas atribulações, desembarcaram numa pequena
e modesta ilha de possessão holandesa, denominada Nova Amsterdam, hoje região
de Nova Iorque na América do Norte.
Esta obra de cunho documental
histórico é recomendada aos que se interessam pelo assunto e pela história do
século XVII. O Padre Antônio Vieira – personagem importante da literatura
portuguesa e da História do Brasil - é figura atuante neste contexto, assim
como todo um histórico de aventuras e desventuras da colônia judaica na Europa
e nas Américas e toda a execrável e genocida perseguição da Inquisição da
Igreja Católica. A hipocrisia e oportunismo português e luso-brasileiro em meio
a todo sucesso holandês e judaico é algo também muito marcante.
Este é, além de um livro
surpreendente, um manancial histórico brilhante, de prazerosa e enriquecedora
leitura onde se vão entender os terríveis erros cometidos pelos portugueses. Primeiro
enxotando os judeus de seu território na Idade Média e posteriormente apoiando
maciçamente e de forma dissimulada os luso-brasileiros rebeldes - para não despertar
a ira dos holandeses e espanhóis, então seus inimigos políticos - arrancando-os da terra de sua colônia
brasileira, e empurrando-os – após extraordinárias realizações no nordeste -
para desenvolver, fora de sua jurisdição, a maior cidade do globo em termos
econômicos, políticos e culturais, até nossos dias.
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Valdemir Martins
Fotos: 1. Capa do Livro; 2. Lisboa no século XVII; 3. Amsterdã no século XVII; 4. Tribunal da Inquisição em Portugal; 5. Tortura da Inquisição; 6. Pe. Antonio Vieira, o inquisidor brasileiro; 7. Mauricio de Nassau; 8. Ponte construída por Nassau em Recife; 9. As "cidades irmãs" Nova Iorque e Recife; 10. Lira Neto.
16.12.23